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O poema ganha importância exatamente para quem tem interesse em conhecer
os matizes do pensamento político de Fernando Pessoa, que nunca teve
nada de esquerdista; pelo contrário. Era um antidemocrata por definição,
adepto de uma "monarquia pura", como observa De Cusatis, tirando a
expressão de um artigo do próprio poeta, "A opinião pública". Essa monarquia, porém, seria um tanto inusitada, pois baseada na opinião
pública, quem sabe um sistema de governo que representasse a
continuidade histórica interrompida com a morte do rei D. Sebastião
(1554-1578), na batalha de Alcácer Quibir, na África, contra as tropas
do rei de Marrocos.
Como se sabe, em 1580, com a morte do cardeal-rei D. Henrique, sem que
tivesse sido designado um sucessor, Filipe II de Espanha, neto do rei
português D. Manuel I, invadiu Portugal e submeteu o país a 60 anos de
domínio, tornando-o uma província espanhola, tal como havia ocorrido com
a Galiza, que continuou fazendo parte do reino asturiano-leonês. Como é
natural, os portugueses viviam descontentes e compreendiam que só uma
revolução bem organizada lhes poderia trazer a libertação. Dessa maneira, a 1º de dezembro de 1640, um grupo de 40 fidalgos
dirigiu-se ao Paço da Ribeira onde estavam a duquesa de Mântua, regente
de Portugal, e o seu secretário, Miguel de Vasconcelos. A duquesa foi
detida e o secretário assassinado. Foi assim que Portugal recuperou a
sua independência, sendo D. João IV, duque de Bragança, aclamado rei,
com o cognome de O Restaurador. Sem incorrer em anacronismo, pode-se
imaginar que essa monarquia nascia de um consenso entre os líderes
representativos da nova nação. Esse ciclo monárquico durou até 1910, quando D. Manuel foi apeado do
poder, dois anos depois de ter assumido a coroa em razão do assassinato
a tiros, no Terreiro do Paço, do rei D. Carlos e seu herdeiro. A
república que nasceu do golpe não teve condições de manter um governo
estável. Em meio a muita instabilidade, Sidónio Bernardino Cardoso da
Silva Pais (1872-1918), militar e político, assumiu, em dezembro de
1917, a presidência da República, suspendendo e alterando de forma
ditatorial normas essenciais da Constituição de 1911, razão pela qual
ficou conhecido com o Presidente-Rei. Foi um governo de grande
instabilidade que culminou, a 14 de dezembro de 1918, com o assassinato
de Sidónio País, em Lisboa, no momento em que partia para o Porto, na
estação do Rossio. II Tipo messiânico e caricato, mas que não diferia muito dos líderes
portugueses - e mesmo europeus - do seu tempo, Sidónio Pais, direitista,
não merece mais do que algumas poucas linhas em qualquer livro de
história de Portugal. E só tem o seu nome ressuscitado num título de
livro hoje porque um poeta da grandeza de Pessoa perdeu seu tempo e
talento em reverenciar sua memória. De qualquer modo, ao manifestar sua admiração por um chefe carismático,
Fernando Pessoa estava antenado com as tendências predominantes em seu
tempo - as outras tendências estavam à esquerda: anarquismo e comunismo.
Por isso, não se pode imaginá-lo um democrata. Seria, isso sim, um
antidemocrata pagão, como o definiu Ruy Miguel, ao dar esse título à
coletânea em que reuniu textos pessoanos sobre política e doutrina
estética (Lisboa, Nova Arrancada, 1999), ou, como ele mesmo se
autodefiniu em Páginas de Doutrina Estética, "um nacionalista místico,
um sebastianista racional". Foi o que o levou a imaginar Sidónio Pais como um novo Desejado, um D.
Sebastião, que viria numa manhã de nevoeiro para libertar Portugal e
levá-lo ao seu grande destino. É de lembrar que Sidónio Pais pertencia a
um grupo de direita que, em fins de 1917, opunha-se à participação de
Portugal na I Grande Guerra. Um decreto ditatorial modificou a forma de
eleição do chefe do Estado e Sidónio Pais foi eleito presidente da
República pelo sufrágio universal e direto, o que constituiu a primeira
experiência presidencialista em Portugal, que, no fim das contas, durou
pouco. Seu assassinato causaria uma comoção semelhante à que se daria no
Brasil em 1954, com o suicídio do presidente e ex-ditador Getúlio
Vargas. Como se sabe, a morte repentina e em condições trágicas sempre
contribui para a "canonização" da vítima. Alma sensível, Fernando Pessoa, aparentemente, fez essa defesa de um
governo forte baseado na opinião pública levado por essa comoção popular
que sentia ao andar pelas ruas da Baixa e do Bairro Alto em Lisboa. Mas
não se pode dizer com todas as letras que tenha sido fascista. O que
defendia era uma monarquia ideal baseada na opinião pública que, para
ele, aliás, não passava de uma "superstição verbal". Por isso, imaginou
que Sidónio Pais poderia ter sido esse rei escolhido pelo voto popular. (...) E, porque foste, confiando
Em QUEM SERÁ porque tu foste,
Ergamos a alma, e com o infando
Sorrindo arroste,
Até que Deus o laço solte
Que prende à terra a asa que somos
E a curva novamente volte
Ao que já fomos,
E no ar de bruma que estremece
(Clarim longínquo matinal!)
O DESEJADO enfim regresse
A Portugal! Para se entender este poema, o ideal é que o leitor tenha à mão também
os textos de Páginas de Doutrina Estética, que vieram à luz em 1947, e
de O Interregno - Doutrina e Justificação da Ditadura Militar em
Portugal. Talvez possa concluir que o poeta como pensador político tenha
sido contraditório ou ingênuo. Mas, antes de chegar a essa conclusão,
deve levar em conta que não é a forma que define um bom governo, mas o
seu caráter. Uma república com parlamento aberto pode ser tão opressora,
despótica e corrupta quanto uma monarquia absolutista como aquelas que
ainda hoje existem no Oriente Médio. Exemplos não faltam.
III Brunello De Cusatis é professor associado e responsável pela cátedra de
Literatura Portuguesa e Brasileira e de Língua Portuguesa e Brasileira
da Faculdade de Letras e Filosofia da Universidade Perúgia, Itália. Além
de publicar numerosos artigos em jornais e revistas especializadas,
preparou a tradução para o italiano de várias antologias de escritores
lusófonos, como os angolanos José Eduardo Agualusa e João Melo, o
português Mário Claúdio e os brasileiros José Clemente Pozenato e Sérgio
Faraco, todos publicados por Morlacchi Editore, de Perúgia. Em relação a Fernando Pessoa, organizou o volume Scritti di Sociologia e
Teoria Política (Roma, Settimo Sigillo, 1994), Politica e Profezia.
Appunti e Frammenti 1910-1935 (Roma, Antonio Pellicani, 1996) e Economia
& Comercio. Impresa, monopolio, libertà (Roma, Ideazione, 2000). De Cusatis é ainda autor da monografia O Portugal de Seiscentos na
"Viagem de Pádua a Lisboa", de Domenico Laffi. Estudo Crítico (Lisboa,
Editorial Presença, 1998), Tra Italia e Portogallo. Studdi
storico-culturali e letterari (Roma, Antonio Pellicani, 1999), e
Esoterismo, Mitogenia e Realismo Político em Fernando Pessoa (Porto,
Edições Caixotim, 2005). |