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REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
Nova Série | 2011 | Número 10
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É
preciso mais e mais desenterrar os mortos,
para
deles extrair futuro.
Heiner Müller
O
contexto teatral português – indistinto, em termos gerais, do brasileiro
e também do europeu – é marcado pela “continuada subalternização do
papel das mulheres, sobretudo no que diz respeito a questões de
autoria e cargos de direção com visibilidade”, como assinala
Eugénia Vasques (2001; negrito no original) e, de outro lado, por uma
expressiva atuação no feminino, já desde os primeiros anos do século XX
– não desconsiderando o período formativo desta atuação, no século
anterior, momento em que, aliás, registra-se certo fluxo da produção
autoral de mulheres para o Brasil.[1]
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DIREÇÃO |
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Maria Estela Guedes |
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VALÉRIA ANDRADE
Era uma vez Inês: o(s) mito(s)
desnudo(s) na dramaturgia portuguesa
de autoria feminina |
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Este texto é resultado parcial do projeto de pesquisa
“Inês é viva!”: a
paixão amorosa na dramaturgia portuguesa contemporânea de autoria
feminina,
desenvolvido na Universidade do Algarve (Faro, AL), entre novembro
de 2007 e março de 2008, com bolsa de estudos da Fundação Calouste
Gulbenkian. |
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Nas palavras de Eugénia
Vasques (2001), “o lugar da dramaturgia portuguesa no feminino” se
afirma entre as décadas de 1930 e 1960, extenso período, ao final do
qual, entre os anos de 1952 e 1957-58, tem-se a irrupção de uma nova
geração de autoras, a marcar, sobretudo pela singularidade de sua
escrita, o território da dramaturgia portuguesa àquela altura e deixando
entrever parte das trilhas por onde seguiria o teatro a partir da década
de 1960. Neste contexto, ao lado de uma produção corajosa e provocadora
assinada por Natália Correia e por Agustina Bessa-Luís, destaca-se a de
Fiama Hasse Pais Brandão, que viria a ser, ainda segundo Eugénia
Vasques,
a
promotora, desde a sua estreia, em 1957 (Em Cada Pedra um Vôo Imóvel:
Recitações Dramáticas), de uma escrita poética, contaminada pelos
modelos do absurdo e da tragédia coral (então ainda em voga), e mais do
que as outras, mesmo que Natália Correia, arredada do cânone
aristotélico e portadora, desde logo, de conhecimentos práticos das
linguagens teatrais da sua actualidade (VASQUES, 2001, p. 31).
Após uma breve etapa de
transição, entre 1961 e 1973 – durante a qual o fazer teatral, seja na
escrita, seja na cena, se elabora a partir de dois olhares distintos,
acolhendo experiências de autoras mais politizadas e afinadas com as
linguagens teatrais do seu tempo –, anuncia-se a profunda mutação que
viria a se operar na cena teatral portuguesa entre os anos de 1987 e
1992, com a eclosão de uma consciência estética fundada na redefinição
dos limites do que se concebe como escrita de teatro. Dentre as
mais de vinte escritoras que fazem sua estreia como autoras de teatro
neste curto espaço de tempo, começam a ganhar projeção, entre outros
nomes, como Hélia Correia e Luisa Costa Gomes, os de Maria Estela
Guedes, com O Lagarto do Âmbar, e Eduarda Dionísio, que em seu
Antes que a noite venha, de 1992, revisita as figuras trágicas de
Julieta, Antígona, Inês de Castro e Medéia, reinventadas na voz
monologal de mulheres ex/cêntricas, inclusive pelo lugar social
periférico que ocupam.
Convergindo para um
projeto estético que, entre outros procedimentos, assume o estatuto de
autoria textual e, de outro lado, assimila e atualiza a noção de
adaptação – então retomada como gênero escritural no início da
década de 1960, a partir da inserção do conceito de teatro épico –,
Eduarda Dionísio e, mais recentemente, Fiama Hasse Pais Brandão e Maria
Estela Guedes ganham projeção neste contexto da dramaturgia no feminino,
como também no cenário nacional, na medida em que propõem rediscutir a
figura legendária de Inês de Castro, agregando-lhe novos sentidos
suscitados pela contemporaneidade de uma cultura que vem, ao longo de
séculos, remodelando-se numa imagem mítica de muitas faces, projetada
pelo drama passional vivido, veridicamente, por Pedro e Inês.
Contada e recontada,
lida e relida, encenada e reencenada vezes sem fim, esta narrativa
fundadora e emblemática do ser português é revisitada pela
produção dramatúrgica destas autoras, de uma perspectiva estética que
enseja leituras crítico-interpretativas focadas teoricamente nos Estudos
de Gênero, em sua vertente que investiga novas concepções de
feminilidades e masculinidades e, de outro lado, nos Estudos de
Dramaturgia e Teatro, desde o eixo que problematiza as formas híbridas
do texto teatral contemporâneo. |
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Um novo texto dramático
em Portugal |
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Confinado por longo
período histórico a uma minguada faixa do território estético-cultural
de Portugal, o texto dramático vem, nas últimas décadas, como já
referido, alargando seus limites e inserindo-se na dinâmica teatral do
país desenvolvida nos anos imediatamente posteriores à Revolução
dos Cravos. Inversamente ao movimento realizado no período entre o
Segundo Pós-Guerra e o Abril de 74, a cena nacional, num impulso de
ruptura com a dependência dos modelos dramatúrgicos importados, volta-se
para a montagem de textos clássicos portugueses – de Gil Vicente a
Almeida Garret, passando por António Ferreira e sua Castro – e
para a criação e a consolidação de uma dramaturgia produzida por
portugueses sobre portugueses, com o apoio, embora precário e nem
sempre bem sucedido, das políticas de incentivo (SERÔDIO, 1997).
Mesmo aproximada de
autores exponenciais da dramaturgia do século XX, como Arthur Miller,
García Lorca e Bertolt Brecht, a produção de um autor como Bernardo
Santareno indicia, dialeticamente, o esforço de construção de novas
experiências, com olhos voltados para modelos exógenos e para a
releitura dos assuntos nacionais, marcando a necessidade de
auto-identificação da sociedade portuguesa – num esforço de reconhecer
sua cultura, sua dor, seus sonhos –, traduzida, pela dicção
santareniana, na articulação irremediável do trágico com o social, em
que aflora um protagonismo feminino, enunciador das tensões e mudanças
nas relações sociais, sobretudo as de gênero, daquele contexto
histórico.[1]
Reveladora da busca
identitária então desencadeada mais amplamente no país, esta renovação
da cena teatral portuguesa será marcada, principalmente a partir de fins
da década de 1980, por novas temáticas e novas perspectivas de
interpretação e encenação teatral, assimiladas nos novos espaços de
formação, abertos, por exemplo, pela Escola Superior de Teatro e Cinema,
em Lisboa, e pelo CENDREV, antigo Centro Cultural de Évora. Em meio a
este processo, adotando-se o procedimento em vigor já há algum tempo no
contexto europeu, questiona-se a figura do encenador, levando-o a atuar
numa espécie de co-autoria com as figuras do dramaturgo e do ator. A par
do novo estatuto de cada elemento desta tríade criativa, o texto e
também o processo de sua escrita recuperam o lugar de relevância no
contexto da criação teatral (PORTO, 1997).
Helder Costa será um dos
iniciadores da nova tendência, com a encenação de É menino ou menina?,
composição cênica sobre textos de Gil Vicente, criada em 1980 para A
Barraca, grupo independente, de bastante projeção neste cenário, ao lado
de O Bando, Comuna, Teatro da Cornucópia e Teatro Experimental de
Cascais, entre outros. Antes disso, em 1967, Luzia Maria Martins, uma
das fundadoras do Teatro-Estúdio de Lisboa, escreve e encena Bocage,
alma sem mundo, texto de feições épicas, numa linha precursora em
relação às novas concepções da escrita para teatro.
Aberto, pois, o espaço
para os processos de elaboração dramatúrgica fundados na improvisação e
na pesquisa cênica, tanto quanto na adaptação ou recomposição de textos
vários para o palco – incluindo poemas e narrativas –, inúmeras
experiências são desenvolvidas nesta direção, dando surgimento a um
conjunto de novos valores no universo da dramaturgia portuguesa.
Artistas ligados à cena,
uns mais diretamente, outros menos, circunscrevem importante espaço de
exercício criativo, marcado pela eclosão de intenso diálogo entre o
fazer dramatúrgico e o cênico. Nesta dinâmica autoral entre o palco e o
papel, com ênfase no trabalho de adaptação, assimilado e atualizado a
partir da inserção, desde a década de 1960, do conceito de teatro épico,
são atuações de destaque a de Luzia Maria Martins, com Cesário, quê?
(1986), recriação do universo poético de Cesário Verde, e a de Luiz
Miguel Cintra, ator e encenador do Cornucópia, cuja produção inclui A
margem da alegria (1996), criado sobre poemas de Ruy Belo.
Compõem, ainda, esta
nova vertente dramatúrgica, duas atrizes: a também encenadora Isabel
Medina, uma das fundadoras do grupo de teatro Escola de Mulheres, que
escreveu e encenou As mulheres no Parlamento (1999), adaptado de
Aristófanes; e Maria Emília Correia, co-autora com Gastão Cruz de O
avião de Tróia, adaptação cênica dos jogos surrealistas da poesia de
Luiza Neto Jorge. De singular inventividade nesta linha, o trabalho de
dramaturgismo do encenador João Brites tem resultado em experiências
inovadoras de releitura cênica da produção de poetas e ficcionistas
nacionais, realizadas com O Bando: Montedemo (1987), sobre
narrativa homônima de Hélia Correia, co-autora na dramaturgia; Bichos
(1990), sobre contos de Miguel Torga e Liberdade (1994), a partir
de textos de Sophia de Mello Breyner Andresen.
Dentro desta proposta de
escrita para teatro mediada pelos processos de adaptação, um espaço
particularmente significativo será ocupado, desde fins da década de
1970, por uma constelação de autoras, vindas, em grande parte, de outras
práticas literárias. Marcando um percurso estético em relação aos novos
limites conceituais do texto de teatro, esta incursão da autoria
feminina no universo da dramaturgia portuguesa ganha visibilidade com
uma produção assinada por escritoras de renome na poesia e no romance,
entre elas Luiza Neto Jorge, Yvette K. Centeno, Agustina Bessa-Luís e
Maria Velho da Costa, sem esquecer que a dramaturgia destas autoras
também inclui textos produzidos ao largo das propostas de adaptação. A
este conjunto, somam-se muitas outras autoras, entre elas várias
atrizes, como Maria do Céu Guerra, que assina O menino de sua mãe
(1989), uma adaptação de textos de Fernando Pessoa, e Teresa Faria,
autora de Eurípedes para duas mulheres (1996), trabalho de
dramaturgia a partir de vários textos do tragediógrafo grego que
tematizam o universo feminino (VASQUES, 2001).[2]
Em posição singular
nesta constelação, figuram autoras que, além de aderirem aos novos
processos de escrita ligados à adaptação, convergem em torno de um
projeto estético que assume, entre outros procedimentos, o estatuto de
autoria textual. Uma delas, conhecida, desde a década de 1980, como
romancista, é Luísa Costa Gomes. Autora de uma composição dramatúrgica
de textos de António Vieira (Clamor, 1994), seu percurso pelo
campo do teatro, empreendido com olhos atentos aos lugares do feminino
na contemporaneidade portuguesa, multiplica-se em experiências que vão
da escrita de textos para o público infanto-juvenil (Vanessa vai à
luta, 1998) a libretos para ópera (O corvo branco, 1998),
passando por uma escrita especialmente desprendida da dramática
tradicional (Nunca nada de ninguém, 1991; José Matias,
entretém para quatro mulheres, 2002) e incluindo a autoria cênica (E
agora, outra coisa: comédia para um actor; Libentíssimo: recital
satírico de música e poesia, 1999).[3]
Comunga deste esforço de
abrir trilhas para o novo, seja em propostas formais e temáticas, seja
em perspectivas estético-ideológicas, a citada Maria Estela Guedes,
nomeadamente em A Boba (AB, 2006),[4]
monólogo que marca o espaço de reinvenção da narrativa mítico-histórica
sobre Inês de Castro aberto contemporaneamente no campo da dramaturgia
com acento na discussão das novas relações de gênero em emergência no
contexto sociocultural português. Compartilhado, sobretudo, por autoras
interessadas em investigar as novas feminilidades e masculinidades
surgidas em Portugal nas últimas décadas, conforme já referimos,
este espaço ganha singularidade com a proposta feita por Maria Estela
Guedes de “pôr o mito a nu” (GUEDES, 2007, p. 10.), como talvez nunca
antes se tenha ousado. Em sua direção empreendemos a leitura a seguir. |
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Uma mesma e outra
história “até ao fim do mundo” |
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Pelos quatro cantos da
Europa e também um pouco por todo o mundo ocidental, uma das histórias
mais repetidas, desde fins da Idade Média, é a de Dona Inês de Castro,
coroada Rainha de Portugal depois de morta. Do vivido para o imaginado,
a trama passional entre Pedro e Inês sobrevive desde então e habita o
terreno movediço da palavra, seja em prosa, seja em verso, sob a forma
de crônica, poema, conto, registro histórico, romance, tragédia, carta,
cantiga, etc. De Fernão Lopes e Garcia de Resende até uma significativa
produção contemporânea que inclui o texto escrito para o palco,
transmutar o episódio factual em matéria verbal, seja ela ou não de
caráter estético, tem sido uma atração irresistível para autores e
autoras desde meados do século XV.
Tecido por entre
segredos e desvãos de um contexto de clandestinidades e disputas de
poder, o episódio inesiano, a um só tempo esfíngico e aberto ou, melhor
dizendo, cheio de vazios, é matéria-prima perfeita para escritos
híbridos de realidade e imaginação. Ou seja, faz-se palavra que, ao
optar por ser História, deixa-se seduzir pela subjetividade e, de outro
lado, ao se fazer Poesia, permite-se envolver nas teias da objetividade.
Manuel de Faria e Sousa e Agustina Bessa-Luís estão entre os nomes
emblemáticos desse ir-e-vir autoral pelos territórios do poético e do
histórico, como já bem destacou Maria Leonor Machado de Sousa (2005).
Faria e Sousa, um dos
grandes divulgadores d’Os Lusíadas – e talvez o mais notável
historiador português seiscentista –, incorpora em seu relato a coroação
póstuma de Inês, validando-a como cena final possível do episódio. Pela
voz do historiador, a cerimônia – com o beija-mão e trasladação do
“cadáver coroado” –, é sancionada como ato mais que simbólico, sendo
desde então divulgada como tal no restante da Europa, antecipando o que
a tragédia espanhola se encarregaria de fazer amplamente, inspirada por
Jeronimo Bermudez, autor de Nise Laureada (1577, em que o
episódio macabro aparece pela primeira vez, configurando-se, como espetáculo, “demasiado sanguinária e desagradável”, segundo avalia Maria
Leonor Machado de Souza (2005, p. 111). Reconhecidamente o elemento mais
original da lenda inesiana, de maior impacto dramático e que mais
repercute no imaginário popular e singulariza a trama de Pedro e Inês, a
coroação da Rainha Morta está em todas as tragédias espanholas do século
XVII que provavelmente foram conhecidas em Portugal. Contudo, registros
de sua adoção pela dramaturgia portuguesa só aparecem no século
seguinte, em adaptações do texto de Luiz Vélez de Guevara, Reynar
después de morir (1644), das quais se destaca Tragedia de Dona
Ignez de Castro (1772), de Nicolau Luís, escrita, ao que consta, em
1760.
De outro lado,
Bessa-Luís, com suas Adivinhas de Pedro e Inês, tenta unir as
pontas soltas da história, destrançando, com mãos de poeta e de
biógrafa, os fios da trama medieval de amor e morte envolvendo um
infante do reino português e uma dama espanhola, aia dileta de sua
esposa. A romancista encontra nas Ordenações Afonsinas uma das chaves da
charada em que se transformou o amor de Pedro e Inês. Charada sui
generis que, por não ter uma verdade única, admite o jogo de velar e
revelar inúmeras meias-verdades, enunciadas por uma esfinge múltipla,
cujos duplos se dividem entre os de carne e osso, que com ela partilham
a cena da realidade historicamente vivida, e os de matéria simbólica –
transmutados ou não da realidade factual –, com os quais coabita uma
realidade culturalmente necessária.[6]
Igualmente emblemático
da palavra híbrida de História e Poesia com que se tem recontado o
enredo inesiano é o nome de Maria Estela Guedes e, não por acaso,
Agustina Bessa-Luís aparece como sua interlocutora privilegiada, ou
antes, como uma das vozes com quem Maria Miguéis, personagem-título de
AB, estabelece diálogo. A proverbial assertiva da narradora das
Adivinhas de Pedro e Inês, de que “a História é uma ficção
controlada”, ganha citação textual no segundo momento do monólogo
(Segunda Insônia), em seguida à rubrica que refere o lugar ocupado pela
protagonista praticamente durante toda a ação – a tecla CTRL de um
computador gigante:
(Faz
um gesto vago e vai postar-se sobre a tecla do CTRL)
A
História, diz Agustina, a cronista, é uma ficção controlada. E eu que o
diga, eu que o bobe. Controla quem pode. Controla quem tem poder para
que se divulgue e publique só isto ou aquilo. Controla quem manda
escrever cartas fundadoras, séculos depois da falsa data de redacção.
Controla quem manda forjar falsas declarações de casamento, controla
quem manda assentar falsos registos de baptizado, controla quem
falsifica dados biográficos, controla quem inventa macroscincos,
unicórnios e sereias. (AB, p. 216)
Não sendo propriamente
adaptação, reescrita ou atualização dramatúrgica, AB
estrutura-se, contudo, como texto compósito, de várias vozes autorais –
de vários momentos históricos –, tornadas uma só com o objetivo
declarado de desestabilizar o universo mítico-histórico habitado por
Inês de Castro pela inclusão de uma personagem até então desqualificada
como sujeito histórico. Fazendo do seu monólogo um discurso compartilhado com autores e
autoras que recriaram o caso inesiano, Maria Miguéis declara, alto e bom
som, ser a responsável por toda a trama por trás dos acontecimentos que
culminaram no final trágico da Castro. E quem é essa
personagem, que, a despeito de um papel de tal monta, atravessa seis
séculos e meio de história – seja a factual, seja a ficcional – e chega
ao século XXI completamente incógnita? Quem é Maria Miguéis? Ou, para
levantar uma dobra desta pergunta: quem tem medo de Maria Miguéis?
De início, Miguéis é
pelo menos duas. É uma anã, boba da corte de Afonso IV, a quem sua dona,
a rainha D. Beatriz, deixou, em testamento, trezentas libras – conforme
registra o Conde de Sabugosa nas Provas (Tomo I) da História
Genealógica, citadas em epígrafe por Estela Guedes. A condição de
objeto de entretenimento, sobretudo pelas anomalias de que é portadora –
“o animal doméstico […] o brinquedo de damas e infantes […], a peça de
mobiliário […] que se deixa em testamento aos filhos […] a que se exibe
aos convidados para os espantar e fazer rir” –, como também a situação
de excentricidade perante a norma e o lugar social que ocupa, abrem-lhe
a possibilidade simbólica para se reinventar gigante, avesso de si
mesma. Nesta ou naquela condição, mantém-se a conformação anormal do seu
ser (“os anões e os gigantes / é que são todos diferantes” [AB,
p. 218], como cantarola a certa altura), contudo essa figura
diferante e dada a bufonarias é alguém e alguém com
poder de mando, como reitera em vários momentos de seu discurso: “[…]
mal vós sabeis / que por causa minha / recebeu morte / D. Inês de
Castro. […] É que por detrás da morte dela estou eu… […] EU SOU A CAUSA
DA TRAGÉDIA, FUI EU QUEM TRAMOU TUDO! […] ESTOU POR DETRÁS DE TUDO! […]”
(AB, p. 213, 217, 227). E alguém que não dissimula as razões de
quem escolhe estar sobre o botão do controle:
Controla-se para quê? Para mandar, está visto. Para legitimar
filhos, para dar direito de partilha a este ou àquele. Para disfarçar
mazelas, para avisar os parceiros. Controla-se para fazer currículo.
Controla-se para ganhar, controla-se para perder o inimigo.
Controla-se para revelar e para esconder. (AB, p. 216-217;
sem grifos no original)
Identificada à natureza
compósita da sua fala, a Maria Miguéis que se dá a conhecer à medida que
avança seu discurso é personagem múltipla, híbrida de eu e de
outro, de tudo e de nada, de realidade
historicamente vivida e verdade culturalmente necessária,
ultrapassando uma suposta dualidade que marca o início de sua aparição
no palco. Saída
da lixeira de um computador gigante conectado à Internet, uma mulher anã
irrompe a cena descendo os degraus que formam o teclado da máquina e
leva uma queda; salta-lhe da boca uma faísca de grosserias dando o tom
do testemunho a que viera: “Porra! Porrinha! Porrice! Isto começa mesmo
bem!”. (AB, p. 209)
Em seguida, assumindo uma pose solene incompatível com o linguajar
usado, a anã endireita-se e vai sentar-se na tecla CTRL, dali trazendo à
cena, com sua voz, o poeta das Trovas à morte de D. Inês. Com
elas propõe um inusitado who’s who entre a Colo de Garça e ela,
Maria Miguéis, cujo desdobramento ocupará a primeira das três “insônias”
que compõem sua fala. Ambas “pequeninas” – uma pela faixa etária entre
infância e juventude (“Eu era moça, menina”, como a viu Garcia de
Resende), a outra pela anomalia física (“quase preciso de escada / para
me sentar no penico” [AB, p. 211]), como se descreve a Miguéis)
–, a anã terá sido, conforme auto-avalia, tão digna quanto a Castro, de
seu “mal ser o revés” e já a essa altura começamos a nos inteirar das
razões da boba para tramar-lhe a morte.
Prosseguindo nesta espécie de especulação comparativa, Maria
Miguéis sai pisando em terreno escorregadio e evoca o período em que
Pedro e Inês conviveram maritalmente, após a morte de Constança,
comentando, ambiguamente, o gosto especial com que Inês se dedicava às
atividades da vindima e, de outro lado, a sua própria participação nessa
atividade, realizada com as vantagens de quem podia dispensar o
movimento corporal simbolicamente aviltante de agachar-se:
Como
ela gostava de vindimar,
A
minha querida Inês!
Lá
nos vinhedos da Atouguia
Enquanto D. Pedro se entretinha
A
excitar touros ferozes
E a
saltar-lhes para a espinha.
Enquanto isso, querida Inês,
Agachavas-te para cortar os cachos
E
lambias os dedos gostosos.
Também eu vindimei, mas direitinha.
Vantagens de ser anã:
Não
preciso de me agachar
Para
ir directa à uva fina. (AB, p. 211-212)
A alusão à face dionisíaca da Linda-Inês cumpre bem o intento da
boba de nos fazer perder o sono – e assim, postos em desassossego,
passamos a duvidar da imagem sacralizada da Castro, imortalizada como
virgem imaculada, inclusive literalmente na estátua jacente esculpida
por ordens do amante saudoso. Nesse movimento sutil, a anã propõe
desentronizar a Rainha Morta,
despindo-a das vestes apolíneas de cordeira sacrificada, embora também
indiciadoras da sua condição de manceba, “a mais amada de Portugal”,
como referida por Maria João Martins (1994, p. 11). O estrondo de queda,
ouvido na parte final da Terceira Insônia, em seguida à confidência da
boba de que muito tem aprendido em sua estadia na Internet, onde tem
lido o que nunca esperara ler sobre seus antigos amos, D. Pedro e D.
Inês, sugere o desmoronamento do reino-do-amor-até-ao-fim-do-mundo
instituído pelo célebre casal de amantes, dando conta, afinal, de que
sua proposta de destronar a Castro se realizara. Contraditória, porém,
Maria Miguéis, depois de prestar atenção ao som estrepitoso, nega com um
gesto que tenha sido ela a culpada.
Cronista alternativa, hospedada temporariamente no cyberspace,
ocupando a lata do lixo informático, a boba da corte afonsina se dá ao
acesso para revelar publicamente suas implicações no caso Inês de Castro
– para reconstituir, portanto, uma história de que participou como
testemunha ocular e auditiva, o que lhe autoriza, portanto, narrá-la.
Recusando a condição de objeto a que esteve submetida em seu tempo e o
apagamento sistemático que sobre ela se fez até nossos dias, Maria
Miguéis exige o reconhecimento de que pessoas anormais também têm
direito à História:
Sou anã, chego tão-só às vossas perninhas…
E não vos regalais com isso?
Não é por vos chegar à foz e aos baixios
Que deixo de ter alma,
Nem por isso deixo de ser sujeito do que digo
E por tudo isto, como os outros anormais,
Também tenho direito à História.
E mais, mal vós sabeis
Que por causa minha
Recebeu morte
D. Inês de Castro. (AB, p. 213)
Chegada à era contemporânea e suas impermanências, a boba-cronista
incorpora camaleonicamente, no discurso que a institui, as fronteiras
movediças de um mundo que se desfaz e refaz o tempo todo em ritmo
acelerado e, num ir-e-vir entre o global e o local, entre o universal e
o particular, acaba tornando-se uma única e imensa zona de fronteira, por onde
transitam e negociam diferentes identidades. Ensaiando respostas ao
desassossego de portuguesas e portugueses postos neste local de trânsito
em busca identitária, Miguéis assimila a proposta de reciclagem tão cara
à contemporaneidade e age orientada para uma nova ordem, advinda da
mistura – pautada, portanto, no princípio do diálogo entre diferentes e
em sintonia com as proposições da crítica feminista alicerçada na
importância de pensar através da diferença (BRAIDOTTI, 1997 apud
MACEDO; AMARAL, 2005).
Neste sentido, as
estratégias de Maria Estela Guedes, seja em termos formais, seja na
dimensão simbólica, são conduzidas de modo a permitir o livre trânsito
de diferentes num só espaço. A começar do monólogo em si: monólogo
dramático, que, portanto, sendo fala narrativa, aos moldes europeus
medievais, pretende-se ação dramática e que, pretendendo ser fala
monologada, é um mosaico de falas/vozes, de que participam António
Candido Franco, Herberto Helder, Bocage, Fernão Lopes, Camões, António
Ferreira, Fiama Hasse Pais Brandão, Gondin da Fonseca, Alfred Poizat,
além da própria Estela Guedes e dos já referidos Garcia de Resende,
Conde de Sabugosa e Agustina Bessa-Luís. AB é, portanto, um
monólogo-diálogo, bem ao gosto medieval, cultivado entre outros, por Gil
Vicente, a exemplo do que temos no Pranto de Maria Parda,[7]
cujo eco, aliás, se vê em falas da Miguéis, como já notou Eugénia
Vasques (2006). Além disso, a interlocução da anã se estabelece, em
vários momentos e alternadamente, com as personagens centrais da
história que ela reconta e com o público leitor/espectador. Na Primeira Insônia, como se lê
nas duas estrofes citadas acima (AB, p. 211-212), a anã dirige-se
ao público na primeira, a Inês na segunda, e novamente ao público no
restante das demais estrofes, ora designando-o de forma coletiva (“E a
vós, ó multidão, / dou-vos por onde, por onde?” [AB, p. 212]),
ora distinguindo seus diferentes grupos: senhoras, meninos, meninas,
gentis cavalheiros e senhoras. O procedimento se repete nas duas Insônias seguintes. Na Segunda, a boba fala ao público e a Afonso,
passando de um interlocutor a outro sem fazer qualquer distinção,
falando ao coletivo e ao indivíduo como se fosse a um só, a exemplo do
trecho subsequente:
[…]
Não, senhores, não, não foi por politiquices que a degolaram. A minha
Inês querida morreu por paixão.
[…]
Sabei
então que eu, Maria Miguéis anã, boba de corte que fui, e boba que
continuo a ser, agora republicana, durmo num caixote do lixo
informático, em que ratos vêm mesterricar! Sim, mas tratei por tu os
príncipes, e até por primo o Bom Primo Francisco I…
Bom
primo Afonso IV… Anda cá, então tu, ó desmiolado, mandaste degolar o teu
irmão bastardo? Argumentando que ele padecia de deficiências
vergonhosas? Ora, ora, ora… (AB, p. 217)
Na última Insônia, a
mira da anã volta-se para Pedro, não interrompendo, porém, a
interlocução com o público, em que agora designa “senhores, donzelas e
cavalheiros, gentis macacos e meninos” (AB, p. 227). Tais
vocativos, enunciados imediatamente após um relato sobre monstros e
monstruosidades das cortes do seu tempo e posteriores, que citamos
abaixo, reiteram a intenção de esfumar fronteiras entre o individual e o
coletivo, como também entre “diferantes” medievais e contemporâneos:
Tantos monstros que vi na corte de D. Manuel… Viviam em gaiolas, ao pé
dos papagaios e dos macacos: anões, marrecas, atrasados mentais, outros
nascidos sem pernas. Mais tarde, mas isso foi bem mais tarde, apareceu
aí um tipo na Alemanha que mandava exterminar a minha gente. Ah, és
corcunda? Ala, para a câmara de gás! Era para não se reproduzirem,
porque os filhos dos anões podem nascer anões, e ele queria uma raça de
pessoas normalizadas.
E tu,
Pedrinho? E tu, Afonso? E tu, Pedro de Castela, mais Cru ainda que os
teus parentes de Portugal? Tu obrigavas a tua mãe, a formosíssima Maria,
a assistir às tuas execuções! Degolavas na praça pública, pelas tuas
próprias mãos. E querias que a tua mãe visse, querias que ela cheirasse
o vapor dos corpos mutilados, caídos nas poças de sangue! (AB, p.
226-227)
Sujeito nômade, Maria
Miguéis transita livremente também por entre o verso e a prosa – fazendo
ecoar novamente a estética do seu tempo – e, ainda, de outro lado, por
entre o trágico e o cômico. Com sua irreverência e sua fobia de
territórios muito demarcados, AB desafia o mito do Amor Eterno,
ridicularizando-o, obrigando a tragédia inesiana a olhar-se e rir da sua
própria aberração. Em sua errância discursiva, a cronista, sem retirar
de cena os heróis típicos desta forma dramática, subtrai-lhes toda a
pompa e nobreza pela exposição ao público de sua contraface monstruosa.
Atos de violência e selvageria, atos de covardia, ciúmes e pavores,
desvios de personalidade e de comportamento, disfunções físicas,
segredos de uma intimidade individual e familiar atormentada na corte
afonsina, envolvendo, sobretudo, as relações conflituosas entre pai e
filho – tudo a cronista traz à baila, operando, em particular, no
sentido de despir suas figuras do modelo de masculinidade patriarcal
que, mesmo já esgarçado pelo caráter plural e de construção das formas
contemporâneas de viver o masculino e o feminino, ainda encontra
sociedades, como a portuguesa – e, aliás, também a brasileira –, que o
mantêm como padrão. Não se dispensa a citação, mesmo longa, de um
fragmento exemplar desta ronda nômade da boba, em meio à qual vão sendo
também esbatidas as fronteiras entre o sublime da fábula mítica e o
grotesco da sua narração, eivada de expressões chulas e alusões
escatológicas:
Não,
a tua mãe, D. Isabel, protegeu os bastardos e as mães dos teus irmãos
bastardos. Não é realmente uma santa?
[…]
Desgraçado, é só de sangue a cama em que te deitas. A do teu filho,
então, a mais do sangue, ainda tem mijo, suor e trampa. Édipo enviesado,
meu cobarde! Não tiveste colhões para cravar o punhal no peito do teu
filho, tiveste de mandar os esbirros feri-lo, matando a minha Inês de
Castro!
Fi de
puta ruim, que não sabias quem eu era, mamarracho! Tu não viste que o
teu filho deixou D. Inês desprotegida, a casa de portas escancaradas,
para que os teus assassinos a apanhassem?
Bruto, tão brutinho, este D. Afonso IV… Uma vez agrediu o príncipe D.
Pedro, ainda criança. Por nada, foi um ataque de raiva, o puto tinha ido
ao pote da marmelada. Deu-lhe um pontapé no rabo, o rapaz foi projectado
contra a parede, espirrou-lhe logo o sangue do nariz. A pobre mãe, D.
Beatriz, minha senhora, ficou petrificada.
(Pausa)
Ora
porra, Afonso! Essas coisas não se fazem! Caraças, os irmãos bastardos
são para tratar bem. Não é de boa política mandar bengalas para a
fogueira, ficando depois sem lobby debaixo das calças.
E ao
teu filho pregaste as mesmas partidas. Sempre a rainha a separar-vos,
para não vos comerdes vivos! Tanto atormentaste o rapaz, em tanta guerra
vos arrancastes os cabelos, que ficou gago. De noite, com os pesadelos,
D. Pedro mijava na cama, e uivava como um lobo desmamado: “Ahuuuuu!
Ahuuuuuu! Ahuuuu!”
(Canta com voz operática)
“Aves sinistras
Aqui piaram
Lobos uivaram,
O chão tremeu.
Toldam-se os ares,
Murcham-se as flores:
Morrei, Amores,
Que Inês morreu.”
(Bocage) (AB, p. 219-220)
Consciente da
transitoriedade da sua versão, construída como alternativa da ‘tragédia
oficial’ fundadora da identidade portuguesa, Miguéis encerra seu relato
tal qual o iniciou, ou seja, sem pretender proclamar uma verdade final e
universal: “Se concederdes em descer do pedestal / para ouvir uma
anormal, / conto-vos a história minha…” (AB, p. 210). À cena
final do último quadro de AB, lado a lado com o então El-rei, a
anã avisa-o de sua fome e a este seu comando, mais uma vez, a história
se faz, ecoando os versos do poeta:
Gosto
deste rei louco, inocente e brutal.
[…]
-
Senhor, agradeço-te a minha morte. E ofereço-te a morte de D. Inês. Isto
era preciso, para que o teu amor se salvasse.
-
Muito bem, responde o rei. – Arranquem-lhe o coração pelas costas e
tragam-mo.
(Herberto Helder) (AB, p. 234)
“E assim foi feito” –
declara a Miguéis antes de subir os degraus do teclado e desaparecer na
lixeira do computador.
Narradora diferante,
AB compartilha sua voz de mulher ex/cêntrica com eus de
diferentes espaços-tempos, pactuando, portanto, com a parcialidade, o
impuro e o imperfeito, numa aproximação com o ciborgue que somos já
algum tempo, conforme nos faz ver Donna Haraway:
Nos
finais do século XX, o nosso tempo, um tempo mítico, todas nós somos
quimeras, híbridas teorizadas e fabricadas como máquina e organismo; em
resumo, somos ciborgues.[…]
O
ciborgue é uma imagem condensada de imaginação e realidade material,
estruturando estes dois centros assim reunidos toda a possibilidade de
transformação histórica. […] O ciborgue está resolutamente comprometido
com a parcialidade, a ironia, a intimidade e a perversidade. É um ser
antagónico, utópico e completamente desprovido de inocência. Não sendo
já estruturado pela polaridade do público e do privado, o ciborgue
define uma pólis tecnológica parcialmente baseada na revolução das
relações sociais no oikos, o espaço doméstico. […] Sem nenhuma
das esperanças do monstro de Frankenstein, o ciborgue não espera que seu
pai venha salvá-lo mediante uma restauração do Paraíso; isto é, mediante
a fabricação de um companheiro heterossexual, mediante o seu
preenchimento num todo acabado, uma cidade e o cosmos. O ciborgue não
seria capaz de reconhecer o Jardim do Paraíso; ele não é feito de pó e
está-lhe vedado o sonho de ao pó tornar. Os ciborgues não são
reverentes; eles não se recordam do cosmos (HARAWAY,
2003).
Numa perspectiva
comparada, o estudo da dramaturgia portuguesa contemporânea escrita por
mulheres, voltado, em particular para a discussão das instâncias de
negociação identitária do feminino e do masculino no contexto
sociocultural lusófono, encontra espaço fértil de diálogo no Nordeste
brasileiro, cuja exploração, em continuidade a esta pesquisa, iniciamos
recentemente, tomando a produção de Lourdes Ramalho e Aninha Franco,
autoras de reconhecida representatividade no contexto teatral da região.
As duas assinam, respectivamente, os monólogos Guiomar filha da mãe
(2003) e Três mulheres e Aparecida (2000), em que uma moradora de
rua e ex-professora – Guiomar – e uma mendiga – Aparecida –, recontam a
história oficial do país enquanto perambulam na rua, por entre entulhos
e as sobras do que elas próprias foram um dia, desnudando pelo humor
irreverente e corrosivo, semelhante ao da anã inesiana, as estruturas
socioculturais minadas pelo paradigma patriarcal.
Articular o diálogo
entre estas vozes lusófonas híbridas de identidade e diferença poderá
favorecer o entendimento de que, do lado de lá ou de cá do Atlântico, as
personagens do enredo inesiano – em particular a própria Inês, mas
também Pedro e Afonso, além, é claro, da anã Miguéis – somos todos nós,
seres humanos em construção, vivendo as tensões entre feminino e
masculino, num tempo em que, para além dos múltiplos modelos de
ser-mulher e ser-homem, os gêneros vêm se moldando no sentido de ser,
cada vez menos, um o avesso do outro. Somos todas/os, brasileiras/os ou
portuguesas/es, mulheres e homens com habilidade para reutilizar
velharias na reinvenção da vida e da experiência amorosa. |
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Notas |
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[1]
Guiomar Torresão, que teve textos teatrais seus vistos ou lidos pelo
público brasileiro, é um nome a lembrar neste sentido, como também
Gertrudes da Cunha e Maria Velluti, que diferentemente daquela,
emigraram para o Brasil e aí continuaram a escrever suas peças e
publicá-las; cf. SOUTO-MAIOR, 1996.
[1]
Sobre esta perspectiva da obra de Santareno, ver
BELLINE, 1996.
[2]
Lembrar que a escrita teatral de Maria Velho da Costa, Yvette
Centeno e Agustina Bessa-Luís inclui textos produzidos ao largo
da proposta de adaptação, como por exemplo, respectivamente,
A terça casa, A Árvore da Vida e A bela portuguesa.
[3]
Sobre os procedimentos da escrita dramatúrgica desta autora, ver
BRILHANTE, 2007.
[5]
Fiama Hasse Pais Brandão e Eduarda Dionísio, autoras,
respectivamente, de Noites de Inês-Constança (2005) e
Falas da Castro (in: Antes que a noite venha, 1992).
Partilhando este interesse, Armando Nascimento Rosa escreveu
O eunuco de Inês de Castro: Teatro no País dos Mortos.
Évora: Casa do Sul, 2006.
[6]
Sobre a ideia acerca das relações entre a realidade
historicamente vivida e a culturalmente necessária do episódio
inesiano, cf. HOSAKABE, 1998.
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Referências |
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BELLINE, Ana Helena Cizotto. Do trágico ao social: a condição da mulher
no teatro de Bernardo Santareno. In: Seminário Nacional Mulher e
Literatura, 6, 1995. Rio de Janeiro. Anais… Rio de Janeiro: NIELM
/UFRJ,
1996. p. 420-429.
BRILHANTE, Maria
João. Teatro e Literatura: entre prefiguração e rasto. In: BUENO,
Aparecida de F. e al. (Orgs.). Literatura portuguesa: história,
memória e perspectivas. São Paulo: Alameda, 2007. p. 277-292.
GUEDES, Maria
Estela. A Boba (Monólogo em três insónias e um despertador).
Prefácio de Eugénia Vasques. Lisboa: Apenas Livros, 2006.
GUEDES, Maria
Estela. Tríptico a solo. Organização e Prólogo de Floriano
Martins. São Paulo: Escrituras, 2007. p. 203-237.
HARAWAY, Donna. O
manifesto ciborgue: a ciência, a tecnologia e o feminismo socialista nos
finais do século XX. In: MACEDO, Ana Gabriela (org.). Género,
identidade e desejo: antologia crítica do feminismo contemporâneo.
Lisboa: Cotovia, 2003. p.
221-250.
HOSAKABE, Haquira.
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história. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998. p. 105-117.
MACEDO, Ana Gabriela; AMARAL, Ana Luísa (orgs.). Dicionário da
Crítica Feminista. Porto: Afrontamento, 2005.
MARTINS, Maria João. Mulheres portuguesas: divas, santas e
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MENDES, Margarida Vieira. Maria Parda. In: MATEUS, Osório (org.).
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teatro em Portugal nos Anos 90. Discursos (Teatralidade e
discurso dramático), Lisboa, n. 14, abr. 1997, p. 14-15.
SERÔDIO, Maria
Helena. A mais recente dramaturgia portuguesa: contextos e realizações.
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SOUTO-MAIOR,
Valéria Andrade. Índice de dramaturgas brasileiras do século XIX.
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SOUZA, Maria
Leonor Machado de. Inês de Castro: um tema português na Europa.
2ª ed. revista e actualizada. Lisboa: ACD, 2005.
VASQUES, Eugénia.
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Eugénia Vasques. Lisboa: Apenas, 2006.
VASQUES, Eugénia. Mulheres que escreveram teatro no século XX em Portugal. Lisboa:
Colibri, 2001. |
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Valéria Andrade (Brasil):
Doutora em Letras.
Professora de
Literatura da Universidade Federal de Campina Grande, no
Centro
de Desenvolvimento Sustentável do Semiárido (CDSA). |
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© Maria Estela Guedes
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