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Sairiam de casa ao nascer do sol, e
levariam a merenda. Pão de centeio num guardanapo e um cacho de uvas. Tal
e qual como antigamente, quando andavam na escola.
A diferença era que agora levariam
também duas garrafas de água, daquelas de plástico, que dantes não havia. A
que usava bengala levaria a bengala e a outra um cajado, para o que desse
e viesse. Podia saltar-lhes ao caminho algum cão raivoso.
Mas não tinham medo dos cães, nem era
deles que fugiam. Lembravam-se, por exemplo, da Madalena do
Álvaro. Começara com uma ferida num pé, uma coisa de nada, só que não
sarava. Foi ao hospital, cortaram-lhe a perna, e ela ainda viveu três
anos, amarrada com um lençol a uma cadeira de rodas, para não tentar
levantar-se, repetindo a toda a hora que a deviam ter deixado morrer. E
razão não lhe faltava, mais valia morrer do que viver assim. E depois
aconteceu pior ainda ao Janeco: também começou com uma ferida num
pé, cortaram-lhe a perna e um ano depois cortaram-lhe a outra. Estava em
casa de um filho, que o levou para o hospital, mas depois não o quis de
volta, acabou num lar, onde ficou a apodrecer vários anos.
Ir para casa dos filhos, para o hospital
ou para um lar era o maior dos perigos. Elas sabiam o que por lá se
passava. O compadre Zacarias tinha estado meses e meses no hospital, com
um tubo enfiado no nariz, por onde deitavam comida desfeita, e com as mãos
amarradas à cama, dia e noite, porque o tubo o sufocava e ele tentava
sempre tirá-lo, mesmo a dormir. O pobre só pedia que o deixassem
morrer, com aqueles olhos que diziam tudo, mas falar não falava, por causa
do tubo. Quase nem respirava, tinha os pulmões cheios de escarros, mas
metiam-lhe mais tubos para o aspirar, e puseram-lhe outro tubo na pila
para sair o mijo. Em vez de o deixarem sossegado, sem tubo nenhum.
Iam visitá-lo e bem viam: quando ele
estava já quase a ir-se embora, porque não podia mais, davam-lhe
injecções para o coração aguentar. Faziam as pessoas viver o mais
possível, em vez de as deixarem morrer em paz.
Por isso tinham prometido apoiarem-se
uma à outra, quando fosse caso disso. Só tinham de estar atentas, e verem
os sinais. Tinham-nos visto no ano anterior, pelo Natal.
Havia vários anos que faziam a ceia
todos juntos, com os filhos e netos, cada ano em casa de uma delas. Sempre
era mais alegre uma casa cheia. Mas com o tempo os filhos e netos vinham
cada vez menos. Na verdade revezavam-se, vinham ora uns ora outros, com a
desculpa de que não queriam dar trabalho e era difícil alojar a todos.
E depois começaram a moê-las com aquela
conversa de que não estavam bem ali sozinhas, longe de tudo, só com a
ajuda das pessoas da aldeia. Primeiro era apenas um reparo dito
assim, como se fosse à toa, no meio de outras coisas. Mas no Natal
anterior as famílias pareciam ter chegado a uma conclusão definitiva:
Era melhor venderem-se as casas, e irem ambas para um lar. Iriam para o
mesmo, podiam até partilhar um quarto, era mais barato e continuavam a
fazer companhia uma à outra.
Tinham já tomado a
decisão, perceberam. Era só uma questão de tempo. Disseram que não e
tornaram a dizer, estavam muito bem ali, cada uma em sua casa, juraram que
não iriam para lar nenhum, mas à despedida os filhos remataram, como se
não as tivessem ouvido e a opinião delas não contasse :
Para o ano tratamos disso.
Ficaram ambas a acenar à porta, enquanto
eles entravam nos carros e se iam embora.
Voltaram para dentro e sentaram-se à
beira do lume.
Tinha sido, portanto, o último Natal, e era
melhor assim. Quando voltassem, no ano seguinte, não as encontravam.
Tiveram tempo de pensar na melhor
maneira de fugirem, porque ainda veio a primavera, o verão, e o outono. Iam
falando enquanto os meses se sucediam e a paisagem mudava diante das
janelas. O mais fácil seria tomarem comprimidos, mas não sabiam o nome dos
remédios, nem onde iriam arranjar suficientes. Além de que podiam
falhar, e, se não morressem, ficarem entrevadas ou loucas.
Podiam atirar-se para debaixo do
comboio. Tantas vezes o tinham visto passar e pensado nisso quando ele se
aproximava, com um estrépito de ferro e faróis de incêndio, como um vento
do inferno que lhes batia nos ouvidos e na cara. Só um instante, era só o
instante de atirar-se para debaixo das rodas e desapareciam.
Mas esse instante era demasiado
assustador. Não iam ter coragem. Antes entrar no rio. Não havia aquela
fúria do comboio, aquele som de trovoada arrasando tudo ao passar. O rio
era suave e silencioso. Bastava encherem os bolsos de pedras, por
precaução meterem também algumas nos sapatos, ou, melhor ainda, nas
galochas com que costumavam andar à chuva. A água, além das pedras,
entrava no cano das galochas, e o peso arrastava-as para o fundo.
Mas havia aquele sufoco de não poder
respirar e a água encher a boca e a garganta e gente querer gritar e não
poder. Esse instante era terrível, até porque devia ser longo, muito mais
longo do que desaparecer de repente debaixo do comboio.
Foi no verão que encontraram a resposta,
num dia em que tinham ido caminhar até à serra. Lá no alto havia um
casinhoto abandonado, talvez antes usado por pastores. Não tinha janela, só
havia a porta e no interior meia dúzia de palmos de terra batida,
debaixo de uma cobertura tosca, onde faltavam telhas.
Era para lá que iriam, viram logo. Quando
chegasse o frio e fosse o tempo de cair a neve. Morrer debaixo da neve
era só isso, deixarem-se ficar quietas, como se estivessem em
casa, enrodilhadas a um canto. Só ao princípio se tremia de frio e
desconforto, depois deixava de se sentir o corpo, que ficava inchado e
dormente. A partir de certa altura não se tinha fome nem sede nem se
sentia mais o frio, era como ficar sentado, meio adormecido, a olhar o
lume.
Voltaram para casa com o coração
ligeiro. Era muito bom, numa altura dessas, terem companhia.
O resto do verão foi tranquilo, quase não
se dava conta de o tempo passar.
E então veio o Outono, o ar foi-se
tornando frio, e pelo cheiro do ar e pela casca das árvores sabiam que
a neve ia em breve começar a cair.
Então partiram, como quando eram pequenas
e iam para a escola. De manhã cedo, com um pedaço de pão e um cacho de
uvas no saco da merenda.
Caminharam várias horas, apoiadas à
bengala e ao cajado, apoiadas uma à outra, um pouco trôpegas, cansadas do
caminho a subir.
Quando chegaram ainda o céu estava
claro, haveria ainda muito tempo de luz. O bastante para se sentarem e
comerem a merenda, e depois encherem de pedras o saco agora vazio e
colocá-lo encostado à porta, do lado de dentro, reforçando o ferrolho, não
fosse algum lobo aparecer de noite e querer forçar a entrada.
Mas não tinham medo, a porta e o ferrolho
eram seguros, o pastor que fizera o casinhoto cuidara disso, também ele
pensando em se abrigar dos lobos.
Não havia portanto nada a
recear. Sentaram-se a um canto, embrulhadas nos xailes, vendo a luz
desaparecer debaixo da porta e nas frinchas do tecto, até que ficou cada
vez mais escuro em toda a volta.
Estás bem? perguntou uma delas, muito
baixo, quando a escuridão já não deixava distinguir mais nada e se ouvia
o vento soprar.
Estou, respondeu a outra.
Estamos bem, disse a primeira, respirando
fundo e encostando-se melhor à parede.
Estamos, assentiu a segunda, em voz ainda
mais baixa. Estamos bem aqui.
E ficaram à espera. |