REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 10

 

Tinham combinado ir juntas,quando a hora chegasse. Porque sempre tinham andado uma a par da outra, desde quando dividiam na escola as uvas da merenda e jogavam no chão às cinco pedrinhas. E também mais tarde, na altura das feiras, das festas dos santos e dos namoricos, se ajudavam uma à outra a encontrar noivo e a esconder dos pais as saídas furtivas com os namorados.

Depois casaram e a vida afastou-as, moraram muitos anos em terras diferentes e não deram notícias, porque pouco sabiam escrever, e mesmo que soubessem o tempo não sobrava.

Mas calhou reencontrarem-se, muitos anos mais tarde, na terra natal, ambas viúvas, morando na mesma rua em que tinham nascido e crescido, nas casas herdadas dos pais.

A vida tinha passado, e agora só faltava morrer. O que era um passo difícil. Por isso tinham prometido ajudar-se, quando  chegasse a altura.

DIREÇÃO  
Maria Estela Guedes  
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TEOLINDA GERSÃO

Vizinhas

                                                                               

   
   
   
   
   
   
   

Sairiam de casa ao nascer do sol, e levariam a merenda. Pão de centeio num guardanapo e um cacho de uvas. Tal e qual como antigamente, quando andavam na escola.

A diferença era que agora levariam também duas garrafas de água, daquelas de plástico, que dantes não havia. A que usava bengala levaria a bengala e a outra um cajado, para o que desse e viesse. Podia saltar-lhes ao caminho algum cão raivoso.

Mas não tinham medo dos cães, nem era deles que fugiam. Lembravam-se, por exemplo, da Madalena do Álvaro. Começara com uma ferida num pé, uma coisa de nada, só que não sarava. Foi ao hospital, cortaram-lhe a perna, e ela ainda viveu  três anos, amarrada com um lençol a uma cadeira de rodas, para não tentar levantar-se,  repetindo a toda a hora que a deviam ter deixado morrer. E razão não lhe faltava, mais valia morrer do que viver assim. E depois aconteceu pior ainda ao Janeco: também começou com uma ferida num pé, cortaram-lhe a perna e um ano depois cortaram-lhe a outra. Estava em casa de um filho, que o levou para o hospital, mas depois não o quis  de volta, acabou num lar, onde ficou a apodrecer vários anos.

Ir para casa dos filhos, para o hospital ou para um lar era o maior dos perigos. Elas sabiam o que por lá se passava. O compadre Zacarias tinha estado meses e meses  no hospital, com um tubo enfiado no nariz, por onde deitavam comida desfeita, e com as mãos amarradas à cama, dia e  noite, porque o tubo o sufocava e ele tentava sempre tirá-lo, mesmo a dormir. O pobre só pedia que o deixassem morrer, com aqueles olhos que diziam tudo, mas falar não falava, por causa do tubo. Quase  nem respirava, tinha os pulmões cheios de escarros, mas metiam-lhe mais tubos para o aspirar, e puseram-lhe outro tubo na pila para sair o mijo. Em vez de o deixarem sossegado, sem tubo nenhum.

Iam visitá-lo e bem viam: quando ele estava já quase a ir-se embora, porque  não podia mais, davam-lhe  injecções para o coração  aguentar. Faziam as pessoas viver o mais possível, em vez de as deixarem morrer em paz.

Por isso  tinham prometido apoiarem-se uma à outra, quando fosse caso disso. Só tinham de estar atentas, e verem os sinais. Tinham-nos visto no ano anterior, pelo Natal.

Havia vários anos que faziam a ceia  todos juntos, com os filhos e netos, cada ano em casa de uma delas. Sempre era mais alegre uma casa  cheia. Mas com o tempo os filhos e netos vinham cada vez menos. Na verdade revezavam-se, vinham ora uns ora outros, com a desculpa de que não queriam dar trabalho e era difícil alojar a todos.

E depois começaram a moê-las com aquela conversa de que não estavam bem ali sozinhas, longe de tudo, só com a ajuda das pessoas da aldeia. Primeiro era apenas um reparo dito assim, como se fosse à toa, no meio de outras coisas. Mas no Natal anterior as famílias pareciam ter chegado a uma conclusão definitiva: Era melhor venderem-se as casas, e irem ambas para um lar. Iriam para o mesmo, podiam até partilhar um quarto, era mais barato e continuavam a fazer companhia uma à outra.

Tinham já tomado a decisão, perceberam. Era só uma questão de tempo. Disseram que não e tornaram a dizer, estavam muito bem ali, cada uma em sua casa, juraram que não iriam para lar nenhum, mas à despedida os filhos remataram, como se não as tivessem ouvido e a opinião delas não contasse :

Para o ano tratamos disso.

Ficaram ambas a acenar à porta, enquanto eles entravam nos carros e se iam embora.

Voltaram para dentro e sentaram-se à beira do lume.

Tinha sido, portanto, o último Natal, e era melhor assim. Quando voltassem, no ano seguinte, não as encontravam.

Tiveram tempo de pensar na melhor maneira de fugirem, porque ainda veio a primavera, o verão, e o outono. Iam falando  enquanto os meses se sucediam e a paisagem mudava diante das janelas. O mais fácil seria tomarem comprimidos, mas não sabiam o nome dos remédios, nem onde iriam arranjar suficientes. Além de que podiam falhar, e, se não morressem, ficarem entrevadas ou loucas.

Podiam atirar-se para debaixo do comboio. Tantas vezes o tinham visto passar e pensado nisso quando ele se aproximava, com  um estrépito de ferro e faróis de incêndio, como um vento do inferno que lhes batia nos ouvidos e na cara. Só um instante, era só o instante de atirar-se para debaixo das rodas e desapareciam.

Mas esse instante era demasiado assustador. Não iam ter coragem. Antes entrar no rio. Não havia aquela fúria do comboio, aquele som de trovoada arrasando tudo ao passar. O rio era suave e silencioso. Bastava encherem os bolsos de pedras, por precaução meterem também algumas nos sapatos, ou, melhor ainda, nas galochas com que costumavam andar à chuva. A água, além das pedras, entrava no cano das galochas, e o peso arrastava-as para o fundo.

Mas  havia aquele sufoco de não poder respirar e a água encher a boca e a garganta e gente querer gritar e não poder. Esse instante era terrível, até porque devia ser longo, muito mais longo do que desaparecer de repente debaixo do comboio.

Foi no verão que encontraram a resposta, num dia em que tinham ido caminhar até à serra. Lá no alto havia um casinhoto abandonado, talvez antes usado por pastores. Não tinha janela, só havia a porta e no interior meia dúzia de palmos de terra batida, debaixo de uma cobertura tosca, onde faltavam telhas.

Era para lá que iriam, viram logo. Quando chegasse o frio e fosse o tempo de cair a neve. Morrer debaixo da neve era só isso, deixarem-se ficar quietas, como se  estivessem em casa, enrodilhadas a um canto. Só ao princípio se tremia de frio e desconforto, depois deixava de se sentir o corpo, que ficava inchado e dormente. A partir de certa altura não se tinha fome nem sede nem se sentia mais o frio, era como ficar sentado, meio adormecido, a olhar o lume.

Voltaram para casa com o coração ligeiro. Era muito bom, numa altura dessas, terem companhia.

O resto do verão foi tranquilo, quase não se dava conta de o tempo passar.

E então veio o Outono, o ar foi-se tornando frio, e pelo  cheiro do ar e pela  casca das árvores  sabiam que a neve ia em breve começar a cair.

Então partiram, como quando eram pequenas e iam  para a escola. De manhã cedo, com um pedaço de pão e um cacho de uvas no saco da merenda.

Caminharam várias horas, apoiadas à bengala e ao cajado, apoiadas uma à outra, um pouco trôpegas, cansadas do caminho a subir.

Quando chegaram ainda o céu estava claro, haveria ainda muito tempo  de luz. O bastante para se sentarem e comerem a merenda, e depois encherem de pedras o saco agora vazio e colocá-lo encostado à porta, do lado de dentro, reforçando o ferrolho, não fosse algum lobo aparecer de noite e querer forçar a entrada.

Mas não tinham medo, a porta e o ferrolho eram seguros, o pastor que fizera o casinhoto cuidara disso, também ele pensando em se abrigar dos lobos.

Não havia portanto nada a recear. Sentaram-se a um canto, embrulhadas nos xailes, vendo a luz desaparecer debaixo da porta e nas frinchas do tecto, até que ficou cada vez mais escuro em toda a volta.

Estás bem? perguntou uma delas, muito baixo, quando a escuridão já não deixava distinguir mais nada e se ouvia o vento soprar.

Estou, respondeu a outra.

Estamos bem, disse a primeira, respirando fundo e encostando-se melhor à parede.

Estamos, assentiu a segunda, em voz ainda mais baixa. Estamos bem aqui.

E ficaram à espera.

 

 

Teolinda Gersão (Portugal, Coimbra)
Autora de doze livros de ficção (A Árvore das Palavras,
Os Teclados,A Casa da Cabeça de Cavalo,A Mulher que Prendeu a Chuva e outros).
Foi escritora residente na Universidade de Berkeley em 2004. Está traduzida em doze línguas. Dois dos seus livros foram adaptados ao teatro e encenados em Portugal, Alemanha e Roménia.
O seu próximo romance sai em Março de 2011 na Editora Sextante.
Contacto:
teolindag@hotmail.com
e Facebook

 

 

© Maria Estela Guedes
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