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Foi durante a guerra no Iraque, a
primeira, em 1991, do Bush pai. Eu estava desempregado e um conhecido me
disse que um gringo vinha recrutando mercenários para lutar contra os
árabes no Golfo Pérsico. Pagamento adiantado. Aceitei de bate-pronto,
deixei a grana com a minha mãe e parti com uma rapaziada. Íamos matar
árabes, mas, por mim, podia ser o que fosse: judeu, persa, africano,
tailandês, nordestino. Não fazia a menor diferença. Fomos alocados no
pelotão de vanguarda, aquele que chegava para arrebentar com tudo. Tinha
uns canadenses com a gente. Um pessoal psicopata que fugiu do tédio e do
frio para matar. E a gente fugindo da pobreza, coisa de subdesenvolvido.
Três semanas e muita carnificina depois, éramos todos iguais em nossas
diferenças, embora tivessem uns com mais apetite para estupros e
empalações. Os pelotões ianques pareciam ter mais pavor da gente do que
dos civis com seus cintos-bombas. Um bando de frescos com quarenta
quilos de mortíferos brinquedos de alta tecnologia no lombo. Pra gente
bastava uma metralhadora e uma faca no estilo Rambo. Aliás, como Rambos
latinoamericanos é que passamos a ser chamados, embora o nosso coronel
fosse um franco-argelino cinqüentão tão anacrônico que parecia ter saído
direto das trincheiras da Primeira Grande Guerra para a confusão do
deserto babilônico. Sim, tenho estudo. Diploma de História que de nada
adiantou para preencher com um emprego a minha carteira de trabalho. Mas
isso fora águas passadas; enquanto durasse a briga de família
Bush-Hussein, tínhamos garantida a matança – com soldo extra diretamente
correspondente ao número de árabes que derrubávamos. E era fácil
derrubar aqueles bastardos sujos. Tinha um judeu no nosso pelotão, o
cara era do Sul, Santa Catarina talvez, o pai sobrevivera a Desdren e
conhecera Vonnegut. Tornei-me fã do judeu só por causa disso. Ele
contava as histórias do pai. E o pai, dizia ele, falava sempre do
Vonnegut, o sádico doido de pedra que matava com um sorriso de Coringa
na cara e que depois da guerra surtou de verdade escrevendo tudo ao
contrário e se proclamando pacifista. Eu e o judeu não cairíamos nessa,
não, de jeito algum. Com a gente o trato era pacificar, sim. Rambos,
lembra? Pelotão de pacificadores. Os primeiros, lá na linha de frente.
Os primeiros na matança, nos estupros, empalações – canadenses
desgraçados, gente boníssima –, saques, pequenos delitos comparados ao
grande roubo que as grandes famílias senhoras da guerra faziam por ali.
Nem ligávamos; a gente vicia rápido em sangue. Toma gosto. Vivíamos
entorpecidos pela matança. Eu tinha uma satisfação especial em pisar com
a minha bota de três quilos a cabeça do inimigo e cantar aos berros
“Alá, Alá meu bom Alá, mande água para ioiô, mande água para Iaiá...” Já
estávamos ambientados, até que um dia eu e o judeu quase caímos numa
emboscada e tivemos que nos esconder numa mesquita. Tudo tão confuso que
a memória tropeça mesmo agora, ou trapaceia, sei lá. Fui alvejado no
ombro esquerdo e o judeu sangrava na cabeça. Morreu na mesma noite, ao
meu lado, bem dentro da mesquita. Eu precisava sair dali, pensava, e
reencontrar o pelotão. Foi então que apareceu na minha frente um árabe
raquítico, e isto é um pleonasmo, mestre sufi foragido. Talvez nem fosse
árabe, podia ser persa, não faço a mínima idéia e, naquela altura, dava
na mesma. Tampouco importa agora. Fosse ele o que fosse, mais importante
foi o que ele me disse naquela noite. Isso depois de me ajudar a
enterrar o judeu dentro da mesquita e de fazer um curativo no meu ombro
esquerdo. Ele se chamava Hallaj e me disse que se queremos algo devemos
enfiar o pé na porta e arrombá-la. Deve ter sido metaforicamente, porque
logo completou que isso fazia o homem, mas que o verdadeiro deus, que
não era o deus dos homens, e sim apenas o deus, ou Alá, seria encontrado
apenas por aqueles que o vislumbrassem em estado de êxtase. Quase nada
do que ele dizia para mim fazia sentido algum, era místico demais,
complicado demais, esotérico demais. Acabei adormecendo e quando
amanheceu Hallaj desaparecera. Consegui alcançar o pelotão. Passei seis
dias na enfermaria e no sétimo dia retornei ao front. Ainda lutaríamos
por mais quatro semanas, até que as famílias entrassem num acordo quanto
ao petróleo e dessem por acabada a carnificina. E era através da
carnificina que eu vislumbrava em êxtase o tal do deus propagado pelo
enigmático mestre sufi. Hoje quase compreendo o que ele tentara me
dizer. |