REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 10

 

 

 

 

 

Esta Penna San Giovanni de que falo situa-se numa zona de Itália conhecida por Monti Azzurri (Montes Azuis, Apeninos) na província de Macerata. Montes onde a lenda da Sibila, cuja voz se diz que por ali ecoa a horas recônditas da noite, alimenta todo um universo de representações fantasmáticas tanto de expressão laica como de cariz religioso, que se renova regularmente: disso tive prova ao participar num Convénio da Associação Internacional dos Críticos Literários, de 7 a 10 de Outubro. O tema, O Mistério na Literatura, insinuava, justamente, uma homenagem à enigmática e controversa figura.

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Maria Estela Guedes  
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JÚLIO CONRADO

Outono em

Penna San Giovanni

 
   
   
   
   
   
   
   
   

A Associação promotora do Encontro, presidida por Neria de Giovanni, com sede em Paris mas depois da morte de Robert André com maior actividade em Itália (Neria é sarda e nome influente no meio literário italiano) tem hoje correspondência em Portugal na Associação Portuguesa dos Críticos Literários, presidida por Liberto Cruz, sendo Fernando J. B. Martinho um dos dois vice-presidentes internacionais (o outro é o japonês Ichiro Saito). Uma cisão francesa deu lugar à criação de nova associação em França, que reivindica a “herança” e sucessão de Robert André, mas Neria de Giovanni soube reunir os consensos necessários para dar continuidade à A.I.C.L., mantendo a sede em Paris e o reconhecimento de entidade não governamental filiada na Unesco.

A minha participação não deveria ir além da de mero observador, já que viajara à margem de qualquer delegação oficial, mas acabei por representar a Associação Portuguesa lendo na sessão de abertura uma mensagem em nome da mesma, devidamente mandatado, dando assim substância ao amável convite de Neria para introduzir no programa do Encontro a menção de uma presença portuguesa. 

 

 
1. A Sibila segundo Mauro Cicaré

 

A SIBILA

 

Mas falemos para já da Sibila, um nome que é título de uma obra-prima da Literatura Portuguesa publicada em 1954*, e cuja autora, Agustina Bessa-Luís, descreve assim: “A Sibila é mais do que uma personagem.

 

Tem sido estudada à luz do materialismo histórico e do feminismo mais obstinado; foi vista como Némesis vingativa, como simples mulher descarnada dos seus afectos e tardiamente reconciliada com o amor, o sexo e o drama que tudo isso envolve. Mas o que não foi dito é que a Sibila é uma experiência viva e, portanto, um mito. Ela vive a sua própria experiência, e para isso tem que romper todos os laços, excepto os que a ligam ao seu povo. Não cede à razão, ao tempo privado que significa um amigo ou um amante; que significa mesmo a majestosa e doce sombra paterna. Ela está preparada para a sua experiência, que é uma purificação através do elemento mítico: o laço com a terra.” (de uma conferência na Universidade de Granada em 1987).

Não faltaram, claro, as comunicações “sibilinas” sendo a da arqueóloga Maria Milvia Morciano (A Sibila apeninica: viagem real e viagem surreal no mistério entre mito e iniciação) uma das que mais aplausos recolheu (note-se: embora as línguas oficiais do Convénio fossem o francês e o inglês, os italianos, esmagadoramente maioritários, expressaram-se todos na própria língua, e, não havendo tradução simultânea, vários não italianos, eu incluído, tiveram de se conformar com a fruição das belas sonoridades do idioma dos anfitriões). Mas, bem mais do que as naturalmente fundamentadas razões da reputada arqueóloga romana na sua elaborada exposição, gostaria de ter captado o sentido da troca de recados acalorados, num meio-tempo de debate, entre aquela e a especialista em Sibila, Giuliana Poli, que talvez para fazer jus à sua preparação académica, não poupou nos comentários sibilinos a latere. Um pouco menos de velocidade no andamento das vozes e eu teria “apanhado” algo de, com certeza, enriquecedor e surpreendente. As palavras em vertigem privaram-me, todavia, desse prazer.

Que a Sibila não é só um ícone laico (aliás este Convénio teve a pairar sobre ele uma aura de santidade que me leva a pensar que onde outrora houve ideologia a mais, hoje impera a teologia mística), disso fez demonstração cabal Walter Scotucci que numa passagem de diapositivos mostrou um número apreciável de imagens reveladoras de como este mito é relevante para a Igreja. O trabalho de investigação de Scotucci é importante pela variedade de propostas de interpretação da Sibila cristã que suscita, independentemente da inegável qualidade das representações da Sibila enquanto obras plásticas tout court.

A Sibila foi alvo de outras manifestações, duas delas particularmente expressivas: a entrega dos prémios Sibila no teatro de Sarnano (localidade famosa pelas suas termas, vizinha de Penna, onde os participantes no Convénio pernoitavam) e o lançamento do livro realizado a duas mãos Sibilla, da metáfora da perdição à metafísica do território (texto: Fabio Santilli; ilustrações: Mauro Cicaré) durante uma exposição dos desenhos da obra em que estiveram presentes os autores. Grosso modo, pode dizer-.se que a “leitura” da personalidade da Sibila através dos desenhos de Cicaré está nos antípodas da visão que Scotucci nos diz ser a da Igreja. Quanto aos prémios: tive o gosto de ouvir falar português a uma das premiadas, a poeta brasileira Marcia Theophilo com quem antes contactara por telefone, felicitando-a, que leu alguns dos seus poemas na língua de Camões antes de ser distinguida pelo conjunto da sua obra poética, marcada pela defesa dos valores ambientais, pela luta em prol da preservação da Amazónia e pela dignificação da raça índia, da qual descendente pelo lado materno. Marcia tem residência no Brasil e em Roma e conhece Portugal, onde se desloca amiúde. As outras premiadas foram mulheres que se notabilizaram em diferentes áreas profissionais: Enrica Bonaccorti é uma conhecida apresentadora de televisão e Laura Boldrini uma funcionária das Nações Unidas, porta-voz do organismo que estuda os hoje em dia tão delicados dossiês da imigração ilegal e dos refugiados. Nesta sessão foi prestada homenagem à actriz  Dolores Prato.

 

 

OS NÃO SIBILINOS

 

 

Alguns dos participantes no Convénio contornaram o mito sibiliano centrando as suas comunicações em autores dos seus países. Assim, Ichiro Saito (Japão), Pierfranco Bruni (Itália), Antonio Mendonza (Venezuela) e Andrè Ugheto (França) falaram de, respectivamente, Mishima, Leopardi, Antonia Palacios, René Char. Outros abordaram o tema do Mistério na Literatura de uma forma mais geral: Costas Valetas (Grécia), Bruno Rombi (Itália), Aldo Jatosti (Itália), Franco Idone (Itália), Horia Alupului (Roménia), Silvani Trevisani (Itália), Sabino Caronia (Itália), Salvatore Pintore (Itália), Marilena Cavallo (Itália) e Stefan Damian (Roménia). Uma palavra especial para a querida amiga Carla Rugger (Itália) cuja comunicação, repassada de lirismo e sensibilidade, fez jus à reputação de “poeta do amor” que ela é.

 

  A ACCABADORA E O ABAFADOR
 

 

O Convénio conheceu dois momentos extremamente interessantes com a apresentação de uma peça teatral no Teatro de Sarnano, que decorreu à noite, e, no próprio período de apresentação das comunicações, a exibição de uma curta-metragem intitulada A Accabadora, da autoria de Enrico Pau, e comentada por Antonio Maria Masia. Esta notável curta-metragem introduziu uma variante artística sarda no Encontro “azurri”. A história gira à volta de uma figura a um tempo sinistra e de préstimos úteis, da Sardenha rural, a Accabadora – digamos em português: Acabadora -, aquela que era chamada para interromper a vida aos moribundos. A prática, perfeitamente instalada no dia-a-dia da comunidade, era confiada a uma executora que, não obstante, exercia cumulativamente funções mais nobres: a Acabadora do filme era também a parteira que ajudava os seres humanos a alcançarem o mundo da vida.

Só a executora dessa terrífica praxe montanheira, entre a lenda e a realidade, é, no filme, interpretada por uma actriz profissional, sendo os demais “actores” gente do povo admiravelmente modelada pelo cineasta, que soube aproveitar até ao limite o potencial histriónico e estético do “elenco” de que dispôs, situando-se a sua obra no domínio do ensaio antropológico de que se constitui, outrossim, para fins mais imediatos, prova documental e pungente de um ritual primitivo historicamente enraizado nas culturas que com as suas próprias leis fundadas no pragmatismo e protegidas pelo segredo, se colocam à margem do direito das sociedades ditas de civilização.  

A Accabadora, filme inspirado numa obra literária italiana recente, tem pelo menos um equivalente temático na literatura portuguesa: O Alma-Grande (também conhecido por Abafador) da série Novos Contos da Montanha (1944, do grande escritor  Miguel Torga (1907-1995). Diz Torga, no prefácio à segunda edição (1945), dirigindo-se ao “querido leitor”: Escrevo-te da Montanha, do sítio onde medram as raízes deste livro. Vim ver a sepultura do Alma-Grande e percorrer a via-sacra da Mariana. Encontrei tudo como deixei o ano passado, quando da primeira edição destas aventuras. Pelo menos, para Torga, o Abafador não foi lenda. Existiu mesmo. 

 

 

Entrega dos prémios Sibila no Teatro Vitoria de Sarnano: Neria de Giovanni, Marcia Theophilo, Enrica Bonnacorti, Laura Boldrini e  Giampiero Feliciotti

 

  Ouvindo poesia no Parque Natural
 

  Notas à margem:
 

 

- Sempre presentes e activos no apoio aos trabalhos do Convénio os membros dos organismos oficiais locais: Giampiero Feliciotti, presidente da Comunidade Monti Azzurri, que se revelou o mais entusiástico apoiante de Neria; Emanuele Crisostomi e Franco Geriogili, os síndacos respectivamente de Penna San Giovanni e Sarnano, incansáveis cicerones naquele a que chamam, com orgulho, o “nosso território”. 

- Impecáveis os estados de preservação dos núcleos medievais das vilas de Penne San Giovanni e Sarnaro; o património das várias igrejas da idade média encontra-se escrupulosamente restaurado; os dois teatrinhos oitocentistas (Flora, em Penna, Vitória, em Sarnano) conservam as suas características iniciais, que requalificações aleatórias não desvirtuaram.  

- Parque Natural: montanha e floresta em estado puro. Miradouros de sonho.  

- Poetas de gravata no Parque Natural: afinal os “críticos literários” eram quase todos poetas. Num recital espontâneo, cada poeta subia a um improvisado palco de pedra e lia poemas seus. A maioria estava engravatada. Insólito, no mínimo. Relevância para o exuberante venezuelano António Mendoza e para o francês Adrè Ugheto, declamadores exímios.  

- Richard Matuchevski, decano da A. I. C. L., foi recordado por Neria de Giovanni. Vice-Presidente internacional, mão falhava um Encontro. Faleceu em Abril passado com 90 anos.  

- Gastronomia: as iguarias que os italianos exportaram para todo o mundo, mas ali com os sabores genuínos do campo.  

- Encomenda do psiquiatra escritor Franco Idone na hora da despedida: “Dê um abraço meu ao Antunes.” Não me ocorreu de momento qualquer escritor português cujo nome literário fosse apenas “Antunes”. Antunes?, estranhei. “O Antunes, o Lobo.”, apressou-se a acrescentar o italiano. “Ah, esse!” (O psiquiatra romano lá achou pela minha pinta que eu seria tu cá tu lá com o psiquiatra “Antunes”). Anuí diplomaticamente. O abraço dele aqui fica e eu por aqui me fico.  

*Ed. Italiana: La Sibilla, Florença, Giunti, 1989.

 
  Andrè Hughetto lendo poemas seus no Parque Natural
 

  Retrato de grupo no Teatro Flora, de Penna San Giovanni
 

 

Júlio Conrado  (Olhão, 26.11.1936, Portugal) 
Escritor, crítico literário. Durante vários anos alternou a crítica literária com a ficção (incursões esporádicas na poesia e no teatro), centrando-se actualmente no romance a sua principal actividade. Fez crítica no Diário Popular, Vida Mundial, Colóquio Letras e Jornal de Letras. Colaborador de Latitudes, Cahiers Lusophones (Paris) e Revista Página da Educação (Porto). Coordenou a revista Boca do Inferno, de Cascais. Integrou os corpos sociais de Associação Portuguesa de Escritores, Pen Clube Português, Centro Português da Associação Internacional dos Críticos Literários e Associação Portuguesa dos Críticos Literários. Participou nos júris dos principais prémios literários portugueses. Textos seus estão traduzidos em francês, alemão, inglês, húngaro e grego. Obras principais: Romance: Barbershop (2010), Estação Ardente (Prémio Vergílio Ferreira / Gouveia (2006), Desaparecido no Salon du Livre (2001), De Mãos no Fogo (2001), As Pessoas de minha casa (1985), Era a Revolução (1977) e O Deserto Habitado (1974); Poesia: Desde o Mar (2005); Teatro: O Corno de Oiro (2009). 
Ver currículo alargado no site do Pen Clube Português

 

 

© Maria Estela Guedes
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