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Reunião de nove poemas, O Amor... antecipa
como usaria o recurso do verso livre sem sacrificar o ritmo - ao
contrário, enriquecendo-o ao "segurar" o texto num torvelinho de imagens oníricas de áspera beleza. Em seguida saem Poemacto (1961), Retrato em
Movimento (1967), O Bebedor Nocturno (1968) e Vocação Animal (1971), nos
quais consolida o verso livre e o experimentalismo (a maioria dos seus
poemas, caudalosos, não tem sinais de pontuação), fazendo da própria
linguagem "personagem", e rompendo de vez com o que restava da tradição
"bem-comportada" da poesia portuguesa. Herberto Helder (Herberto Helder
Luís Bernardes de Oliveira), nascido no Funchal, na Ilha da Madeira,
completou 80 anos dia 23 incontroversamente consagrado como o mais
original poeta vivo português.
Morando, na juventude, em Coimbra, e sempre irrequieto, depois de
abandonar o curso de direito, faz o mesmo com o de literatura. Sua
biografia de "l"uomo qualunque" inclui ofícios como o de serralheiro,
cozinheiro, propagandista e meteorologista, entre outros. A vida nômade
leva-o a viajar sem rumo por diversos países. De volta a Lisboa em 1960,
trabalha como redator da editoria internacional da Emissora Nacional e
como tradutor e bibliotecário. Nos anos 1970, viaja pela Europa, já com
o mesmo prestígio do "trio sagrado" formado por António Ramos Rosa,
Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004) e Mário Cesariny
(1923-2006), aos quais mais tarde se somaria Al Berto (1968-1997).
Depois de seis anos sem nada produzir, e de volta a Lisboa, em 1978, é a
vez de O Corpo o Luxo a Obra, título emprestado para a seleção de
trechos de poemas anteriores (publicado pela Iluminuras no ano passado)
somando-se às muitas antologias existentes. Para o iniciado em Helder, é
o livro perfeito: abre amplo espectro para a magia dos poemas desse
diligente pastor das palavras, com suas recorrentes metonímias, voltadas
à construção de linguagem única, em que a surpresa da sua construção não
é gratuita, mas a chave daquela transcendência poética intocada pelo
romantismo formal de que fala T.E. Hulme. Sua poesia completa tem sido
regularmente reeditada, desde Poesia Toda, nas portuguesas Plátano e
Assírio & Alvim; é desta última a do ano passado, com o título de Ofício
Cantante.
A fortuna crítica de Helder, com cerca de 20 títulos, não se esgotou: a
dramaturga e renomada ensaísta portuguesa Maria Estela Guedes, que há
cerca de 30 anos assinou Herberto Helder, Poeta Obscuro, volta ao
protagonista com A Obra ao Rubro de Herberto Helder, que está saindo
pela Escrituras. Em conversa com o Sabático, por e-mail, explicou que
esse segundo livro leva ao conhecimento do público um setor desconhecido
da biografia do poeta, abrangente dos dois anos - 1971 e 1972 - quando
viveu em Angola, cobrindo, como repórter do jornal Notícia, assuntos
culturais de Luanda e algumas reportagens no teatro da guerra colonial,
durante a qual sofre grave acidente de automóvel. Foi, diz a autora, "um
período muito rico na produção de crônicas e artigos, que revelam o seu
lado humano, pois "a imagem que flui é a de um poeta mítico,
misterioso". Sobre as diferenças maiores entre o primeiro e o segundo
livro, informa que o primeiro é um texto fechado sobre si mesmo, com
minúcias analíticas, o que dificulta a leitura, e o segundo é um livro
de discurso informal, dialogante, sem obstáculo à compreensão. E lembra
que, em Portugal, Helder, como a maioria dos poetas lusos, é mais
conhecido pelos colegas de ofício do que pelos leitores comuns, fenômeno
repetido em muitos países, inclusive no Brasil.
Outro livro importante para o estudo da obra do poeta é A Poesia de
Herberto Helder, de João Amadeu Oliveira Carvalho da Silva, um calhamaço
de 522 páginas publicado em 2004 pela Fundação Calouste Gulbenkian.
Lembrando a relação da obra helderiana com a de Pessoa, diz o autor:
"... para além de se poderem enunciar, com facilidade, alguns centros de
interesse comuns (astrologia, misticismo, esoterismo, alquimia), existem
duas diferenças essenciais relacionadas com a forma e com a visão de
abordar a realidade: enquanto Pessoa se abstrai da realidade pela
intelectualização da mesma, fragmentando-a, Helder aproxima-se
violentamente da realidade (sic), de modo a anular as diferenças entre
as coisas, unificando-as." Anota ainda que Mário de Sá-Carneiro e Helder
são o exemplo acabado da poesia moderna, ou seja, praticam uma linguagem
em direção "à gênese, ao elemento primordial, ao próprio abismo da
matéria".
Abismo é a palavra perfeita para definir a sensação do leitor atento aos
versos do poeta, convites hipnóticos ao mergulho nas inquietações e
perplexidade humanas. Mas quem espera uma "mensagem", pode esquecer: ele
não sabe o que fazer com os outros, como legítimo Outsider que é (na
clássica definição que Colin Wilson dá ao termo), não tem nada a
oferecer, não sugere nenhuma pista para superarmos as aporias do destino
-, apenas nos estende a mão para o acompanharmos pelas veredas dos seus
poemas. Por sua vez, não há como (é preciso?!) "classificá-lo". Para
alguns estudiosos, Helder é um parnasiano místico; para muitos, um
simbolista tardio, herdeiro em linha reta de Eugénio de Castro
(1869-1944). Pode até ser, mas se ocorreu essa última influência, é
preciso conjugá-la com outra possível, a de Charles Baudelaire
(1821-1867), cujos "símbolos" da décadence estão tão presentes nas suas
quimeras como o antirromantismo exacerbado do autor de Oaristos. A
incursão que fez no gênero prosa é tímida: o livro mais conhecido é Os
Passos em Volta, de 1963, reunião de 23 contos, a maioria com
indisfarçável corte biográfico.
Helder é misantropo radical, não dá entrevista, não recebe ninguém,
recusa honrarias e prêmios (inclusive o prestigioso Prêmio Pessoa),
revisa obsessivamente seus poemas. Tem um filho, jornalista, e poucos e
fiéis amigos que o frequentam na casa em Cascais, cujo endereço é
segredo de Estado. Eles garantem que a vida hermética não desbota o bom
humor e a cítrica ironia que jorram da sua conversação. Mas qual é o
valimento de sabermos detalhes da sua vida pessoal? Nenhum: o que
importa é a doação desse astro cintilante da poesia contemporânea. Que
brilhe por muito tempo. |
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J.C. Ismael
(Brasil):
J. C. Ismael estreou no jornalismo nos anos 1950 na cidade natal de
São José do Rio Preto, como repórter e crítico de cinema. Formado em
direito, foi crítico de cinema do jornal O Estado de S. Paulo e
colaborador do Suplemento Literário, dos que o sucederam e do Caderno 2,
todos daquele jornal. Foi colaborador da Folha de S. Paulo (Ilustrada),
das revistas Vogue e IstoÉ e do Jornal da Tarde (Caderno de Sábado),
sempre na área da cultura, tendo publicado cerca de setecentos artigos,
entre ensaios, resenhas de livros e entrevistas. Foi ainda editor do
Dipo, caderno de propaganda e marketing do extinto Diário Popular. Entre
1968 e 1981 produziu e dirigiu o documentário Um Dia na Velhice e
curtas-metragens sobre artes plásticas, que incluem o único existente
sobre a obra de Samson Flexor. Editor de antologias de poesias de
William Blake e John Donne, é também tradutor. É autor de Cinema e
Circunstância (Buriti/Cia.Ed.Nacional, 1963); Thomas Merton, o Apóstolo
da Compaixão (T.A. Queiroz, 1984); Alan Watts — A Sagração do Caminho (T.A.Queiroz,
1988); Iniciação ao Misticismo Cristão (Record/Nova Era, 1998); um
ensaio da coletânea Visões do Novo Milênio (Mercuryo, 1999); O Médico e
o Paciente – Breve História de uma Relação Delicada (MP/Summus, 2ª
edição, 2005) e Sócrates e a Arte de Viver (Ágora/Summus, 2004).
Atualmente é colaborador do suplemeneto Sabático d'O Estado de S.Paulo. |