REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 10

 
Com cerca de duas dezenas de trabalhos publicados, desde O Amor em Visita, sua estreia, em 1958, Herberto Helder consagra-se como o nome de maior expressão da poesia lusa contemporânea

Amam-me, multiplicam-me.
Só assim sou eterno.

Herberto Helder

A primeira referência que tive de Herberto Helder ocorreu durante a entrevista com o escritor português José Cardoso Pires (1925-1998) em Lisboa, em novembro de 1987, publicada no Caderno 2. Pires recomendou-me que o lesse, pois ele se firmara como expressão literária superlativa da poesia do seu país desde Fernando Pessoa. Um exagero, pensei, logo desmentido com a leitura dos poemas de O Amor em Visita, também título do seu pequeno livro de estreia, de 1958, incluído três anos depois na coletânea A Colher na Boca.

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Maria Estela Guedes  
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J. C. ISMAEL

Áspera beleza

na língua do abismo

                                                                                        ......

 
 
 
   
   
   
 
 

 Reunião de nove poemas, O Amor... antecipa como usaria o recurso do verso livre sem sacrificar o ritmo - ao contrário, enriquecendo-o ao "segurar" o texto num torvelinho de imagens oníricas de áspera beleza. Em seguida saem Poemacto (1961), Retrato em Movimento (1967), O Bebedor Nocturno (1968) e Vocação Animal (1971), nos quais consolida o verso livre e o experimentalismo (a maioria dos seus poemas, caudalosos, não tem sinais de pontuação), fazendo da própria linguagem "personagem", e rompendo de vez com o que restava da tradição "bem-comportada" da poesia portuguesa. Herberto Helder (Herberto Helder Luís Bernardes de Oliveira), nascido no Funchal, na Ilha da Madeira, completou 80 anos dia 23 incontroversamente consagrado como o mais original poeta vivo português.

Morando, na juventude, em Coimbra, e sempre irrequieto, depois de abandonar o curso de direito, faz o mesmo com o de literatura. Sua biografia de "l"uomo qualunque" inclui ofícios como o de serralheiro, cozinheiro, propagandista e meteorologista, entre outros. A vida nômade leva-o a viajar sem rumo por diversos países. De volta a Lisboa em 1960, trabalha como redator da editoria internacional da Emissora Nacional e como tradutor e bibliotecário. Nos anos 1970, viaja pela Europa, já com o mesmo prestígio do "trio sagrado" formado por António Ramos Rosa, Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004) e Mário Cesariny (1923-2006), aos quais mais tarde se somaria Al Berto (1968-1997).

Depois de seis anos sem nada produzir, e de volta a Lisboa, em 1978, é a vez de O Corpo o Luxo a Obra, título emprestado para a seleção de trechos de poemas anteriores (publicado pela Iluminuras no ano passado) somando-se às muitas antologias existentes. Para o iniciado em Helder, é o livro perfeito: abre amplo espectro para a magia dos poemas desse diligente pastor das palavras, com suas recorrentes metonímias, voltadas à construção de linguagem única, em que a surpresa da sua construção não é gratuita, mas a chave daquela transcendência poética intocada pelo romantismo formal de que fala T.E. Hulme. Sua poesia completa tem sido regularmente reeditada, desde Poesia Toda, nas portuguesas Plátano e Assírio & Alvim; é desta última a do ano passado, com o título de Ofício Cantante.

A fortuna crítica de Helder, com cerca de 20 títulos, não se esgotou: a dramaturga e renomada ensaísta portuguesa Maria Estela Guedes, que há cerca de 30 anos assinou Herberto Helder, Poeta Obscuro, volta ao protagonista com A Obra ao Rubro de Herberto Helder, que está saindo pela Escrituras. Em conversa com o Sabático, por e-mail, explicou que esse segundo livro leva ao conhecimento do público um setor desconhecido da biografia do poeta, abrangente dos dois anos - 1971 e 1972 - quando viveu em Angola, cobrindo, como repórter do jornal Notícia, assuntos culturais de Luanda e algumas reportagens no teatro da guerra colonial, durante a qual sofre grave acidente de automóvel. Foi, diz a autora, "um período muito rico na produção de crônicas e artigos, que revelam o seu lado humano, pois "a imagem que flui é a de um poeta mítico, misterioso". Sobre as diferenças maiores entre o primeiro e o segundo livro, informa que o primeiro é um texto fechado sobre si mesmo, com minúcias analíticas, o que dificulta a leitura, e o segundo é um livro de discurso informal, dialogante, sem obstáculo à compreensão. E lembra que, em Portugal, Helder, como a maioria dos poetas lusos, é mais conhecido pelos colegas de ofício do que pelos leitores comuns, fenômeno repetido em muitos países, inclusive no Brasil.

Outro livro importante para o estudo da obra do poeta é A Poesia de Herberto Helder, de João Amadeu Oliveira Carvalho da Silva, um calhamaço de 522 páginas publicado em 2004 pela Fundação Calouste Gulbenkian. Lembrando a relação da obra helderiana com a de Pessoa, diz o autor: "... para além de se poderem enunciar, com facilidade, alguns centros de interesse comuns (astrologia, misticismo, esoterismo, alquimia), existem duas diferenças essenciais relacionadas com a forma e com a visão de abordar a realidade: enquanto Pessoa se abstrai da realidade pela intelectualização da mesma, fragmentando-a, Helder aproxima-se violentamente da realidade (sic), de modo a anular as diferenças entre as coisas, unificando-as." Anota ainda que Mário de Sá-Carneiro e Helder são o exemplo acabado da poesia moderna, ou seja, praticam uma linguagem em direção "à gênese, ao elemento primordial, ao próprio abismo da matéria".

Abismo é a palavra perfeita para definir a sensação do leitor atento aos versos do poeta, convites hipnóticos ao mergulho nas inquietações e perplexidade humanas. Mas quem espera uma "mensagem", pode esquecer: ele não sabe o que fazer com os outros, como legítimo Outsider que é (na clássica definição que Colin Wilson dá ao termo), não tem nada a oferecer, não sugere nenhuma pista para superarmos as aporias do destino -, apenas nos estende a mão para o acompanharmos pelas veredas dos seus poemas. Por sua vez, não há como (é preciso?!) "classificá-lo". Para alguns estudiosos, Helder é um parnasiano místico; para muitos, um simbolista tardio, herdeiro em linha reta de Eugénio de Castro (1869-1944). Pode até ser, mas se ocorreu essa última influência, é preciso conjugá-la com outra possível, a de Charles Baudelaire (1821-1867), cujos "símbolos" da décadence estão tão presentes nas suas quimeras como o antirromantismo exacerbado do autor de Oaristos. A incursão que fez no gênero prosa é tímida: o livro mais conhecido é Os Passos em Volta, de 1963, reunião de 23 contos, a maioria com indisfarçável corte biográfico.

Helder é misantropo radical, não dá entrevista, não recebe ninguém, recusa honrarias e prêmios (inclusive o prestigioso Prêmio Pessoa), revisa obsessivamente seus poemas. Tem um filho, jornalista, e poucos e fiéis amigos que o frequentam na casa em Cascais, cujo endereço é segredo de Estado. Eles garantem que a vida hermética não desbota o bom humor e a cítrica ironia que jorram da sua conversação. Mas qual é o valimento de sabermos detalhes da sua vida pessoal? Nenhum: o que importa é a doação desse astro cintilante da poesia contemporânea. Que brilhe por muito tempo.

  Em:
http://m.estadao.com.br/noticias/impresso,mobile,645892.htm
 

 

J.C. Ismael (Brasil):
J. C. Ismael estreou no jornalismo nos anos 1950 na cidade natal de São José do Rio Preto, como repórter e crítico de cinema. Formado em direito, foi crítico de cinema do jornal O Estado de S. Paulo e colaborador do Suplemento Literário, dos que o sucederam e do Caderno 2, todos daquele jornal. Foi colaborador da Folha de S. Paulo (Ilustrada), das revistas Vogue e IstoÉ e do Jornal da Tarde (Caderno de Sábado), sempre na área da cultura, tendo publicado cerca de setecentos artigos, entre ensaios, resenhas de livros e entrevistas. Foi ainda editor do Dipo, caderno de propaganda e marketing do extinto Diário Popular. Entre 1968 e 1981 produziu e dirigiu o documentário Um Dia na Velhice e curtas-metragens sobre artes plásticas, que incluem o único existente sobre a obra de Samson Flexor. Editor de antologias de poesias de William Blake e John Donne, é também tradutor. É autor de Cinema e Circunstância (Buriti/Cia.Ed.Nacional, 1963); Thomas Merton, o Apóstolo da Compaixão (T.A. Queiroz, 1984); Alan Watts — A Sagração do Caminho (T.A.Queiroz, 1988); Iniciação ao Misticismo Cristão (Record/Nova Era, 1998); um ensaio da coletânea Visões do Novo Milênio (Mercuryo, 1999); O Médico e o Paciente – Breve História de uma Relação Delicada (MP/Summus, 2ª edição, 2005) e Sócrates e a Arte de Viver (Ágora/Summus, 2004). Atualmente é colaborador do suplemeneto Sabático d'O Estado de S.Paulo.

 

 

© Maria Estela Guedes
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