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FM Há uma observação que fazes a respeito de tua avó materna,
no sentido de que ela “era uma católica praticante: um catolicismo
ortodoxo, jamais baianizado”. Sempre me pareceu que a literatura no
Brasil foi profundamente prejudicada pela interferência católica. Bem
entendido: do catolicismo adotado por nossos escritores e intelectuais.
Figuras determinantes como Alceu Amoroso Lima e Mario de Andrade quando
menos propiciaram um fio de alta tensão entre o que chamas de
catolicismo ortodoxo e baianizado, reorientando a vocação poética de
muitos de nossos escritores, interferindo na própria configuração
cultural do país. Qual a extensão de um prejuízo dessa natureza, em teu
entendimento?
LI Não creio que “a literatura no Brasil foi profundamente
prejudicada pela interferência católica”. Como todos os países do
Ocidente, o Brasil, como civilização, é uma criação do Cristianismo,
cuja maior obra é a própria Europa. Foi o Cristianismo que colonizou a
América, deixando marcas imperecíveis em sua educação, arquitetura,
música, pintura, modo de viver e de morrer etc. Esse impacto
civilizatório, destruindo em muitos casos civilizações milenares, como
as maia, asteca, inca, modelou o sistema de educação e de produção
literária e artística. O Brasil, desde o dia de sua “descoberta”, com a
Primeira Missa, seguiu e segue esse caminho.
Cabe
destacar que, no século xix,
a inteligência brasileira em sua maioria seguiu o caminho do
Positivismo, e recebeu influências de Darwin e Spencer, neutralizando
poderosamente o selo católico da nossa civilização, a qual se
caracterizava pelo fato de o catolicismo ser a religião oficial do país.
Além do mais, cumpre sublinhar que essa nova direção literária e
artística se disseminou no século
xx. O grupo católico (Jackson de Figueiredo, Alceu Amoroso Lima,
Jorge de Lima, Murilo Mendes, Otávio de Faria, Tasso da Silveira e
tantos outros) representa essa projeção de espiritualidade, numa
literatura de forte conteúdo regionalista, paisagístico e de escassa
interrogação existencial. Hoje, com a expansão dos evangélicos e das
religiões e seitas africanas, a influência católica, quer a temporal,
quer a espiritual, diminuiu sensivelmente, e são raros os escritores
brasileiros aos quais se poderia considerar “católicos fervorosos” ou
atuantes. Na imensa maioria, eles, como os pintores e músicos, são
católicos históricos e tradicionais (herdeiros de tradições domésticas)
“livres-pensadores” ou declaradamente ateus.
Deve
ainda ser acentuado que a literatura não é um caminho único, e a
comunidade literária se irradia em várias e numerosas famílias
espirituais, tanto no plano estético como nos planos político e moral.
FM Bem, não podemos esquecer que o projeto modernista de
nacionalizar o Brasil tinha forte conotação católica, cujos
desdobramentos conduziram ao integralismo. Benjamin Moser, na biografia
de Clarice Lispector, por exemplo, ao referir-se a Plínio Salgado,
observa que “como muitos integralistas, Salgado era fortemente
influenciado pelos escritores católicos que emergiram nos anos 1920, com
suas sugestões de nacionalismo místico”. Havia então a presença da
revista A Ordem, dirigida por Augusto Frederico Schmidt, em um
ambiente onde se confundiam aspectos como a chamada escola
introspectiva, nacionalismo místico, integralismo, em uma mesma sala
frequentada por Tristão de Athayde, Mário de Andrade, o próprio Schmidt,
Plínio Salgado, ambiente que em dado momento chegou a estar sob a
coordenação impositiva da Agência Nacional e Lourival Fontes, o
super-homem de Getúlio Vargas no comando do Departamento de Imprensa e
Propaganda. Ainda me refiro ao Benjamin Moser, ao dizer que “a fé
católica de muitos desses escritores levou alguns deles a se associar,
em geral temporariamente, ao integralismo, e a defender certas propostas
reacionárias, como a militância de Vinicius de Moraes em favor do cinema
mudo”. Quando passamos à Geração de 45, o que muda nessa relação com o
catolicismo?
LI Não creio que o projeto modernista de nacionalização do
Brasil tenha tido “forte conotação católica” como você afirma. Esse
projeto se inspirou em elementos indígenas e folclóricos, como o
comprova o Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade e a redescoberta
do barroco mineiro por Mario de Andrade, o qual era, aliás, um católico
tradicional. E a esses elementos de ancestralidade se acrescentou um
tempero de vanguardismo europeu, especialmente o sentimento da
velocidade haurido no futurismo de Marinetti. Observe-se que os
modernistas de São Paulo ignoravam o Nordeste brasileiro e o viam de
longe com olhos turísticos. E de “turistas aprendizes”, para usar aqui
uma expressão afortunada de Mario de Andrade. Plínio Salgado, com os
romances em que se utiliza de um processo de fragmentação da narrativa,
e uso imoderado da elipse e do laconismo, é um seguidor e discípulo de
Oswald. Como é um discípulo incômodo, dada a sua condição de criador do
Integralismo (o chamado “fascismo caboclo”), a crítica e os estudiosos
do Modernismo sempre esconderam essa evidência, omitindo seu nome ou
menosprezando-o, com a exceção notável de Wilson Martins que, em sua
monumental História da Inteligência Brasileira, chama a atenção
para a importância seminal de O Estrangeiro no cenário da nossa
ficção. Quanto a Vinicius de Moraes, ele foi uma descoberta de Otávio de
Faria, que lhe dedicou parte do livro Dois Poetas (o outro é
Augusto Frederico Schmidt). Otávio de Faria, autor de um incômodo e
instigante ensaio Machiavel e o Brasil, em que denuncia as nossa
misérias políticas, influenciou profundamente Vinicius de Moraes em sua
primeira formação marcada pela sua simpatia pelo fascismo. Eram amigos
íntimos e ocorreu entre ambos uma relação homossexual que foi apagada
quando Vinicius se tornou um dos expoentes da esquerda e do comunismo de
salão. O seu interesse pelo cinema mudo veio de Otávio de Faria, criador
do Clube Chaplin, quando estudante da Faculdade Nacional de Direito.
Nada teve a ver com o catolicismo. E há uma retificação que deve ser
feita: Otávio de Faria nunca foi integralista. Ele foi fascista, assim
como Jorge Amado, Graciliano Ramos e Carlos Drummond de Andrade foram
comunistas, e Rachel de Queiroz foi comunista e depois trotskista num
tempo em que a intelectualidade em sua maior parte não acreditava na
Democracia, considerando-a o regime da burguesia conservadora e infensa
às grandes reformas políticas sociais e econômicas. E além do mais, o
Brasil de 1930 até 1945 foi governado pelo estadista autoritário,
centralizador e ditatorial Getúlio Vargas, e na Europa imperavam o
nazismo de Hitler, o fascismo de Mussolini, o franquismo do
generalíssimo Franco e várias ditaduras sul-americanas dominavam a
América.
Evidentemente que a inclinação dos escritores católicos ou de famílias
tradicionalmente católicas era pelo fascismo e o integralismo. (“Deus,
Pátria, Família”, era o lema do integralismo. Os integralistas
envergavam uma camisa verde com um sigma que os distinguia, como os
nazistas e fascistas).
Quando a
Geração de 45 emerge, finda a Segunda Grande Guerra com a derrocada do
nazismo e do fascismo, o debate político passa a um segundo plano. Pelo
menos no seu início, essa geração será formalista e esteticista,
preocupada com a “reconstrução” da poesia e da literatura brasileira. O
nacionalismo modernista será substituído por um subjetivismo crescente e
por um cosmopolitismo de natureza atualizadora. É o tempo da descoberta
de Rilke, T. S. Eliot, Paul Valery, Mallarmé, Ezra Pound, Saint-John
Perse, Ungaretti e outros, que substituíram as devoções modernistas. E
estas eram Apollinaire, o futurista Marinetti e o Blaise Ceadrars que
Oswald de Andrade praticamente depenou em seu Pau- Brasil. Uma
coisa singular é que o Modernismo, teoricamente programado para proceder
a uma atualização da literatura brasileira, foi um dos movimentos mais
desatualizados e desinformados em relação às revoluções estéticas que
então se operavam na Europa e nos Estados Unidos. No grande banquete dos
ismos do século XX, alimentou-se de migalhas.
FM Estamos de acordo que “uma luz impostora ilumina todas as
vidas”. Evidente que não significa com isto falsear a realidade de forma
canalha, mas antes reconhecê-la como uma mescla de razões e desrazões,
anseios e decepções, impulsos e repetições, essências e trivialidades.
Como a poesia te descobre? O que sabias de ti quando começaste a
escrever?
LI Ao longo de minha trajetória literária, tenho me
manifestado talvez exaustivamente sobre a criação poética e a poesia. E
decerto essas manifestações haverão de ser sempre fragmentárias e
incompletas. Para mim, a poesia é uma manifestação da criatividade
humana; uma arte – a arte de fazer versos; o uso supremo da linguagem,
já que ela é uma magia verbal, um “idioma” específico dentro da
linguagem não só a comum como também da linguagem literária da prosa; um
testemunho da condição humana; uma celebração do Universo pelo homem.
Dentro desse quadro imemorial, que proclama a necessidade humana de
exprimir-se (inventando e documentando a passagem do tempo e a sua
experiência pessoal), cumpre sublinhar, com a necessária ênfase, que a
Poesia resulta de uma vocação individual e intransferível, que se
realiza e se aprimora através do trabalho, da pesquisa, da
experimentação e da capacidade de renovação diante da tradição. O poeta
nasce poeta e se faz e é feito pela cultura que consegue incorporar ao
seu ofício. E ele é apenas um elo no grande sistema poético do mundo, um
grão de poeira numa tradição que vem do início do mundo e haverá de
continuar enquanto este nosso planeta existir. Isto porque há algo, no
mundo e sobre o mundo, que só a linguagem poética tem condições de
exprimir. Há algo, no homem, do homem e para o homem, que só o poeta tem
condições de dizer, através de e com a sua linguagem.
Quando
comecei a escrever na adolescência, nada sabia de mim, a não ser que
desejava ser um poeta e escritor, e colocar a minha poesia e a minha
prosa a serviço dos homens, o que significa colocá-la a serviço da vida
e até da mudança do mundo, já que a mim me doíam e me doem a miséria e a
injustiça, a desesperança e a morte.
O
importante é que o escritor ou poeta projete em sua obra a sua
experiência, aquilo que Rubén Darío chama de “o tesouro pessoal”. E
converta essa experiência numa linguagem inconfundível.
FM Quais, aos olhos de um poeta brasileiro, seriam as
verdadeiras provas da realidade?
LI A realidade é sempre uma visão pessoal da realidade. Cada
um de nós tem a sua, e trabalha com ela ou para ela. É, assim, uma
representação, um modo de ver. Entendo que cada poeta, desde os mais
exponenciais aos mais modestos e obscuros, projeta em seus poemas uma
determinada visão da realidade, do mundo em que respiram, da vida que
levam. Para mim, até o sonho e a “alienação poética” são realidades,
pois se integram na vida pessoal do poeta e em sua produção. Direi que a
visão que tenho do mundo é a minha realidade. É talvez ou decerto uma
realidade pessoal, intransferível, mas nela cabem ou devem caber as
realidades dos outros. Goethe diz que os homens são seres coletivos.
Isto significa que não somos sozinhos nem estamos sós. Somos nós e os
outros. Os outros de hoje e os outros de ontem.
FM Entendes que o cosmopolitismo da literatura brasileira é
uma farsa? Como nos relacionamos com grandes centros canônicos e não com
a grandeza natural da cultura em cada país, que outro Brasil tens
descoberto à sombra dessa máscara?
LI Partamos do princípio e da evidência de que nós,
escritores latino-americanos, somos seres divididos entre o nosso
indigenismo e a nossa ibericidade. Como todos os países periféricos que
constituem a América Ibérica (à qual o Brasil pertence), temos uma
língua e uma etnia europeias (o espanhol, o português) e somos os
herdeiros ou usufrutuários de uma cultura transplantada e da cultura
autóctone. E a essas culturas se soma a cultura milenar que nos veio da
África À cultura transplantada – literatura, música, arquitetura,
educação, culinária, modo de viver e de morrer etc. – conferimos um selo
nacional que é a nossa diferença decorrente do nosso indigenismo. O
chamado “cosmopolitismo” de parte da literatura brasileira – como de
resto a dos outros países como Cuba ou México, Chile ou Argentina –
testemunha a nossa ligação transatlântica com a Europa, que, como centro
inarredável de tradição e laboratório de experimentação e invenção,
atrai a nossa atenção, nos abastece com o seu saber e a sua criatividade
e contribui para o nosso aprimoramento. E se funde com o que temos de
telúrico e nativo, do nosso chão. Atualmente, podemos vangloriar-nos de
que a produção literária e artística na América Ibérica já atingiu um
ostensivo grau de autonomia e independência, não pelo que recebemos ou
imitamos, mas pelo que criamos e inventamos. A América Latina se tornou
a pátria da imaginação e da criatividade, cada vez mais apreciada pelos
estudiosos, críticos e leitores de uma Europa que atravessa um período
da ostensiva exaustão, após tantos movimentos renovadores como o
simbolismo, o surrealismo, o cubismo, o futurismo, o expressionismo e
outros. A presença de escritores latino-americanos no fluxo editorial
europeu, e ainda a sua presença nos festivais e congressos realizados na
Europa, indica que cada vez mais estamos sendo reconhecidos pela nossa
diferença e originalidade. Com a sua explosão imaginativa, a diversidade
artística, o seu ímpeto testemunhal e documental, a sua diversidade
artística e a sua originalidade manifesta, a literatura,
hispano-americana é cada vez mais apreciada e aplaudida na Europa.
Ostentamos, ainda, uma “irracionalidade” e uma “magicidade” que, pela
sua dimensão onírica, primitiva e arcaica, é outra fonte de atração.
FM O tempo envelhece o criador ou a criatura?
LI Há poetas e escritores que dão o melhor de si mesmos na
juventude ou na maturidade, e decaem ou se tornam repetitivos à medida
que envelhecem. Outros há que se inovam e dão o melhor de si mesmos na
idade madura e na velhice. É um quadro variado. O importante é que o
poeta ou escritor descubra o momento em que deve silenciar, se é que ele
deve silenciar em algum instante de sua vida.
FM Na pg. 132 do teu livro de ensaios O Ajudante de
Mentiroso mencionas a tua insularidade como elemento responsável
pelo que chamas de “talvez incômodo ar de estrangeiro no cenário das
letras brasileiras”. Restringes a uma inveja crônica a relutância do
meio literário em relação à tua obra e até mesmo à tua pessoa. O caso se
explica assim mesmo, de maneira tão provinciana?
LI No meu caso pessoal, a minha “insularidade” decorre da
circunstância de ser originário de Alagoas, no Nordeste brasileiro – uma
região que se caracteriza pela sua beleza oceânica e litorânea, pela
miséria clamorosa da maior parte de sua população. Acrescente-se a essas
evidências a minha solidão, já que, antes de mim, minha terra natal só
produziu dois escritores de projeção nacional, Graciliano Ramos e Jorge
de Lima. A esses elementos, acresce o fato de ter seguido, no meu ofício
literário e poético, um caminho que atesta irrefutavelmente a minha
diferença em relação à minha geração e talvez ao próprio legado cultural
do Brasil. Costumo dizer que os escritores são constituídos pelo talento
(quando o têm) e pela inveja (sempre). Mas esta minha frase deve ser
acolhida mais como uma boutade. Embora a vida literária seja um
ostensivo domínio de competição e conflitos, e espelhe as virtudes e
vícios da condição humana, é também o território de uma convivência
harmoniosa. Ao longo do meu trajeto de escritor, muitas mãos, algumas
gloriosas, se têm estendido para mim, apoiando-me e abrindo-me caminho.
E, de minha parte, tenho procurado proceder da mesma maneira. Minha vida
tem sido um estuário de amizades. E também de admiração. Sei admirar.
De
qualquer modo, sinto-me um sobrevivente, já que atravessei vários
movimentos poéticos sem aderir a eles – o que não foi o caso de grandes
poetas empenhados em obter o aplauso ou a cumplicidade dos jovens – e
assisti ao sumiço e naufrágio desses movimentos. Confesso que sou muito
cioso de minha diferença, a qual se projeta no meu trabalho e na minha
maneira de conceber a literatura e a poesia, e deve constituir o meu
selo pessoal de poeta e escritor, o que me distingue dos meus queridos
confrades.
FM Outro dilema curioso que encontramos na literatura
brasileira diz respeito a este seu aspecto livresco – uma literatura
“que só sabe respirar o ar abafado dos livros” –, como tão bem
mencionas. O escritor brasileiro, em geral, rejeita a si mesmo como
elemento constitutivo da relação – que só se realiza, por sinal, de
maneira visceral – entre realidade e literatura. Há o prejuízo imediato
da superficialidade e um outro, por efeito de decorrência, de ausência
de diálogo com as grandes correntes internacionais. Apontamos aqui as
resultantes – teu diagnóstico é perfeito, ao dizer que esta literatura
“não pode fazer a leitura do mundo” –, porém, qual é a matriz em que se
origina este desvio?
LI Um escritor deve ser livresco e antilivresco. Deve ser
guiado pela evidência de que a literatura e a poesia são problemas de
cultura e não de mera sensibilidade. Um poeta, a meu ver, deve ser o
protagonista mais culto da comunidade literária, devendo conhecer um
legado que vem de Homero a Dante, de Virgilio a Camões, de Quevedo a
Shakespeare e se estende até os nossos dias. O conhecimento de outras
línguas é para mim fundamental, já que a tradição cultural da língua
portuguesa era insuficiente para as minhas necessidades de expressão e
educação cultural. Já o espectro da língua espanhola é diferente. Você
pode ser um grande poeta ou romancista em língua espanhola sem
necessitar conhecer outras línguas, já que no passado hispânico há
Cervantes e Quevedo, Lope de Vega e Garcilano de la Vega, Fray Luis de
Leon e Rubén Dario, Góngora e Antonio Machado, e centenas de outras
referências basilares.
Por
outro lado, o escritor deve respirar o ar da vida, da convivência, o
mundo dos outros, pois nele é que se abastece para a sua criação poética
e literária. E cada poeta ou prosador faz a sua leitura do mundo
– não uma leitura global e total do mundo, que é muito vasto e
inapreensível.
Lembro o verso magistral de José Martí: “Dos patrias tengo yo: Cuba y la
noche”.
Nós,
poetas, temos sempre a nossa Cuba (o nosso Brasil, o nosso México, o
nosso Chile) encravada em nossos corações. E temos a noite: o território
das escuridões e constelações, dos sonhos e pesadelos, da interrogação
existencial, da indagação cosmológica, da fusão amorosa, do amor e do
ódio, de nossa condição humana.
FM Em 2002, quando Walter Galvani recebeu o Prêmio Casa das
Américas, em entrevista concedida a Fabrício Carpinejar (Rascunho,
junho de 2002), o romancista comentou haver sentido restrição da parte
da mídia brasileira, que ele supõe tenha sido em relação ao regime
cubano, observando que “a divulgação em si não foi à altura do prêmio,
que tem prestígio e significado internacional”. Mais recentemente
ganhaste o mesmo prêmio. Como há reagido à premiação a imprensa
brasileira? Acreditas que este prêmio tenha perdido prestígio
internacional?
LI O Brasil é um grande gueto literário e lingüístico. A
literatura brasileira é completamente desconhecida no Exterior. Alguns
poetas e novelistas são editados e apreciados, individualmente, na
América Hispânica e em alguns países da Europa, mas esse conhecimento de
criações artísticas individuais não chega a se configurar na presença de
um país (ainda exótico) e de uma literatura. No plano interno o
desconhecimento é ainda mais pungente. As tiragens dos nossos livros
literários são quase sempre exíguas. Predomina no mercado o livro
estrangeiro, especialmente o best-seller planetário, sinal
inequívoco da colonização cultural e da dominação comercial por editores
multinacionais. A atividade literária no Brasil é cosmética, decorativa,
ornamental. Ser escritor no Brasil é uma coisa muito melancólica.
FM És um dos poucos autores brasileiros com trânsito livre
nos países hispano-americanos. Transfiro para ti a pergunta que quase
sempre me fazem, acerca do indigesto silêncio que marca as relações
culturais do Brasil com esses países. Quais os motivos da pouca (ou
nenhuma) atenção que nossos intelectuais, sobretudo eles, dão à poesia
hispano-americana?
LI Não posso nem devo esconder que a minha condição de “poeta
ibero-americano”, decorrente de minha presença em numerosos festivais de
poesia e também de sucessivas traduções de minha poesia, em antologias
poéticas ou em livros autônomos, muito me alegra. Esse trânsito,
iniciado em 1980, quando Carlos Montemayor fez editar no México a
antologia La Imaginária Ventana Abierta, e que hoje alcança a
Espanha, onde a minha obra poética começou a ser traduzida de maneira
intensiva, é realmente um trânsito pessoal. Várias causas podem ser
atribuídas ao silêncio do Brasil. Menciono a circunstância de que a
língua espanhola só agora, no governo Lula, começou a ser ensinada nas
escolas. Até antes da Segunda Grande Guerra, os escritores brasileiros,
quando sabiam francês, ensinada nos colégios, se voltavam para França. E
quando só conheciam o português, contentavam-se com as traduções
estrangeiras e as produções existentes no idioma nativo. O exílio de
incontáveis professores e escritores brasileiros nos países da América
Hispânica, durante a ditadura, instaurada em 1964, estimulou a
curiosidade em torno das literaturas desses países. Mas o caminho da
descoberta haverá de ser longo e demorado, e literaturas ricas e
vigorosas de uma América que é hoje a pátria da imaginação e da poesia
haverão de ser consumidas pelos escritores e leitores brasileiros. Cabe
ainda sublinhar a inoperância dos mecanismos culturais destinados a
promover a nossa literatura no Exterior, o que estabeleceria uma
contrapartida proveitosa com as demais nações hispano-americanas.
É
notório que a poesia produzida em grandes países do Ocidente está hoje
esgotada e necessita de uma transfusão que a América ibero-americana tem
condição de oferecer.
A
repercussão escassa do Prêmio da Casa das Américas a um escritor
brasileiro deve ser atribuída à visão provinciana que o Brasil tem do
próprio Brasil, e que se irradia por todos os setores. O prestígio dos
prêmios da Casa das Américas nos países hispano-americanos e na Espanha
e em outros países da Europa é incontestável.
Quando
fui distinguido com o Prêmio Literatura Brasileira da Casa das Américas,
a repercussão nos países hispano-americanos e na Espanha foi
confortadora. No Brasil, foi irrisória.
O
insulamento cultural do Brasil é uma realidade incontestável. E
precisamos de pontes, neste mundo cercado de outros lados.
[Fortaleza, Rio de Janeiro – Julho de 2010] |