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REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
Nova Série | 2011 | Número 10
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A história é a mais
importante das ciências. Esta frase do
físico César Lattes, baseando-se no pai da mecânica quântica Erwin
Schrödinger, é frequentemente citada1 e dá uma medida
perfeita do encantamento mágico que a História nos provoca. O sortilégio
da musa Clio é universal, pois não há homem sem história, mas ele se
revela particularmente agudo entre homens de ciência. Alguns cientistas
há, é verdade, que externam desdém pela História, mas estes poderão
sofrer a vingança da musa desdenhada. Já ouvi várias vezes alguém dizer
que um cientista pode desconhecer completamente a História e mesmo assim
ser agraciado com o Prêmio Nobel em sua ciência. Assim pode ser, mas a
vingança de Clio é que ele passará a fazer parte da História da Ciência
e constará proeminentemente de seus livros. A História é inescapável. |
DIREÇÃO |
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Maria Estela Guedes |
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CARLOS A.L.
FILGUEIRAS
A Ciência
e o
Sortilégio de Clio |
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Carlos Alberto Filgueiras .
Departamento de Química – ICEx –
UFMG - Belo Horizonte |
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Se
refletirmos que o número de cientistas vivos é maior que a soma de todos
os cientistas mortos desde os albores do mundo, temos um dos muitos
pontos de partida para iniciar um debate sobre a História e a Ciência,
suas relações e a necessidade de desvendá-las. Isto mostra como, com o
passar do tempo, mais e mais indivíduos se têm dedicado à ciência. Este
é um fenômeno social e histórico de primeira grandeza. Se o homem é um
ser político, como queria Aristóteles, ele também é um ser histórico, ou
historizante, como poderia ter dito Heródoto. Ele não só protagoniza a
História, mas tem uma força inata que o leva a registrar seus feitos em
sociedade, desde as culturas mais primitivas às mais desenvolvidas.
Isso posto, o que é História da Ciência? E
para que serve?
Discorrer sobre a História da Ciência e sua
utilidade é um tema apaixonante, que dá margem a discussões englobando
várias linhas de discurso, como meus alunos já presenciaram inúmeras
vezes. O importante, para começar o debate, é deixar claro que História
da Ciência não é nenhuma das duas, isto é, nem História nem Ciência
apenas. É por isso que muitas vezes um excelente cientista ou um
igualmente excelente historiador pode meter-se a fazer o que pensa ser
História da Ciência e acaba por desembocar num desastre total, se não
estiver munido de uma preparação que lhe permita transitar pelas duas
áreas, sobretudo se não tiver a necessária sensibilidade para fazer a
ponte entre as duas, repleta de sutilezas e armadilhas. Contudo, uma vez
dominado o trânsito pela ponte e pelas duas margens, a recompensa
intelectual pode ser copiosa e gratificante.
O fundador de nossa disciplina, o
belga-americano George Sarton, propôs-se a escrever uma História Geral
das Ciências, dentro de uma visão corrente nas primeiras décadas do
século XX, quando obras de imensa envergadura, enciclopédicas mesmo,
foram escritas por diferentes autores. Assim surgiu o grande monumento
inacabado de Sarton que é An Introduction to the History of
Science2. Após várias décadas, e já sentindo o peso
dos anos, concluiu Sarton que devia parar. Não obstante, sua obra mestra
cobre a História da Ciência da antiguidade ao século XIV, tanto no
Ocidente como no Oriente. Por essa época, isto é, nos anos finais de sua
vida, foi-lhe perguntado por um estudante de Harvard porque ele não
escrevia da mesma forma fascinante como lecionava. Essa observação do
estudante levou-o a produzir outra obra em tom diferente, que é A
History of Science3, na qual ele narra este episódio
no início do prefácio. Um pouco mais além no mesmo livro, Sarton nos dá
uma lição de como se deve ensinar. A História da Ciência,
diz ele, é um campo imenso que resultaria impossível cobrir por
completo com uma centena ou um milhar de aulas e, na medida do possível,
preferi tratar uns poucos temas seletos antes de intentar o impossível
...
Para cada tema escolhido, digamos Homero,
não é possível estabelecer todos os feitos nem é necessário fazê-lo.
Algumas poucas coisas elementares devem repetir-se, mas o privilégio do
espaço deve pertencer a tópicos menos trilhados e também mais
importantes.
É o eterno conflito entre o conhecimento e o
saber. Os feitos conhecidos, os pormenores técnicos, são fundamentais,
contudo insuficientes. Devem simplificar-se, simbolizar-se e informar-se
com uma compreensão mais profunda do problema que implicam.
À medida que eu envelhecia, minhas aulas se
faziam mais simples: eu tratava de dizer menos coisas, porém mais bem
formuladas, com mais humanidade.
A erudição sem pedantismo é tão rara como o
próprio saber3.
Sarton, contudo, era um gênio isolado, diverso da maioria dos
outros humanos. Nele o domínio do caminho entre a ciência e as
humanidades, assim como das duas áreas, era total e manejado com
maestria. Nem sempre, porém, as coisas se passam assim.
Em sua famosa conferência intitulada As duas
culturas, proferida em 1959 na Universidade de Cambridge e desde
então publicada inúmeras vezes, o escritor britânico Charles Percy Snow
provocou literatos e cientistas ao dizer que os intelectuais olham
com desdém para os cientistas que dizem não ter lido praticamente nada
de literatura. Eles os consideram especialistas ignorantes. Contudo, a
ignorância dos literatos é da mesma ordem. Muitas vezes estive presente
em reuniões de pessoas que, pelos padrões da cultura tradicional, são
consideradas altamente educadas e que expressam com gosto sua
incredulidade do analfabetismo cultural dos cientistas. Mais de uma vez
os provoquei perguntando-lhes quais deles seriam capazes de descrever o
Segundo Princípio da Termodinâmica. A resposta era fria e negativa.
Contudo eu estava perguntando o equivalente científico de ‘você já leu
alguma obra de Shakespeare?’4
Esta observação de Snow põe em relevo um aspecto
importante da cultura do Ocidente a partir do início do século XIX, que
se difundiu por todo o mundo. A partição da cultura humana em dois
campos estanques e quase sem comunicação criou esse estranhamento entre
os chamados intelectuais e os cientistas. Então um cientista não é um
intelectual? Ele não vive de propor e resolver problemas científicos com
o intelecto? É claro que os cientistas lançam mão de arsenais
experimentais cada vez mais complexos e avançados, mas isso não
significa que o intelecto seja dispensado. Todavia, cientistas não são
considerados intelectuais na linguagem corrente.
Transgredir limites epistemológicos é, no
meu entender, muito salutar. Em 1893, a encíclica Providentissimus
Deus, do Papa Leão XIII, incorporava interpretações da Escritura
expressas por Galileo Galilei em suas cartas teológicas, como a
Carta à Grã-Duquesa5. É claro que Galileo havia sido
um notório transgressor epistemológico. Além de dedicar-se
à mecânica, à astronomia e à matemática, era também músico, poeta e
teólogo. Com seu gesto, Leão XIII, talvez inadvertidamente, também
cometia notável transgressão ao aliar-se intelectualmente a um hereje
tão duramente condenado pelos prepostos de seu antecessor Urbano VIII.
A partição dos saberes, melhor dito, o enclausuramento
epistemológico chegou a um extremo tal que causa hoje dificuldades no
próprio diálogo diário entre pessoas de campos diferentes, como das
ciências da natureza e das humanidades. Acredito que a maioria das
pessoas não concordará, pelo menos em tese, que esta seja uma boa
situação. Ao contrário, ouço muitos deplorarem este estado de coisas,
mas ao mesmo tempo resignarem-se, por acharem que não há nada a fazer.
Esta separação é aceita como um fato da vida, um fado inescapável. O
enorme progresso tanto das ciências como das humanidades exige que todos
se especializem cada vez mais, praticamente impossibilitando um contacto
com o outro lado. É inegável que a especialização está
para ficar e que não há retorno neste aspecto. Mas será que é
absolutamente inevitável uma separação cada vez maior entre os dois
campos? Não será possível estabelecer na atualidade alguma ponte entre
eles? No tempo em que Snow abriu a questão, há mais de meio século, não
se vislumbrava uma saída para o dilema. De lá até nossos dias houve
muito progresso. Hoje a trama das ideias tornou-se mais complexa,
resultando numa rica tessitura, mais interessante que aquela então
prevalente. Em nossos dias não só se considera importante criar uma
ponte entre as ciências e as humanidades, mas trabalha-se ativamente na
consecução desse objetivo.
Como resolver a questão? Eu acredito firmemente que uma
das melhores maneiras é pelo cultivo da história da ciência. A primeira
dificuldade que surge então é definir o que é história da ciência. A
historiografia contemporânea pretende demonstrar, como mencionei acima,
que história da ciência não é nem história apenas, nem tampouco apenas
ciência. Esta postura surgiu com o tempo, depois de muitas
incompreensões e equívocos. O que torna a história da ciência diferente
da história social, cultural, econômica, política? Simplesmente a
palavra ciência, que tomo aqui no sentido das ciências da natureza e da
matemática. Para fazer história da ciência, um pesquisador tem que
conhecer a ciência de que vai tratar. Como falar do aparecimento do
conceito de ligação química e estrutura molecular no século XIX sem um
conhecimento prévio de química? Por isto o historiador da ciência tem
que conhecer bem a ciência de que trata. Isto é uma verdade quase
axiomática quando se trata da ciência mais próxima de nós temporalmente,
mas é uma necessidade que se ameniza ao tratar de períodos mais
recuados. Por outro lado, apenas conhecimento científico não basta. É
preciso conhecer bem a história, e ter familiaridade com as formas como
o relato histórico se desenvolveu no tempo. O historiador da ciência tem
que conhecer as correntes filosóficas que influiram na postura dos
cientistas. O grande químico sintético francês Marcellin Berthelot,
morto em 1907, jamais aceitou a idéia de átomos, porque este conceito
não se coadunava com sua filosofia positivista radical. Usando o posto
de ministro da educação ele combateu implacavelmente a aceitação da
teoria atômica na França. O conhecimento da história e das influências
do meio e da época sobre cientistas ou sobre historiadores fará com que
se possa ler nas entrelinhas muito mais do que está escrito. Da mesma
maneira, quando quisermos escrever alguma coisa de natureza histórica,
precisamos estar cientes de que há contingências temporais, locais e
culturais atuando sobre nós que farão com que o relato que fizermos de
qualquer assunto histórico, seja de história da ciência ou de história
em geral, seja radicalmente diferente do mesmo relato que seria escrito
por alguém na Finlândia, por exemplo.
Em termos de declaração de intenções
acredito haver uma concordância no desejo de tentar aproximar ciências
e humanidades. Contudo, ao se tentar passar da intenção à prática, o
mais comum é as coisas emperrarem. Existiria algo inerente, seja à
ciência moderna ou às humanidades e às artes, que as tornariam
irreconciliáveis? Ou esta suposta irrreconciliabilidade não será uma
construção urdida e solidificada a partir do século XIX, que muitos
passaram a aceitar com certa dose de conformismo e inexorabilidade?
Quero mencionar o caso de um brasileiro interessantíssimo do século XIX,
Pedro Américo de Figueiredo e Melo, cuja vida intelectual é
relativamente pouco conhecida. Ele foi um de nossos mais notáveis
pintores daquela época, com vastíssima produção que inclui retratos,
paisagens, naturezas mortas e, sobretudo, cenas históricas, como O
Grito do Ipiranga, em São Paulo, ou a gigantesca Batalha
do Avaí, no Rio de Janeiro. Pedro Américo, artista precoce,
seguiu para Paris em 1859, aos 16 anos, como bolsista do Imperador.
Matriculou-se tanto na Escola de Belas Artes como na Sorbonne, onde
estudou Filosofia. Seu interesse desde cedo pela ciência é também
demonstrado por ele ter sido membro da Sociedade Velosiana de
Ciências Naturais do Rio de Janeiro. Mais tarde veio a defender
uma tese de doutorado na Universidade de Bruxelas, em 1868, intitulada
A Ciência e os Sistemas - Questões de História e Filosofia Natural6.
A tese teve excelente acolhida e boa repercussão em seu tempo, tendo
inspirado um ensaio da italiana Carolina Invernizio em 18774,
em que a autora enfatiza a postura anti-positivista de Pedro Américo,
certamente pouco comum em adeptos da ciência na época. Esta postura está
clara em trechos em que ele critica Comte: ...com o pretexto de
eliminar as hipóteses do método científico, tidas como criações
perigosas para o avanço dos conhecimentos humanos, adotam-se muitas
vezes sistemas exclusivos que se caracterizam como negações dogmáticas
muito mais perigosas ainda5. A tese de Pedro Américo
trata da evolução da filosofia, da arte e da ciência, com bastante
conhecimento e familiaridade com todas estas áreas. No caso da ciência,
surpreendentemente para nós modernos, ele demonstra grande facilidade em
discorrer sobre matemática, astronomia, física, química e história
natural. Além dos cientistas e filósofos do passado, os quais mostra ter
lido diretamente, ele cita frequentemente cientistas importantes de seu
tempo, como William Herschel, Davy, Arago, Liais, Chevreul, Humboldt,
Lyell, Claude Bernard, Wurtz. Sua atitude aberta fica patente quando
diz: ...se há no mundo uma situação contraditória do pensamento,
um estado inexplicável da consciência, é a do sábio que acredita ser
juiz das opiniões dos outros, negando ao mesmo tempo a razão. Nenhuma
desarmonia me parece mais completa, nenhuma discórdia mais profunda,
mais estranha, mais dolorosa6.
Pedro Américo aparece assim como um exemplo já pouco encontradiço na
segunda metade do século XIX, um espírito renascentista que busca a
universalidade do pensamento.
Sempre tive um certo fascínio por aquelas
pessoas que conseguem transgredir seus supostos limites
epistemológicos e mostrar competência em áreas distintas. Foi por isso
que há alguns anos resolvi estudar a figura e a carreira ímpares do
químico e compositor russo Alexandre Borodin. Borodin apresenta uma
singularidade, a de ter sido simultaneamente artista e cientista ao
longo de toda a vida. Outros foram as duas coisas, mas em épocas
distintas de suas vidas. Que eu saiba, ele foi o único em que os dois
chamamentos sempre coexistiram e foram cultivados até o fim de sua
existência7. É interessante notar que ele foi
repreendido tanto por cientistas como por músicos por dedicar-se às duas
áreas. Seu professor de química e mentor na Academia Médico-Cirúrgica de
São Petersburgo, Nikolai Zinin, que desde cedo lhe reconheceu o talento
como cientista, disse-lhe, ainda em seu tempo de estudante: Senhor
Borodin, preocupe-se um pouco menos com canções. Estou pondo todas as
minhas esperanças no senhor como meu sucessor, e o senhor só pensa em
música; não dá para caçar duas lebres ao mesmo tempo7.
Borodin, todavia, caçou as duas lebres com maestria até o fim de sua
vida. É curioso, porém, que anos mais tarde seu grande amigo, o
compositor Nikolai Rimsky-Korsakov, também insistia com ele para que
deixasse a química e se dedicasse a sua verdadeira
vocação, a música.
A que se deve esse desejo de transgredir?
Melhor ainda, por que as trangressões são menos comuns hoje que no
passado?
Estou convencido de que na raiz do problema
esteja a educação moderna, e não, como muitas vezes se alega, a
complexidade de cada área específica do conhecimento. Esta complexidade
supostamente não permitiria incursões por outros campos, sob pena de se
ficar desatualizado em sua área original, ou tornar-se alvo do desprezo
de seus pares, por preocupar-se com devaneios sem
importância para sua carreira. Embora a especialização seja
importante em todos os campos da vida moderna, não se deve especializar
as pessoas desde tenra idade. Antes é preciso incutir-lhes uma visão
geral do conhecimento, que inclua ciências, humanidades, línguas e
artes. Os aspectos qualitativos da educação, que poderiam ser
contemplados com um ensino mais abrangente e mais exigente,
são rotineiramente postos de lado em favor de certos aspectos
quantitativos, como o número de pessoas que se formam, com escassa
preocupação com a qualidade de seu conhecimento.
As características peculiares da história da ciência fazem com que ela
às vezes seja incompreendida tanto por cientistas como por
historiadores. Quando comecei a trabalhar na área, e já se vão 25 anos,
muitos me encaravam com incredulidade, quase como se eu fosse uma
aparição fantasmagórica. Várias vezes me perguntaram: mas você é
muito jovem para fazer história da ciência; isso é para velhinhos.
Pior ainda acontecia por causa de meu grande interesse pela história da
ciência no Brasil. A pergunta invariável, em tom de desprezo ou
escárnio, era: história da ciência no Brasil? Isso existe?
O que as pessoas queriam dizer era que não acreditavam que tivesse
havido ciência no Brasil antes da Segunda Guerra Mundial, com algumas
pequenas concessões quanto às primeiras décadas do século XX. De fato, o
que havia era uma enorme ignorância de nosso passado científico, que
começou a ser desvendado de forma séria e meticulosa nos últimos trinta
anos, e do qual há ainda muito a fazer. Naquela época em que pouco se
conhecia do assunto, eu costumava retrucar aos céticos que mesmo que o
Brasil não tivesse tido um passado científico, ainda assim este seria um
campo válido de estudos, e acrescentava: às vezes uma pausa pode ser tão
eloquente na música como uma nota. É claro, contudo, que eu não
acreditava na premissa de que não houve ciência no Brasil colonial ou
imperial. O que era preciso fazer é que as pessoas se despissem do
preconceito de que ciência é só aquilo que se faz em universidades ou em
centros de pesquisa. Ora, Descartes, Pascal, Leibniz, Lavoisier, Scheele
e Priestley, só para citar alguns nomes, nunca trabalharam em
universidades, e ninguém lhes negaria o lugar importante que ocupam na
história da ciência. Se deixarmos cair os preconceitos acadêmicos, o
panorama que se nos descortina é riquíssimo e pode levar-nos a um
entendimento bastante diverso a respeito de nosso próprio país.
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Para que serve a História da Ciência? Nós precisamos
dela? |
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Em adição a meu trabalho como químico, também tenho
trabalhado há muitos anos com História da Ciência, conforme já disse.
Surpreendentemente, a área começou a atrair um número crescente de
interessados na última década, algo inexistente há um quarto de século,
e este é um fenômeno que já se verifica em todo o país. O curioso é que
aparece gente de todas as origens acadêmicas, tanto de áreas científicas
como das humanidades. É um grande desafio pôr a dialogar pessoas
oriundas de química, física, matemática, biologia, astronomia, medicina,
economia, psicologia, história, letras, etc. Ao mesmo tempo, é uma
tarefa gratificante, em que aprendo mais que ensino.
Mas por que razão pessoas tão diferentes e em número
elevado se interessam cada vez mais por esses estudos, aqui e em todo o
mundo? Como ponto de partida precisamos considerar o desenvolvimento
extraordinário da ciência e da tecnologia a partir do século XVI, com um
ímpeto cada vez maior à medida que nos aproximamos de nossos dias. Este
é um fenômeno histórico ímpar e de grande interesse e complexidade.
Antes da aceleração deste processo a vida das pessoas não variava com
tanta velocidade e intensidade como ocorreu desde que o fenômeno se
intensificou, a partir do último século. Basta refletir sobre as
mudanças ocorridas no período de vida de cada um de nós. Este fenômeno é
crescente e irreversível. Daí resulta o interesse em conhecê-lo melhor,
dada a premissa de que o ser humano é tanto um homo historicus
como um historiae narrator. É também uma constante o
desejo de estabelecer uma forma de comunicação com o já mencionado
outro lado, isto é, o mundo científico por parte dos que se
dedicam às humanidades, e o oposto por aqueles oriundos do campo
científico. Aparentemente essas pessoas percebem que talvez já exista em
muitos segmentos da sociedade uma certa saturação com o distanciamento
excessivo dos dois campos, e sentem uma necessidade de aproximação.
Aliás, isto já se vê hoje em dia na própria maneira como elaboramos
nossos projetos de pesquisa na ciência. Eu costumo dizer aos alunos de
graduação em química que quando eles estiverem no auge de suas
carreiras, cerca de vinte anos depois de formados, a maneira de praticar
a química será muito diferente daquela praticada por minha geração. Os
projetos e trabalhos de pesquisa já começaram a tornar-se cada vez mais
interdisciplinares, envolvendo não só mais de uma ciência da natureza,
como química, física e biologia, mas também ciências ambientais,
sociologia, economia, ética, direito, etc. Situação semelhante se
verifica em outras áreas. Esta tendência dá sinais crescentes de que se
acelerará. Em suma, uma preparação para esse desafio do futuro exigirá
uma abertura das mentes. A história da ciência poderá ser um dos
veículos capazes de auxiliar a construir esta abertura. Ao que parece,
muitas pessoas já estão persuadidas disso. |
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Como se pode estudar história da ciência? |
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Existem várias maneiras de se estudar história da
ciência. Até umas três décadas atrás havia um debate encarniçado entre
os chamados historiadores internalistas da ciência e o grupo dos
externalistas. O primeiro defendia que a história da ciência deve ser
feita apenas num contexto interno à própria ciência, isto é, como uma
descoberta invalidou uma teoria e como se construiu outra teoria mais
abrangente que desse conta tanto daquilo que a teoria antiga explicava
como também dos fatos novos. Esta abordagem pressupõe um conhecimento
íntimo da ciência, e não se interessa muito pelos fatores culturais,
sociais, econômicos ou políticos. Já a escola externalista adotava o
ponto de vista oposto, isto é, estes últimos fatores são muito mais
importantes na construção da ciência que aqueles inerentes a ela
própria. Na historiografia contemporânea houve um apaziguamento dessas
posições extremas, e hoje prefere-se buscar uma conciliação das duas
abordagens, que resulta numa história da ciência muito mais rica. Do
ponto de vista de um arcabouço filosófico, até pouco depois da primeira
metade do século XX a história da ciência foi dominada pelo positivismo,
exemplificado por luminares como o já mencionado George Sarton. Apesar
do enorme papel desempenhado por Sarton, a quem devemos um imenso
reconhecimento, para ele ciência era apenas conhecimento positivo
organizado2. Assim escreveu ele: O historiador
da ciência não pode devotar muita atenção ao estudo da superstição e da
magia, isto é, da irracionalidade, pois este estudo não o ajuda muito a
compreender o progresso humano. A magia é essencialmente
antiprogressista e conservadora; a ciência é essencialmente
progressista; a primeira caminha para trás; a segunda para a frente2.
Em decorrência, na História da Química, ao tratar dos
dois milênios em que vigorou o paradigma alquímico, só devia interessar
ao historiador da ciência aqueles aspectos da alquimia que dissessem
respeito à descoberta de novos materiais, operações e processos de
laboratório. Teorias alquímicas como a dos quatro elementos ou,
sobretudo, tudo que se referisse a misticismo ou magia era indigno da
atenção do historiador. Por isso, estudar assuntos como a alquimia de
Newton ou os sonhos de Kekulé era pura perda de tempo. Pois justamente
alguns itens dessa natureza, percebe-se hoje, são cruciais para se
entender a evolução da ciência. O estudo da história dessa ciência
marginal ou pseudo-ciência, outrora desprezado por
não ter relevância, como se lê nas palavras do próprio Sarton, é hoje
aceito como um campo legítimo de investigação para os estudiosos da
história da ciência, numa postura discordante daquela de décadas
passadas. Sua legitimidade pode ser mostrada na argumentação que se
segue.
A prática científica tem pelo menos dois momentos,
ambos importantes. O primeiro é o contexto da descoberta,
em que o cientista observa, experimenta, tabula resultados, compara,
busca estabelecer relações causais, sempre que possível expressas
matematicamente. A consequência é o estabelecimento de generalizações,
que são traduzidas em leis, o conjunto das leis originando as teorias.
No contexto da descoberta muitos fatores não racionais não só interferem
mas podem ter papel importantíssimo. Frequentemente, quando alguém
inicia sua carreira científica sofre um bombardeio com a idéia de que
cientistas são seres racionais, diferentemente do resto da humanidade, e
que fazer ciência exclui qualquer subjetividade. Isso não poderia estar
mais longe da verdade, e de forma alguma corresponde à realidade. O que
nos dizem nos cursos de ciências das universidades, ou pelo menos foi o
que ouvi muitas vezes, em mais de um país, é que o cientista observa,
experimenta, mede, calcula, usa a indução e a matemática e estabelece
relações; a partir daí, por via de deduções, outras conclusões podem ser
tiradas, todo o processo transcorrendo de forma absolutamente racional.
Ora, todos nós que trabalhamos com ciência sabemos que, de nossas
medições experimentais frequentemente escolhemos e aproveitamos aquelas
que consideramos melhores, e descartamos o resto. Isto é subjetivo, pois
depende de escolhas pessoais. Não se trata de fraude, em absoluto. Não
se imputa nenhuma acusação aos cientistas, apenas se reconhece que seu
trabalho também tem um aspecto subjetivo, queiram eles ou não. Depois
desta digressão, vamos ao segundo momento da prática científica, que é o
contexto da justificação. Uma vez formulada uma lei ou
teoria, ela será testada em situações novas, inusitadas. Se ela passar
neste teste sairá vitoriosa, caso contrário será descartada. Neste
segundo momento da prática científica não entram fatores subjetivos.
Aqui as teorias são julgadas pela natureza, de forma totalmente
impessoal. Se as predições científicas forem corroboradas pela
experimentação, a teoria terá passado o teste e será aceita até que se
torne incapaz de explicar novas situações.
Nas últimas décadas ocorreu uma mudança do
foco historiográfico, distanciando-se das grandes e notáveis sínteses
enciclopédicas, como os trabalhos de George Sarton, Lynn Thorndike,
Joseph Needham, Charles Gillispie e outros, em direção a uma
concentração de estudos em aspectos mais limitados temporalmente, e por
isso mesmo mais ricos em pormenores e em profundidade de análise. Esta é
uma tendência presente na história contemporânea em geral, não apenas na
história da ciência. O enfoque em estudos de casos e suas múltiplas
relações com o desenvolvimento geral da ciência, assim como a
importância crescente da integração das outrora separadas e até por
vezes antagônicas correntes internalista ou externalista conduziu a um
debate enriquecedor e a uma abordagem multifacetada das questões,
interessante e profícua. Há sessenta anos a postura dominante era
distinta. Em seu famoso livro de 1949, The Origins of Modern
Science, o historiador britânico Herbert Butterfield chegava ao
ponto de negar que a história da ciência fosse uma verdadeira disciplina
científica, ao escrever que a história da ciência não foi
transformada em história genuína e ainda está em um grau inferior de
organização como o trabalho do analista e do cronista8.
Esta afirmação negava à própria disciplina da história da ciência o
caráter de história no sentido corrente do termo, deixando-a na condição
de anais ou crônicas, cujo objeto seriam biografias e casos anedóticos
ou pitorescos.
A postura de boa parte dos escritores da
primeira metade do século 20, ao descurar ou desprezar os elementos não
científicos (teológicos ou metafísicos, no jargão positivista) no
surgimento e evolução das idéias e das teorias científicas, foi por
largo tempo um empecilho ao entendimento pleno do processo de criação da
ciência.
Pode-se dizer, a respeito de dois grandes
sistematizadores da história da ciência da primeira metade do século 20,
Sarton e Thorndike, que o primeiro, fiel a sua herança positivista, não
aceitava levar em conta nada que não fosse absolutamente racional,
enquanto o segundo buscava justamente os elementos arracionais na
história do desenvolvimento das idéias. Thorndike foi de certa forma um
precursor da historiografia moderna, procurando ao máximo uma
contextualização do fenômeno histórico. Conforme escreveu, referindo-se
à Idade Média, por exemplo, nenhum escritor medieval, seja de
ciência ou de magia, pode ser entendido por si próprio, mas precisa ser
avaliado com respeito a seu ambiente e antecedentes9.
Vivemos, portanto, um momento ímpar da
evolução de nossa disciplina. Estamos numa época de enorme liberdade
ideológica e historiográfica, como, aliás, sempre fiz questão de
insistir com meus alunos. Esta liberdade recém-conquistada é preciosa e
necessita ser cultivada. As rígidas amarras historiográficas ruíram,
apesar de ainda terem ainda alguns defensores, como às vezes vejo em
pareceres anônimos de artigos submetidos à publicação. É como se os
defensores resistissem em seus bastiões, protegidos pelo anonimato que
lhes permite defender posições que não mais defenderiam
publicamente.
Todavia, o preço da liberdade é alto. Ela exige uma
enorme erudição e capacidade de análise, que só se conseguem por
trabalho árduo e denodado. História da Ciência não é uma disciplina
fácil, mas é uma noz com casca para ser comida por quem tiver bons
dentes. É necessária muita leitura, perpassando várias áreas do
conhecimento, e também o domínio de várias habilidades. Entre estas se
inclui necessariamente um conhecimento específico da ciência em estudo e
um bom comando de línguas estrangeiras. O desconhecimento da
ciència cuja história se pretende estudar leva a situações das mais
ridículas, como já presenciei várias vezes, chegando em alguns casos às
raias da caricatura, quando pessoas sem preparo científico discorriam
afoitamente sobre assuntos científicos com os quais não tinham a menor
familiaridade.
É igualmente inconcebível que alguém queira, como já
vi, trabalhar a obra de um cientista estrangeiro ou uma corrente de
pensamento científico sem ter o domínio da língua ou línguas em que
aqueles assuntos foram redigidos. O autor de tais estudos poderá fazer
bom trabalho de divulgação científica, de popularização da ciência, mas
não fará trabalho de investigação original. Basta imaginar o caso de um
estrangeiro que quisesse estudar o Brasil sem saber português, e se
poderá avaliar a impossibilidade da situação.
Sem estas salvaguardas ao querermos fazer um trabalho
intelectual de bom nível, cairíamos numa superficialidade inconsequente.
A História da Ciência exige pois muito em termos de preparação e
trabalho de seus cultores, mas também retribui imensamente em satisfação
profissional e deleite intelectual. Partindo do pressuposto de que o
desenvolvimento da História da Ciência pode ter o dom de ajudar a fazer
a ligação entre as culturas científica e humanística, seu cultivo é não
só necessário como essencial e urgente num mundo que dá vários indícios
de desejar essa aproximação cultural.
É claro que a construção dessa ligação não pode ser
levada a cabo apenas de um dos lados. A História da Ciência é um dos
campos de estudos mais marcadamente interdisciplinares, para o qual
devem concorrer diferentes especialidades. Isto fica mais claro quando
se admite a obsolescência da antiga rivalidade entre as posturas
internalista e externalista, e a emergência de uma abordagem múltipla,
muito mais rica. Assim, o trabalho do historiador da ciência exige
também de seu cultor disposição de dialogar com o outro,
isto é, com o profissional do lado oposto da ponte.
Enfim, é possível fazer História da Ciência de
qualidade, apesar de todas essas dificuldades? Sim, é, como vejo num
número crescente de pessoas que se dedicam com afinco a este trabalho e
conseguem produzir obras relevantes e meritórias. Como em todas as áreas
do conhecimento, à medida em que ela tende a uma maior consolidação,
também aumentam as exigências, o que leva a uma depuração entre o que é
valioso e o que não é. Vejo com satisfação que a situação existente hoje
entre nós está nessa fase, que, assim continuando, poderá levar ao
estabelecimento da área de História da Ciência de forma sólida e
duradoura, como, acredito eu, desejam todos aqueles que a ela se
dedicam. |
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Referências |
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1.
César Lattes, entrevista concedida a Micheline Nussenzveig e Cássio
Leite Vieira, Ciência Hoje, agosto de 1995.
2.
George Sarton, Introduction to the History of Science, 5
vols., Reprint
Edition, R. E. Krieger Publishing Co., Huntington, N.Y., 1975.
3.
George Sarton, History of Science, 5 vols. Harvard
University Press,
Cambridge, 1952
4. Charles Percy Snow, The Two Cultures,
Cambridge University Press,
Canto Edition, 1993.
5. Giorgio de Santillana, The Crime of Galileo,
The University of Chicago
Press, Chicago, 8th impression, 1967.
6. Pedro Américo de Figueiredo e Melo, A
Ciência e os Sistemas– Questões
de História e Filosofia Natural,
Editora Universitária, Universidade
Federal da Paraíba, 4ª edição, João Pessoa, 2001.
7. Carlos A. L. Filgueiras, Entre a Batuta e o
Tubo de Ensaio: a Carreira
Admirável de Alexandre Borodin,
Quím. Nova, 2002, 25, 1040-1049.
8. Herbert C. Butterfield, The Origins of
Modern Science, Bell & Hyman,
Londres, 1985.
9. Lynn Thorndike, A History of Magic and
Experimental Science, 8 vols.,
Columbia University Press, N. York, 1923. |
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Carlos Alberto Filgueiras (Brasil,
Belo Horizonte).
É engenheiro químico pela Universidade Federal de Minas Gerais,
doutor em química pela Universidade de Maryland, e com pós-doutorado
pela Universidade de Cambridge. Foi presidente da Sociedade Brasileira
de Química. Foi professor de química inorgânica e de história da ciência
nas Universidades Federais de Minas Gerais e do Rio de Janeiro.
Encontra-se atualmente na primeira instituição mencionada.
e-mail: calfilgueiras@gmail.com |
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© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
Rua Direita, 131
5100-344 Britiande
PORTUGAL |
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