|
|
|
REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
|
|
Num interessante e descomprometido ensaio, publicado no México em 2006 [UNICACH,
Chiapas], o poeta Luis Arturo Guichard observou em Espanha algumas
linhas de força que vêm dando forma e conteúdo à sua poesia recente. Com
sábia ironia, chegou à conclusão de que no mar poético da pátria de
Cervantes desaguam águas de um “culteranismo temperado” e de uma
“confusa experiência”, lado a lado com “assomos de infinito”,
indecisas “vanguardas” e o recorrente “peso da tradição”.
Navegando por todas estas linhas de água, acaba por concluir que, na
actualidade, se vem esbatendo a confrontação sectária entre estas
posições estéticas: “os cultos e herméticos novíssimos parecem
aproximar-se cada vez mais da experiência quotidiana e de discursos
menos espalhafatosos e os experienciais, mais ou menos continuadores da
poesia civil e coloquial, chegam-se cada vez mais à pesquisa da
linguagem e ao poema pelo poema. Entre uns e outros, os matizes são
variados e saudáveis: não falta felizmente o humor, nem tampouco
aventuras alicerçadas na mística ou na filosofia. A luta entre as
escolas, que nalguns momentos chegou a ser bastante sectária, deu lugar
a poetas que escrevem livremente.” (p. 113, tradução nossa). Assim
se vem fazendo o caminho Hacia el equilibrio, expressão escolhida
aliás pelo autor para nomear a sua abordagem. |
DIREÇÃO |
|
Maria Estela Guedes |
|
Índice de Autores |
|
Série Anterior |
|
Nova
Série | Página Principal |
|
SÍTIOS ALIADOS |
|
TriploII - Blog do TriploV |
|
TriploV |
|
Agulha Hispânica |
|
Arditura |
|
Bule,
O |
|
Contrário do Tempo, O |
|
Domador de Sonhos |
|
Jornal de Poesia |
|
|
|
Sobre a poesia
de José María Cumbreño
apresentação e
tradução de
RUY VENTURA
|
|
Ruy Ventura |
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
José
María Cumbreño, entendendo bem o quanto é benéfico este equilíbrio para
a Arte nascida das palavras em direcção ao Verbo, vem produzindo desde o
fecho do século XX uma poesia que corporiza bem uma linha estética que
sabe fermentar todos os frutos de um passado poliédrico (por vezes
contraditório e conflitual) para deles destilar o melhor néctar. Tem
consciência de cumprir um papel determinante na corrida de estafetas que
é a literatura, servindo de correia de transmissão num movimento
incessante, não negando a recepção do testemunho, de modo a poder
entregá-lo melhorado aos vindouros, como desejava Miguel Torga. Dito
doutro modo, o autor de Estrategias y Métodos para la Composición de
Rompecabezas, sabe que não pode parar a construção da “Cerca de
Pedra”: “O meu avô pôs uma pedra / sobre a pedra / que havia
posto seu pai. // O meu pai pôs uma pedra / sobre a pedra / que havia
posto meu avô. // Limite. Fronteira. // Eu tenho uma pedra na mão”
(pp. 19 e 21). E é com essa “pedra na mão” – pedra angular na
construção de um edifício que já conta com vários títulos – que Cumbreño
se apresenta numa obra encadeada, coerente, porque “A semente que se
planta num poema germina no poema seguinte” (p. 45).
Ao
denominar Teorias da Ordem a sua antologia publicada em Portugal,
José María Cumbreño quis sintetizar a sua poética. Separando a narrativa
da poesia, ao afirmar que “Os romances [se] escrevem […] com a mão
direita” e os poemas “com a esquerda” (p. 85), aproxima quem
escreve da figura de Penélope, que “não tecia e destecia: / tecia
para destecer” (p. 107). Neste jogo constante de elevação e
fracasso, de construção e demolição, obriga-se a reconhecer que “O
destino da poesia é a linguagem matemática, cheia de limites,
equidistâncias e incógnitas por resolver” (p. 59). Tal como acontece
na pintura, o mundo representado ao longo dos versos (se algo neles se
representa) interessa pouco ou nada, uma vez que “A maneira de pintar
/ é o próprio quadro” (p. 15). O papel do leitor não se pode separar
assim da surpresa e da perplexidade; se o poema se confunde com o “quebra-cabeças”,
o seu sentido, “em condições normais / de pressão e temperatura, /
[…] traz[-nos] / não o que pouco a pouco / se vai demonstrando, / mas
aquilo que os intervalos não demonstram” (p. 19). E se um texto
parece transparente, claro, não nos esqueçamos de que a sua essência não
andará longe da de um “copo”, que nunca terá “transparência”,
mas apenas imitação da do “líquido que contém” (p. 21). Entre
partir e ficar, entre “tecer” e “destecer”, o texto
escrito por intermédio do poeta torna-se operativo, “obra”
modificadora, ao agir sobre o mundo, mesmo que indirectamente. Se “A
luz, à medida que a vidraça / a ia filtrando, / [se] convertia[…] em
palavra de Deus” (p. 109), cabe ao escrevente “Reciclar,
reutilizar, recuperar” e, sobretudo, “Escorar, restaurar,
reforçar” (p. 109). Dois triângulos verbais que – apontando para a
escrita incessante praticada por um ser que (não recusando Ulisses e o
seu movimento linear) se revê sobretudo em Penélope e no seu movimento
de eterno retorno, rumo ao júbilo final – acabam por assumir que são
essas “fórmulas matemáticas”, esses “quebra-cabeças”,
esses poemas, a “[definirem] as proporções da utopia” (p. 111).
Se “Muito
da feitura do mundo […] consiste […] em separar e reunir; por um lado,
em dividir totalidades em partes […], traçar distinções; por outro lado,
em compor totalidades […] a partir de partes […] e fazer ligações” –
como escreve Nelson Goodman em Modos de Fazer Mundos (1978) – (ou
seja, em “Reciclar, reutilizar, recuperar” quanto nos rodeia
através da palavra), José María Cumbreño tem consciência na sua poética
de que os poemas não são a vida, mas substitutos da vida, porque a “ordem”
(a estética) que pretende teorizar é “combinatória e fábula, /
inventa-se. / É um mecanismo de ficção / que, por sua vez, cria ficções”,
urdindo “redes imaginárias / que pescam vidas reais” (p. 71).
Para este escritor nascido na Extremadura espanhola, o poema (o
verdadeiro, aquele que não é apenas mero empilhamento de versos com
maior ou menor devoção epigonal) será sempre “o resultado da
multiplicação do silêncio por si mesmo” (p. 91), ou – como defende o
poeta americano neo-surrealista Andrew Joron – a viagem do grito ao
zero, ao nada, ao intangível e ao impronunciável.
A leitura
da produção de José María Cumbreño pode provocar em nós uma sensação de
estranheza. Se por vezes nos deparamos com alguns textos aparentemente
próximos da produção dalguns radicais do neo-naturalismo, logo ao seu
lado surgem outros cuja pseudonarratividade é matizada por imagens
heteróclitas, distantes do mundo observável e representável, ombreando
com poemas cujo motor parece ser a reflexão filosófica ou metaliterária,
dando por vezes origem a sentenças, aforismos e/ou “greguerías”.
Num mesmo livro podemos colher ecos remotos e olhares próximos de nós no
tempo (inclusivé com conotação política), frases coloquiais e expressões
cuja raiz se afasta da comunicação diária entre seres humanos sem
literatura. Chegamos a ter a sensação de estar na presença de antologias
de vários poetas que, por motivos desconhecidos, assinaram todos com a
mesma designação autoral.
São
assim os frutos da sua poesia feita de equilíbrios, por isso mesmo
funâmbula, que ora se aproxima ora se afasta das várias tendências
estéticas correntes entre os seus compatriotas produtores de versos. E
isso mesmo a torna tão interessante, na sua falsa incoerência, produtora
de uma diversidade que pode desorientar os leitores mais habituados à
monotonia, mas satisfaz quantos não viajam apenas pelas auto-estradas,
mas se aventuram por caminhos pouco frequentados, procurando autores
heréticos em relação aos dogmas estabelecidos pelos Romas que tudo
nivelam por baixo (como bem retratou Eça de Queirós no seu romance A
Capital).
Nascido em
1972 na cidade de Cáceres, onde ainda hoje reside, com textos espalhados
por várias revistas e poesia (em verso ou em prosa) publicada em livros
como Las ciudades de la llanura (Editora Regional de Extremadura,
2000), Árboles sin sombra (Algaida, 2003), De los espacios
cerrados (Fundación José Manuel Lara, 2006), Estrategias y
métodos para la composición de rompecabezas (El Bardo, 2008) e
Diccionario de dudas (Calambur, 2009) ou na antologia Teorias da
Ordem (Edições Sempre-em-Pé, 2009), José María Cumbreño é uma das
vozes que mais me interessam na poesia espanhola dos nossos dias. Feita
de fragmentos de seres, de espaços e de memórias, que se combinam de
forma por vezes inusitada, sem esconder o seu carácter de estilhaços e
de escombros provenientes de uma catástrofe verbal, logo existencial, a
sua poesia interpela-nos e inquieta-nos com uma ironia discreta,
matizada pela nostalgia de quem vê o mundo por um espelho retrovisor.
Porque, num mundo como o nosso, é preciso ter a coragem de “Beber de
um copo partido. / Acalmar a sede, mesmo com o risco de conhecer a
ferida” (p. 73). Porque, mais tarde ou mais cedo, os estilhaços
provocados pela catástrofe chegarão ao coração.
NOTA: Todas as
citações transcritas foram retiradas da antologia
Teorias da Ordem,
publicada em Junho de 2008 pelas Edições Sempre-em-Pé (Águas Santas),
com tradução nossa a partir do espanhol. Os poemas de José María
Cumbreño aqui publicados são traduções inéditas a partir do poemário
Diccionario de Dudas
(Calambur, 2009). |
|
|
|
POEMAS DE
JOSÉ MARÍA CUMBREÑO |
|
|
|
DICIONÁRIO DE DÚVIDAS
O transcurso e a
ordem,
a sua
continuidade,
são matéria
simbólica.
JENARO TALENS |
|
Unindo com um lápis
a linha de pontos
conseguia ver-se uma figura
(quase sempre um globo,
um palhaço ou uma flor).
De seguida, devíamos pintá-la.
O sujeito faz.
Ao objecto fazem-no fazer.
As correspondências marcam
duas distâncias.
E as duas imaginárias.
A partitura explica-se
por oposição ao silêncio.
Ordem e desordens.
Princípio e desenlaces.
As listas, os inventários
e as classificações
usam-se no fundo
para não termos tanto medo.
Enquanto se traça um círculo
conhece-se a calma.
O termo definido
não deve ser
incluído na definição,
o que significa pedir
que a água limpe sem molhar
ou que o amor dê sem tirar.
Ordem e desordens.
Singular e plural
não assinalam quantidades diferentes.
Conforme o lado
de que se lê o símbolo,
uma palavra
origina a que a segue
ou deriva da seguinte.
Muitas explicações juntas
têm demasiada aparência de mentira.
Que a forma mais perfeita
seja a do zero
talvez não signifique nada
a não ser que a minha imperfeição
lhe outorgou um significado.
O olho não vê:
produz o que observa.
Apontar as dúvidas num caderno,
colocar uma atrás da outra,
ajuda-me a dormir,
sabendo que me tranquilizo
com um engano,
porque, quando se esteve certo tempo
inventando limites
para a incerteza,
acaba por não se distinguir
a verdade da retórica.
Há também quem caminhe
com a preocupação de não pisar
a junção dos ladrilhos
ou quem não atravesse a rua
até que passe um carro vermelho.
Os pontos cardeais não existem
a não ser que o vento
se misture com o cata-vento.
As frases, supõe-se,
possuem um sentido completo.
E no entanto algumas frases
ninguém chega a entendê-las por inteiro.
O cata-vento e o vento.
O lápis e a mentira.
Pontos que compõem uma linha.
Linhas que compõem uma figura.
Um princípio. Vários desenlaces.
Quem pousa nas fotografias
não olha para nós:
olha algo que nós não vemos. |
|
NOCTURNOS |
|
I
Não tenho a certeza de que as estradas, à noite,
conduzam aos mesmos lugares a que levam de dia.
II
Negro sobre negro: a redundância de apagar a luz e,
depois, fechar os olhos.
III
Ensimesmados, olhando o fogo.
IV
Negro sobre negro: atrever-se a dizer (de novo)
alguns nomes em voz alta.
V
Dependendo do tempo que se mantenha na boca, a água
ou mata a sede ou afoga.
VI
Qualquer modo de combinar o remorso e a culpa.
VII
Se a escuridão se identifica com o mal, por que
haverá flores que apenas abrem quando anoitece? |
|
PARÁBOLAS |
|
1. O semeador decidiu atirar todas as sementes à
água.
2. O pastor descobriu que dava muito maior
rendimento guardar um rebanho de lobos.
3. O compassivo samaritano deu golpe de
misericórdia ao moribundo seguinte.
4. O fariseu vendeu a sua mulher ao publicano.
5. O filho pródigo esqueceu para sempre o caminho
que o reconduziria a casa. |
|
LER E ESCREVER |
|
O verdadeiro escritor prefere ler a escrever. |
|
CORRESPONDÊNCIAS |
|
Qualquer correspondência,
esquecida a sua origem,
acaba por criar um símbolo.
E os símbolos não existem: representam,
simulam uma ordem imaginária.
Fora do tabuleiro,
o peão nega-se a cumprir
as ordens do rei. |
|
AUTOMÓVEL |
|
Veículo conduzido por pessoas com má memória.
Cinco mudanças para avançar e uma apenas para
retroceder. |
|
METAMORFOSE |
|
Os ditadores convertem-se em ex-ditadores.
Os ex-ditadores em senadores vitalícios.
Os senadores vitalícios em velhos inofensivos.
E os velhos inofensivos, finalmente, acabam por
perder a memória. |
|
MÚSICA PARA CASTRATI |
|
Antes castravam-se as pessoas para que a sua voz
soasse melhor; agora, para que não soe.
ÁNGEL CRESPO |
|
Se escrevesse que
leio
na direcção
contrária àquela em que escrevo,
ou não seria certo
que leio
ou não seria certo
que escrevo
ou ambas as coisas
estariam certas
ou nenhuma.
Em qualquer caso,
a verosimilhança do
argumento
tem muito mais a ver
com as contradições
do que com as
evidências.
Do mesmo modo que o
caminho ascendente
deve mais às curvas
do que às rectas.
Os livros haveria
que começá-los
pelo final.
Entre o zero e o
nove
ocorrem todas as
variantes
do limite e do
infinito.
Contar e perder a
conta.
Melhor ainda,
contar até perder a
conta.
Porque a escala não
ordena notas,
mas apenas cifras e
silêncios.
Um número dividido
por si mesmo.
A melancolia
é uma incógnita sem
solução.
E é precisamente a
melancolia
a matéria dúctil e
estranha
de que se faz a
música.
Houve soldados que,
enquanto agonizavam,
começaram logo
a sussurrar,
delirando,
a letra das canções
de embalar
que as suas mães
lhes cantavam.
De noite as portas
fecham-se por
dentro.
Aos indecisos
repetia-se-lhe
(o poder consegue-se
com figuras de
retórica)
uma fábula de
renúncia e pureza:
a poda sacrifica alguns ramos
para que o resto da árvore
conheça a altura.
A diferença entre
nós e eles
enraíza-se em nós
termos
uma faca.
E eles não.
O flautista continua
a tocar
para receber algumas
moedas.
Os actores, é certo,
mentem de memória.
Mas o público, que
pagou
o bilhete, sabe que
são actores.
No entanto, ainda
que a função
não nos agrade e nem
sequer
tenhamos ido ao
teatro,
nunca deixaremos
de pagar ao
flautista.
De novo outra
fábula.
Os instrumentos de
sopro
deformam a boca.
O mal menor não
existe.
Posso dizer que leio
na direcção
contrária àquela em que escrevo
ou posso de verdade
ler ao contrário
o que já está
escrito
e ter assim a
audácia
de dar a volta ao
argumento
desta narrativa de
vencedores
que (enquanto o
hino soa
reforçando a identidade do grupo)
castram os seus
prisioneiros. |
|
|
|
RUY VENTURA
(Portugal, Portalegre, 1973)
Professor na península da Arrábida. Publicou, em poesia,
Arquitectura do Silêncio (Lisboa, 2000; Prémio Revelação de Poesia, da
Associação Portuguesa de Escritores), sete capítulos do mundo (Lisboa,
2003), Assim se deixa uma casa (Coimbra, 2003) e Um pouco mais sobre a
cidade (Villanueva de la Serena, 2004) e O lugar, a imagem (Badajoz,
2006 – no prelo). Organizou as antologias Poetas e Escritores da Serra
de São Mamede (Vila Nova de Famalicão, 2002), Contos e Lendas da Serra
de São Mamede (Almada, 2005) e Em memória de J. O. Travanca-Rêgo e
Orlando Neves (na revista Callipole, nº 13, Vila Viçosa, 2005) e o livro
José do Carmo Francisco, uma aproximação (Almada, 2005). Traduziu a
antologia 20 Poetas Espanhóis do Século XX (Coimbra, 2003) e os livros
de poemas Dias, Fumo, de Antonio Sáez Delgado (Coimbra, 2003), Jola, de
Ángel Campos Pámpano (Badajoz, 2003) e A Árvore-das-Borboletas, de Anton
van Wilderode (Badajoz, 2003). É colaborador de várias revistas
nacionais e estrangeiras, nomeadamente espanholas, brasileiras e
americanas. Como ensaísta, tem escrito sobre Poesia Contemporânea,
Literatura Tradicional e/ou Oral e Toponímia. |
|
|
|
© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
Rua Direita, 131
5100-344 Britiande
PORTUGAL |
|
|
|
|
|
|
|
|
|