REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2010 | Número 08-09

 

       Num interessante e descomprometido ensaio, publicado no México em 2006 [UNICACH, Chiapas], o poeta Luis Arturo Guichard observou em Espanha algumas linhas de força que vêm dando forma e conteúdo à sua poesia recente. Com sábia ironia, chegou à conclusão de que no mar poético da pátria de Cervantes desaguam águas de um “culteranismo temperado” e de uma “confusa experiência”, lado a lado com “assomos de infinito”, indecisas “vanguardas” e o recorrente “peso da tradição”. Navegando por todas estas linhas de água, acaba por concluir que, na actualidade, se vem esbatendo a confrontação sectária entre estas posições estéticas: “os cultos e herméticos novíssimos parecem aproximar-se cada vez mais da experiência quotidiana e de discursos menos espalhafatosos e os experienciais, mais ou menos continuadores da poesia civil e coloquial, chegam-se cada vez mais à pesquisa da linguagem e ao poema pelo poema. Entre uns e outros, os matizes são variados e saudáveis: não falta felizmente o humor, nem tampouco aventuras alicerçadas na mística ou na filosofia. A luta entre as escolas, que nalguns momentos chegou a ser bastante sectária, deu lugar a poetas que escrevem livremente.” (p. 113, tradução nossa). Assim se vem fazendo o caminho Hacia el equilibrio, expressão escolhida aliás pelo autor para nomear a sua abordagem.

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Maria Estela Guedes  
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Sobre a poesia

de José María Cumbreño 

apresentação e tradução de

RUY VENTURA

 

                                                                           Ruy Ventura

 
 
 
   
   
   
   
   
   
   
   
   

José María Cumbreño, entendendo bem o quanto é benéfico este equilíbrio para a Arte nascida das palavras em direcção ao Verbo, vem produzindo desde o fecho do século XX uma poesia que corporiza bem uma linha estética que sabe fermentar todos os frutos de um passado poliédrico (por vezes contraditório e conflitual) para deles destilar o melhor néctar. Tem consciência de cumprir um papel determinante na corrida de estafetas que é a literatura, servindo de correia de transmissão num movimento incessante, não negando a recepção do testemunho, de modo a poder entregá-lo melhorado aos vindouros, como desejava Miguel Torga. Dito doutro modo, o autor de Estrategias y Métodos para la Composición de Rompecabezas, sabe que não pode parar a construção da “Cerca de Pedra”: “O meu avô pôs uma pedra / sobre a pedra / que havia posto seu pai. // O meu pai pôs uma pedra / sobre a pedra / que havia posto meu avô. // Limite. Fronteira. // Eu tenho uma pedra na mão” (pp. 19 e 21). E é com essa “pedra na mão” – pedra angular na construção de um edifício que já conta com vários títulos – que Cumbreño se apresenta numa obra encadeada, coerente, porque “A semente que se planta num poema germina no poema seguinte” (p. 45).

Ao denominar Teorias da Ordem a sua antologia publicada em Portugal, José María Cumbreño quis sintetizar a sua poética. Separando a narrativa da poesia, ao afirmar que “Os romances [se] escrevem […] com a mão direita” e os poemas “com a esquerda” (p. 85), aproxima quem escreve da figura de Penélope, que “não tecia e destecia: / tecia para destecer” (p. 107). Neste jogo constante de elevação e fracasso, de construção e demolição, obriga-se a reconhecer que “O destino da poesia é a linguagem matemática, cheia de limites, equidistâncias e incógnitas por resolver” (p. 59). Tal como acontece na pintura, o mundo representado ao longo dos versos (se algo neles se representa) interessa pouco ou nada, uma vez que “A maneira de pintar / é o próprio quadro” (p. 15). O papel do leitor não se pode separar assim da surpresa e da perplexidade; se o poema se confunde com o “quebra-cabeças”, o seu sentido, “em condições normais / de pressão e temperatura, / […] traz[-nos] / não o que pouco a pouco / se vai demonstrando, / mas aquilo que os intervalos não demonstram” (p. 19). E se um texto parece transparente, claro, não nos esqueçamos de que a sua essência não andará longe da de um “copo”, que nunca terá “transparência”, mas apenas imitação da do “líquido que contém” (p. 21). Entre partir e ficar, entre “tecer” e “destecer”, o texto escrito por intermédio do poeta torna-se operativo, “obra” modificadora, ao agir sobre o mundo, mesmo que indirectamente. Se “A luz, à medida que a vidraça / a ia filtrando, / [se] convertia[…] em palavra de Deus” (p. 109), cabe ao escrevente “Reciclar, reutilizar, recuperar” e, sobretudo, “Escorar, restaurar, reforçar” (p. 109). Dois triângulos verbais que – apontando para a escrita incessante praticada por um ser que (não recusando Ulisses e o seu movimento linear) se revê sobretudo em Penélope e no seu movimento de eterno retorno, rumo ao júbilo final – acabam por assumir que são essas “fórmulas matemáticas”, esses “quebra-cabeças”, esses poemas, a “[definirem] as proporções da utopia” (p. 111).

Se “Muito da feitura do mundo […] consiste […] em separar e reunir;  por um lado, em dividir totalidades em partes […], traçar distinções; por outro lado, em compor totalidades […] a partir de partes […] e fazer ligações” – como escreve Nelson Goodman em Modos de Fazer Mundos (1978) – (ou seja, em “Reciclar, reutilizar, recuperar” quanto nos rodeia através da palavra), José María Cumbreño tem consciência na sua poética de que os poemas não são a vida, mas substitutos da vida, porque a “ordem” (a estética) que pretende teorizar é “combinatória e fábula, / inventa-se. / É um mecanismo de ficção / que, por sua vez, cria ficções”, urdindo “redes imaginárias / que pescam vidas reais” (p. 71). Para este escritor nascido na Extremadura espanhola, o poema (o verdadeiro, aquele que não é apenas mero empilhamento de versos com maior ou menor devoção epigonal) será sempre “o resultado da multiplicação do silêncio por si mesmo” (p. 91), ou – como defende o poeta americano neo-surrealista Andrew Joron – a viagem do grito ao zero, ao nada, ao intangível e ao impronunciável.

         A leitura da produção de José María Cumbreño pode provocar em nós uma sensação de estranheza. Se por vezes nos deparamos com alguns textos aparentemente próximos da produção dalguns radicais do neo-naturalismo, logo ao seu lado surgem outros cuja pseudonarratividade é matizada por imagens heteróclitas, distantes do mundo observável e representável, ombreando com poemas cujo motor parece ser a reflexão filosófica ou metaliterária, dando por vezes origem a sentenças, aforismos e/ou “greguerías”. Num mesmo livro podemos colher ecos remotos e olhares próximos de nós no tempo (inclusivé com conotação política), frases coloquiais e expressões cuja raiz se afasta da comunicação diária entre seres humanos sem literatura. Chegamos a ter a sensação de estar na presença de antologias de vários poetas que, por motivos desconhecidos, assinaram todos com a mesma designação autoral.

São assim os frutos da sua poesia feita de equilíbrios, por isso mesmo funâmbula, que ora se aproxima ora se afasta das várias tendências estéticas correntes entre os seus compatriotas produtores de versos. E isso mesmo a torna tão interessante, na sua falsa incoerência, produtora de uma diversidade que pode desorientar os leitores mais habituados à monotonia, mas satisfaz quantos não viajam apenas pelas auto-estradas, mas se aventuram por caminhos pouco frequentados, procurando autores heréticos em relação aos dogmas estabelecidos pelos Romas que tudo nivelam por baixo (como bem retratou Eça de Queirós no seu romance A Capital).

         Nascido em 1972 na cidade de Cáceres, onde ainda hoje reside, com textos espalhados por várias revistas e poesia (em verso ou em prosa) publicada em livros como Las ciudades de la llanura (Editora Regional de Extremadura, 2000), Árboles sin sombra (Algaida, 2003), De los espacios cerrados (Fundación José Manuel Lara, 2006), Estrategias y métodos para la composición de rompecabezas (El Bardo, 2008) e Diccionario de dudas (Calambur, 2009) ou na antologia Teorias da Ordem (Edições Sempre-em-Pé, 2009), José María Cumbreño é uma das vozes que mais me interessam na poesia espanhola dos nossos dias. Feita de fragmentos de seres, de espaços e de memórias, que se combinam de forma por vezes inusitada, sem esconder o seu carácter de estilhaços e de escombros provenientes de uma catástrofe verbal, logo existencial, a sua poesia interpela-nos e inquieta-nos com uma ironia discreta, matizada pela nostalgia de quem vê o mundo por um espelho retrovisor. Porque, num mundo como o nosso, é preciso ter a coragem de “Beber de um copo partido. / Acalmar a sede, mesmo com o risco de conhecer a ferida” (p. 73). Porque, mais tarde ou mais cedo, os estilhaços provocados pela catástrofe chegarão ao coração.  

NOTA: Todas as citações transcritas foram retiradas da antologia Teorias da Ordem, publicada em Junho de 2008 pelas Edições Sempre-em-Pé (Águas Santas), com tradução nossa a partir do espanhol. Os poemas de José María Cumbreño aqui publicados são traduções inéditas a partir do poemário Diccionario de Dudas (Calambur, 2009).

 

 

POEMAS DE

 

JOSÉ MARÍA CUMBREÑO

 

DICIONÁRIO DE DÚVIDAS

O transcurso e a ordem,
a sua continuidade,
são matéria simbólica.

JENARO TALENS

 

Unindo com um lápis

a linha de pontos

conseguia ver-se uma figura

(quase sempre um globo,

um palhaço ou uma flor).

De seguida, devíamos pintá-la.

 

O sujeito faz.

Ao objecto fazem-no fazer.

 

As correspondências marcam

duas distâncias.

E as duas imaginárias.

A partitura explica-se

por oposição ao silêncio.

 

Ordem e desordens.

Princípio e desenlaces.

 

As listas, os inventários

e as classificações

usam-se no fundo

para não termos tanto medo.

 

Enquanto se traça um círculo

conhece-se a calma.

 

O termo definido

não deve ser incluído na definição,

o que significa pedir

que a água limpe sem molhar

ou que o amor dê sem tirar.

 

Ordem e desordens.

Singular e plural

não assinalam quantidades diferentes.

 

Conforme o lado

de que se lê o símbolo,

uma palavra

origina a que a segue

ou deriva da seguinte.

 

Muitas explicações juntas

têm demasiada aparência de mentira.

 

Que a forma mais perfeita

seja a do zero

talvez não signifique nada

a não ser que a minha imperfeição

lhe outorgou um significado.

 

O olho não vê:

produz o que observa.

 

Apontar as dúvidas num caderno,

colocar uma atrás da outra,

ajuda-me a dormir,

sabendo que me tranquilizo

com um engano,

porque, quando se esteve certo tempo

inventando limites

para a incerteza,

acaba por não se distinguir

a verdade da retórica.

 

Há também quem caminhe

com a preocupação de não pisar

a junção dos ladrilhos

ou quem não atravesse a rua

até que passe um carro vermelho.

 

Os pontos cardeais não existem

a não ser que o vento

se misture com o cata-vento.

 

As frases, supõe-se,

possuem um sentido completo.

E no entanto algumas frases

ninguém chega a entendê-las por inteiro.

 

O cata-vento e o vento.

O lápis e a mentira.

 

Pontos que compõem uma linha.

Linhas que compõem uma figura.

 

Um princípio. Vários desenlaces.

 

Quem pousa nas fotografias

não olha para nós:

olha algo que nós não vemos.

  NOCTURNOS
 

I

Não tenho a certeza de que as estradas, à noite, conduzam aos mesmos lugares a que levam de dia.

 

II

Negro sobre negro: a redundância de apagar a luz e, depois, fechar os olhos.

 

III

Ensimesmados, olhando o fogo.

 

IV

Negro sobre negro: atrever-se a dizer (de novo) alguns nomes em voz alta.

 

V

Dependendo do tempo que se mantenha na boca, a água ou mata a sede ou afoga.

 

VI

Qualquer modo de combinar o remorso e a culpa.

 

VII

Se a escuridão se identifica com o mal, por que haverá flores que apenas abrem quando anoitece?

  PARÁBOLAS
 

1. O semeador decidiu atirar todas as sementes à água.

2. O pastor descobriu que dava muito maior rendimento guardar um rebanho de lobos.

3. O compassivo samaritano deu golpe de misericórdia ao moribundo seguinte.

4. O fariseu vendeu a sua mulher ao publicano.

5. O filho pródigo esqueceu para sempre o caminho que o reconduziria a casa.

  LER E ESCREVER
 

O verdadeiro escritor prefere ler a escrever.

  CORRESPONDÊNCIAS
 

Qualquer correspondência,

esquecida a sua origem,

acaba por criar um símbolo.

 

E os símbolos não existem: representam,

simulam uma ordem imaginária.

 

Fora do tabuleiro,

o peão nega-se a cumprir

as ordens do rei.

  AUTOMÓVEL
 

Veículo conduzido por pessoas com má memória.

Cinco mudanças para avançar e uma apenas para retroceder.

  METAMORFOSE
 

Os ditadores convertem-se em ex-ditadores.

Os ex-ditadores em senadores vitalícios.

Os senadores vitalícios em velhos inofensivos.

E os velhos inofensivos, finalmente, acabam por perder a memória.

  MÚSICA PARA CASTRATI
 

Antes castravam-se as pessoas para que a sua voz
soasse melhor; agora, para que não soe.

ÁNGEL CRESPO

 

Se escrevesse que leio

na direcção contrária àquela em que escrevo,

ou não seria certo que leio

ou não seria certo que escrevo

ou ambas as coisas estariam certas

ou nenhuma.

 

Em qualquer caso,

a verosimilhança do argumento

tem muito mais a ver

com as contradições

do que com as evidências.

 

Do mesmo modo que o caminho ascendente

deve mais às curvas

do que às rectas.

 

Os livros haveria que começá-los

pelo final.

 

Entre o zero e o nove

ocorrem todas as variantes

do limite e do infinito.

 

Contar e perder a conta.

Melhor ainda,

contar até perder a conta.

 

Porque a escala não ordena notas,

mas apenas cifras e silêncios.

 

Um número dividido por si mesmo.

 

A melancolia

é uma incógnita sem solução.

E é precisamente a melancolia

a matéria dúctil e estranha

de que se faz a música.

 

Houve soldados que,

enquanto agonizavam,

começaram logo

a sussurrar, delirando,

a letra das canções de embalar

que as suas mães lhes cantavam.

 

De noite as portas

fecham-se por dentro.

 

Aos indecisos repetia-se-lhe

(o poder consegue-se

com figuras de retórica)

uma fábula de renúncia e pureza:

a poda sacrifica alguns ramos

para que o resto da árvore

conheça a altura.

 

A diferença entre nós e eles

enraíza-se em nós termos

uma faca.

E eles não.

 

O flautista continua a tocar

para receber algumas moedas.

 

Os actores, é certo, mentem de memória.

Mas o público, que pagou

o bilhete, sabe que são actores.

 

No entanto, ainda que a função

não nos agrade e nem sequer

tenhamos ido ao teatro,

nunca deixaremos

de pagar ao flautista.

 

De novo outra fábula.

 

Os instrumentos de sopro

deformam a boca.

 

O mal menor não existe.

 

Posso dizer que leio

na direcção contrária àquela em que escrevo

ou posso de verdade ler ao contrário

o que já está escrito

e ter assim a audácia

de dar a volta ao argumento

desta narrativa de vencedores

que (enquanto o hino soa

reforçando a identidade do grupo)

castram os seus prisioneiros.

 

 

RUY VENTURA (Portugal, Portalegre, 1973)
Professor na península da Arrábida. Publicou, em poesia, Arquitectura do Silêncio (Lisboa, 2000; Prémio Revelação de Poesia, da Associação Portuguesa de Escritores), sete capítulos do mundo (Lisboa, 2003), Assim se deixa uma casa (Coimbra, 2003) e Um pouco mais sobre a cidade (Villanueva de la Serena, 2004) e O lugar, a imagem (Badajoz, 2006 – no prelo). Organizou as antologias Poetas e Escritores da Serra de São Mamede (Vila Nova de Famalicão, 2002), Contos e Lendas da Serra de São Mamede (Almada, 2005) e Em memória de J. O. Travanca-Rêgo e Orlando Neves (na revista Callipole, nº 13, Vila Viçosa, 2005) e o livro José do Carmo Francisco, uma aproximação (Almada, 2005). Traduziu a antologia 20 Poetas Espanhóis do Século XX (Coimbra, 2003) e os livros de poemas Dias, Fumo, de Antonio Sáez Delgado (Coimbra, 2003), Jola, de Ángel Campos Pámpano (Badajoz, 2003) e A Árvore-das-Borboletas, de Anton van Wilderode (Badajoz, 2003). É colaborador de várias revistas nacionais e estrangeiras, nomeadamente espanholas, brasileiras e americanas. Como ensaísta, tem escrito sobre Poesia Contemporânea, Literatura Tradicional e/ou Oral e Toponímia.

 

 

© Maria Estela Guedes
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