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Numa primeira concessão,
decidira olhar com olhos de ver para tanta superfície de palavras, na
mira de, pesados os fins e convocados os meios, lograr obter para elas
uma cédula de eternidade. O verbo reanimado daria, pensara então, outro
fôlego aos fantasmas, retirando ênfase depressiva ao que admitia vir a
tornar-se uma espécie de julgamento post-morten. Prometera a si mesmo
entregar-se a essa indagação exaustiva com espírito altruísta; tarda,
porém, em tomar uma decisão. Um mal-estar difuso previne-o contra o
escarafunchar, à toa, na informação jacente. É uso dizer-se que os
filhos são os futuros juízes dos pais. Se, porém, os pais resolveram
passar a escrito o juízo que um dia fizeram dos filhos e a sua voz
extemporânea vier agitar as águas, pronta a litigar e a tirar o descanso
a quem já o dera por adquirido, então a coisa é capaz de ficar feia.
Concebe a devassa como obra
de pesquisador de ouro com dificuldade em encontrar a pepita preciosa.
Assusta-o o aparecimento de alçapões ao virar a esquina de um parágrafo,
de uma página, de um feixe de memórias implacáveis. Interessa-lhe,
porém, a possibilidade, ainda que remota, de “tropeçar” na pepita de
ouro que o ponha de boas relações com o seu próprio passado. O homem
duvida que seja uma boa ideia levar por diante o projecto desenhado na
mente, provisório, envolto numa rede de incertezas e possíveis agravos.
A empresa é de monta, o risco enorme. Porque assim também, ao invés,
corre o perigo de ser agente de distúrbio do repouso parental, caso não
resista a vir ao de cima a falta de humildade do filho petulante
confrontado com certeiros comentários sibilinos a seu respeito.
Decide-se, finalmente. Sim,
progredirá passo a passo. Será cauteloso. Cuidará do futuro dos textos
como se dos seus se tratasse. Sobretudo ver-se-á através da forma como
era visto, saberá de fonte limpa se constituiu uma fraude menor ou um
perfeito desastre segundo os apertados padrões de ética bebidos na lei
da boa acção diária e da vida ao ar livre. Passo a passo. Vai demorar, o
trabalho. E as demoras, a esta distância do alvo, podem ser fatais.
Alguém ficará para confirmar, se for preciso, que pelo menos tentou.
Os fantasmas, com o homem
quase sendo um deles, agradecerão à mesma.
Sim, tentará, um destes
dias.
O homem, a certa altura,
ficou zappeur. Viajar rapidamente pelo mundo a uma ligeira pressão no
botão do telecomando fascinou-o como se sobre ele tivesse agido um
tremendo feitiço. Saltar de país para país, de zona mental para zona
mental, de desertos ou florestas para empórios urbanos, em fracções de
segundo, de olhos colados no televisor, incansáveis testemunhas do jogo
virtual, ó supremo deleite tecnológico. O fascínio transformou-se num
vício. O vício matou a magia. Hoje é como ladainha para adormecer ou
maneira expedita de driblar insónias. Houve, no passado, outros
prodígios: o transístor (sim, o transístor, alguém das actuais gerações
supõe a maravilha que era poder assistir-se a um jogo de futebol de
ouvido atento ao que se passava nos outros campos?), a TV a cores, o
vídeo, mais recentemente o cinema em casa. Bons tempos aqueles em que se
esperava pela época de reprises para se ver o filme que escapara na
estreia ou rever a fita de que se gostara até ao limite do encantamento.
Em data recente comprou um DVD muito especial: Ali-Baba e os Quarenta
Ladrões. Protagonistas: Jonh Hall, Maria Montez, Turhan Bey. Especial,
porquê? Por se tratar, de acordo com o programa do Victória Cine, de 24
de Março de 1945, de “o mais deslumbrante espectáculo de todos os
tempos, em Tecnicolor (sic), empolgante pelo impressionante realismo e
rico pela faustosa imponência dos cenários do misterioso Oriente” com o
qual foi inaugurado o cinema, em Carcavelos. O homem, então um miúdo de
oito anos, lá assistiu ao filme que continha só “aventura, amor,
deslumbramento, audácia e mistério.” Uma tal soma de ingredientes valia
todos os sacrifícios e a família bem os fez para participar na festa do
cinema novo.
O homem, de regresso a
Carcavelos (a terra da infância e da adolescência), numa roda de amigos,
mencionou o facto de a prova documental da inauguração do Victória Cine
ter sido encontrada entre os papéis do abnegado redactor da sua primeira
vida. Mas o grupo estava mais empenhado em despertar no agora visitante
ocasional do lugar que o viu crescer a memória do zappeur do que em
celebrar o que se passara no longínquo ano de 1945: “Lembras-te de umas
dançarinas de strip-tease que passavam antes da meia-noite no Canal
Dezoito, com uns varões entre as pernas, as Cat’s?” “Perfeitamente”,
respondeu o interpelado. “Trabalham aqui, na cave do edifício do Café S.
Jorge.” “Não posso crer. Aqui, em pleno centro histórico?”, “Aqui
mesmo.” “É boa.” “É mas é um inferno. Às quatro da manhã, quando elas
supostamente vão para casa, isto é um pandemónio de carros, de
telemóveis a retinirem, de gritos, até já tiros houve. Os residentes só
conseguem dormir a poder de doses maciças de comprimidos.” “E as
autoridades?” “Não fazem nada. Já fomos à Câmara, à Polícia, nada. O
estabelecimento tem as licenças em ordem, alega-se.”
Naquele mesmo local,
recorda-se o homem miúdo de ter havido um pandemónio de pancadaria por
causa do encerramento do chafariz, também nos anos quarenta. Esta
história está contada, dispensa-se de voltar a ela.
Agora são as Cat’s quem
perturba a hegemonia mítica da praça, a tranquilidade das esposas e os
sonos de novos e velhos, uns por uma razão, outros por outra. |
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úlio Conrado (Olhão, 26.11.1936,
Portugal)
Escritor, crítico literário. Durante vários anos alternou a crítica
literária com a ficção (incursões esporádicas na poesia e no teatro),
centrando-se actualmente no romance a sua principal actividade. Fez
crítica no Diário Popular, Vida Mundial, Colóquio Letras e Jornal de
Letras. Colaborador de Latitudes, Cahiers Lusophones (Paris) e Revista
Página da Educação (Porto). Coordenou a revista Boca do Inferno, de
Cascais. Integrou os corpos sociais de Associação Portuguesa de
Escritores, Pen Clube Português, Centro Português da Associação
Internacional dos Críticos Literários e Associação Portuguesa dos
Críticos Literários. Participou nos júris dos principais prémios
literários portugueses. Textos seus estão traduzidos em francês, alemão,
inglês, húngaro e grego. Obras principais: Romance: Barbershop (2010),
Estação Ardente (Prémio Vergílio Ferreira / Gouveia (2006), Desaparecido
no Salon du Livre (2001), De Mãos no Fogo (2001), As Pessoas de minha
casa (1985), Era a Revolução (1977) e O Deserto Habitado (1974); Poesia:
Desde o Mar (2005); Teatro: O Corno de Oiro (2009).
Ver currículo alargado no site do Pen Clube Português |