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REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
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Escolheu o ônix, porque ela seria uma criatura do mar, algo
como uma ondina ou nereida, cuja pele delicada guardaria do mar o verde,
além de que o ônix daria o tom delicado, a nuance da pele.
Não o verde dos mortos e zumbis, não o verde dos demônios, mas
aquele tom de verde próprio do ônix, daquele ônix que fora tão caro a
Camille Claudel.
Há dias a imagem dançava em sua mente, entre seus olhos –
quando dormia, quando acordava. Mas a imagem era kinema – essa femme
des femmes aparecia sempre em movimento, algumas vezes como elemento
da paisagem, outras como elemental de puro movimento de onda, os longos
cabelos loiros dançando nas águas, os seios balançando ao sabor das
ondas, a voz como o som de cascatas se espalhando no ar. |
DIREÇÃO |
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Maria Estela Guedes |
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GLEDSON SOUSA
O espírito da leveza
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Gledson Sousa |
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O problema seria como capturar o espírito do movimento na pura
imobilidade da pedra. Para ele não havia outro caminho a não ser o das
pedras; era a única arte que ele dominava, a única em que ele se
eximia. Dobras e contorções no mármore, no diorito, no ônix. Pulsações
nos gestos imobilizados, intensidade nos olhares petrificados.
Às suas esculturas se dizia possuírem o poder de, ao contrário
da Medusa, vivificarem a quem as contemplasse, como se a vida pulsasse
ali sob o imediato véu da aparência, como se houvesse uma interioridade
escultórica, quando o que havia era a fusão perfeita entre o momento, o
gesto do artista e a obra que nascia. Mas a fama se espalhara,
principalmente depois que uma mulher tivera um filho que nascera quase
idêntico a uma estátua que ela comprara dele; de boca em boca, a notícia
se espalhara e todos perguntavam: o que Urmensch é, mago ou escultor ? E
alguns respondiam: os dois.
Ele não dava ouvido aos boatos, mas também não os negava. O que
o preocupava agora era dar vazão aquela criatura que queria nascer,
brotar de seus braços, surgir de seus músculos e martelos e instrumentos
de talhe que dariam à matéria bruta da pedra a forma desejada. Há mais
de um mês que ele se trancara e esquecera do mundo exterior: nada de
visitas, nada de correspondência, nenhuma ligação com o mundo. Havia
comida suficiente para mais alguns dias – vinho abundante, queijos, pães
e azeitona – suficientes principalmente pelo pouco que ele comia.
A arte é uma coisa obsessiva; nós que somos artistas o sabemos.
Somos tomados, às vezes, por uma impressão persistente ou por um vazio
que grita, que clama por redenção, aí mobilizamos todos os nossos
esforços para obtermos uma resposta, para acharmos uma saída; e nada
mais importa – nem pessoas, nem sentimentos, nem o mundo – mobilizamos
todo o nosso ser para encontrar a resposta, como faço agora narrando
essa história, como o fez o próprio Urmensch, atordoado por delírios da
suave dama d'água.
Uma fúria o corroía por dentro, como se fosse possível que ele
mesmo se convertesse em ondina e pedra. Abandonou o ônix pelo mármore
verde – mais apto às suas investidas furiosas, à velocidade de quem
queria a todo custo plasmar o próprio pensamento o mais rápido possível.
Começou pelo mais inesperado, começou pelas mãos, aquelas mãos
de dedos longos de criança, segurando displicentes, na mão direita uma
concha de vieira, na esquerda uma alga que trazia algo como uma flor do
mar. O gesto das mãos, postadas ao longo do corpo, era da pura
displicência da infância; ela carregava os objetos como se fossem
pequenos brinquedos que ela trouxesse de presente, como se ela os fosse
ofertar e as mãos esboçavam – somente esboçavam – o gesto possível de
levantarem-se e ofertarem os pequenos presentes a quem estivesse na sua
frente. Essas mãos eram o mais difícil, não porque exigisse uma técnica
por demais aprimorada, mas porque parecia-lhe impossível conseguir
reproduzir a naturalidade daquelas mãos infantis. Um dia sonhara
acordado e vira a si mesmo como um gigante que sorrindo perseguia a
pequena ninfa; segurava-a pela cintura e seus dedos eram enormes para o
corpo esguio. Ela escapava e corria pelas falésias, sorrindo, os longos
cabelos soprados pelos ventos, confundindo-se com as dunas, e ele só
perguntava:
- Qual seu nome ? - e ela nada dizia, só corria em direção ao
mar e se jogava da falésia num salto de atleta e num instante
desaparecia entre as águas, enquanto ele ficava ali entre a areia
vermelha e o vento leste esperando ouvir o nome dela na boca do mar.
A pergunta era: como trazê-la do sonho para a pedra ? Não se
preocupava com as discussões formais, sabia que a escultura figurativa
praticamente desaparecera, mas ela era a única maneira de se aproximar
do seu modelo de sonho. Não seria uma arte realista, porque na realidade
ele estaria materializando um sonho. Tampouco ele procurava uma arte
ideal, uma perfeição a todo custo: ele a queria como ela era – com suas
mãos de criança, com suas coxas torneadas, mas também com seus pés
espalmados de dedos membranosos como das aves marinhas e mais aquele
sorriso indefinido entre a sedução e a traquinagem.
Não sabia que nome lhe dar, porque ela não dissera:
- Você vai se chamar “o espírito da leveza” ou “a juventude”.
E enquanto falava, teve a nítida impressão de que aquelas mãos
que ele acabara de terminar se moviam numa suave afirmação. |
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II |
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O vinho acabara; no pão que restara, os fungos se reproduziam
numa velocidade espantosa; diria-se que surgiriam cogumelos.
Então ele saiu. Há tanto tempo não via nem o sol nem o mar que
se assustou. O sol parecia muito maior, como se houvesse crescido,
inchado, aumentado de repente. Mas ninguém percebia, só ele. As pessoas
só percebiam que sua barba estava enorme, que seus olhos estavam fundos,
que ele parecia vir de outro mundo, um mundo muito distante. E o mar...
o mar parecia uma garganta aberta pronta para devorá-lo. A linha da
praia diminuíra, o mar prometia avançar sobre as falésias como se
reivindicasse seu direito de azul sobre o planeta. E ele achou tudo
muito belo: as crianças que catavam conchas pela praia, o cheiro incerto
do mar, o grito das mulheres anunciando peixes e outras comidas, os
pescadores contando histórias dos povos do mar. Almoçou num bar de
pescadores e passou a tarde a ouvir e a contar histórias, como se fosse
um velho do mar. E enquanto ele contava histórias que nem ele conhecia,
alguns pescadores falavam entredentes:
-
Seu Ursch vai morrer.
Carregado de vinho e queijo, ele entregou doces para as
crianças e comprou peixe salgado das mulheres. Parecia feliz. Parecia
que habitava o espírito da leveza.
Voltou para casa. Ela lhe esperava. Estava quase pronta; o
pequeno corpo esguio, as coxas-colunas, os cabelos longos, as mãos com
presentes, o sorriso leve e traquinas na boca, os pés membranosos. O
mármore verde brilhava como se fosse o próprio mar.
Ele entrou e sentou. Abriu a garrafa de vinho, serviu um pouco
para ele mesmo e ofereceu outro tanto para ela. Olhou-a sem pressa, a
ela, que tanto tomara de seu tempo; ela, que crescera na enormidade do
mármore; ela, que só esperava os olhos para sentir-se completa, para
ficar una, para existir.
Ele retardava a dura missão. Terminar, acabar a obra, seria
como instaurar um hiato em sua vida. Pois o gesto criador equivalia a
todas as dimensões da vida e mesmo que ela ganhasse vida, o gesto
pareceria incompleto quando terminado.
Por isso ele retardava. Se guardava e guardava para si essa
última solidão, esse que em si era um momento inominável. Lembrou-se de
Cézanne, pelas palavras de Rilke, quando esse conta da solidão de
Cézanne, que era perseguido pelas crianças como se fosse um louco; essa
solidão do criador, que só é diminuída quando da criação. Por isso
tantas vistas do Monte Victória, por isso as 36 vistas do Monte Fuji,
por isso o espírito da leveza.
Ela estava quase pronta. Parecia que já poderia sair correndo e
saltar pelas falésias e urinar nos montes com seu sexo violeta, enquanto
ele, gigante apaixonado, correria em vão no seu encalço, tentaria
atraí-la com o som de uma flauta de cabeça de veado enquanto ela
sorriria despreocupada, só pensando no mar.
Pegou a flauta que estava na estante. Era uma antiga flauta
desana; ela se chamava ñama-dupuru, e dizia a tradição que os índios,
sob o som daquela flauta, dançavam como bêbados. Soprou e o som
pareceu-lhe um tanto lúgubre. Buscou outra flauta – também desana – e
pegou a flauta chamada sû, feita com o casco de caracol.
Tentou criar alguma música e o máximo que conseguiu foi uma
melodia minimalista de poucas notas, mas que parecia incomodá-la porque
ela estava sem olhos. Sem olhos ela não poderia ouvir.
Buscou o cinzel e foi completar a obra. Ele temia os olhos
porque sabia ser impossível reproduzir os que ele vira em fuga. Porque a
expressão do olhar se transformava com a mudança de cores – os olhos
reagiam de maneira diferente a cada situação: quando ela fugia qual
menina levada – os olhos ficavam com uma cor violeta que aumentava e
diminuía conforme a ansiedade dela de voltar para o mar. Quando ela
estava quieta, triste mesmo, seus olhos ficavam cinzas e por mais que
estivessem abertos pareciam fechados. Amorosa, ela ficava com os olhos
da cor do coral e uma expressão tão intensa de amor que não havia como o
mármore traduzir tal intensidade.
Resolvera fazer-lhe órbitas simples no mármore, mas
acrescentou-lhe pupilas em ônix que ele já havia feito.
Custou a fazê-lo. Era o gesto mais doloroso, completar a obra,
acrescentar-lhe as pupilas que a tornariam quase uma obra viva, pois o
mármore inteiro parecia pulsar; parecia que ela arfava o peito, agitando
os seios em concha, que as pálpebras piscavam, que as mãos se erguiam um
pouco mais para entregar-lhe a vieira e a alga.
Colocou as pupilas e por um momento esperou e por um momento
sentou e admirou. Agora saberia se era mago ou escultor. Sua solidão
acabaria, pela passagem entre os mundos, pela assunção dessa arte total,
absoluta, que o espírito da leveza representava.
Ela era a beleza, dos dedos delicados aos seios, do sorriso
maroto ao monte de Vênus que o mármore traduzia numa pequena elevação
rugosa.
Por um momento esperou. Algo parecia se agitar sob o mármore,
quais veias sutis. Ajoelhado, ele esperava a oferta dos presentes,
queria ter em mãos a alga e a vieira. Então ele sentiu: que a pele de
seus pés se marmorificava, que seus músculos adquiriam um tônus de
pedra, que seus movimentos aos poucos se petrificavam. Num esforço
supremo ficou em pé e aproximou-se ainda mais do espírito da leveza, até
abraçar-lhe, até tê-la junto ao peito enquanto seus dedos endureciam,
enquanto seus cabelos enrijeciam-se em pequenos cachos, enquanto sua
boca se petrificava num quase beijo.
Sentia que por dentro também virava pedra e seus dedos
fundiam-se mármore ao outro mármore, sentia o hálito frio da pedra
soprar-lhe as narinas. As unhas aos poucos sumiam sob a pedra e as
pernas paralisavam-se num pequeno passo em busca de equilíbrio.
Na medida em que o corpo enrijecia, sentia que o ar ia saindo
dos pulmões e num átimo de tempo moveu-se à frente para abraçá-la ainda
mais e dizer-lhe o nome, batismo quase tardio. Abriu a boca e pode
dizer:
- Mar... - mas a fala foi interrompida.
No meio do estúdio, o mármore brilhava, ondina e homem, como se
existissem ali desde o início dos tempos. |
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Gledson Sousa (Brasil, Juazeiro do Norte, Ce, 1972)
Desde 1991 vive em São Paulo. Escritor e poeta, publicou
O ANTIMIDAS – Poemas
- São Paulo, Ed. Jano, 1998, Martina
- Monólogo de Um homem para sua Alma-
SP, Ed. Íbis Vermelho, 2001,
O Roubo da Alma
- Conferência-
SP, 2OO3, Ed Autor e Sind. Dos Bancários de São Paulo; em 2004, O
Ovo – Meditações Sobre a Semântica do Mundo; em
2006 publicou
o ensaio
O Princípio da Indeterminação Genética, no
livro
Números e Outras Coisas da Vida, pela
editora Apenas Livros Lda, de Lisboa, e em 2009 o ensaio PRESENÇA DO
FEMININO NO RELATO DE VIAJANTES – CAMINHA, VESPÚCIO E CARVAJAL, no
livro DESIGUALDADE NO FEMININO, pela editora Apenas Livros, de
Lisboa. Tem vários textos em linha no site TRIPLOV. Formado em
História, tem especialização em Paleografia pelo Arquivo do Estado
de São Paulo, atualmente faz pós graduação em História da Arte.
Assina dois blogs, o
http://aesferadamanha.blogspot.com
e o
http://adeusutopia.blogspot.com |
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© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
Rua Direita, 131
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