REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2010 | Número 08-09

 

 

 

 

«A poesia não tem presente; ou é esperança ou saudade». Estas palavras de Camilo Castelo Branco, que também foi poeta embora mais conhecido como polemista irascível e novelista apaixonado, aplicam-se ao livro de poemas que hoje nos cabe apresentar. Margarida Gama de Oliveira sabe que todo o poema digno desse nome aspira a ser a grande ponte entre dois mundos separados pelo tempo, pela distância e pela morte.  

O poema, tal como a oração, liga de novo o que a erosão da vida se encarregou de separar. O poeta é o sacerdote desta estranha liturgia celebrada numa folha branca de papel (qual altar) com uma caneta, qual hissope com lágrimas no lugar da água benta.

DIREÇÃO  
Maria Estela Guedes  
Índice de Autores  
Série Anterior  
Nova Série | Página Principal  
SÍTIOS ALIADOS  
TriploII - Blog do TriploV  
TriploV  
Agulha Hispânica  
Arditura  
Bule, O  
Contrário do Tempo, O  
Domador de Sonhos  
Jornal de Poesia  
   

JOSÉ
do

CARMO FRANCISCO

 

«Da cidade, do campo,
dos sorrisos»
de Margarida Gama de Oliveira

                                                                      José do Carmo Francisco

 
 
 
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   

O ponto de partida deste livro é a relação entre a Natureza e a Cultura. O seu primeiro poema é um programa: Naquele vale / a casa onde nasci / A casa onde senti / que havia sol / mãe / um mar de pão / um pai / a dor / leite e amor / água e mel / e uma caneta preta para escrever a vida. O poema olhou à sua volta e descobriu uma paisagem povoada pela chuva e pelos frutos silvestres: Gosto da chuva / sentada / na cadeira da varanda / a conversar comigo (…) Gosto de violetas roxas / perdidas nas levadas (…)

Ao lado da paisagem vegetal o poema registou, na sua particular cartografia, o povoamento humano, os ofícios a desaparecer, como o do cesteiro ou do moleiro: 

E aquela mó / para quem a eira / as velas / o moleiro / e o trigo magoado / eram mesmo / só passado.

«Terra de Mel» é um poema que junta de modo hábil a Natureza e a Cultura. O motivo repetido deste poema é a ligação entre o mel (produto da terra) e o coração (produtor de sentimentos). Partindo de uma aldeia na moldura da serra (o casario, as ruas, o rio) o poema alcança a memória da Bíblia (a terra do leite o do mel) sem esquecer o Novo Testamento quando refere a triste traição de Judas.

No poema se registam duas geografias; uma geral (Senti a Primavera desde a primeira hora) e outra particular: Na minha pele / sinto o calor da eira / e a pereira / em flor.

Mas também se revelam viagens dentro dos livros como no poema «Na sala sem lareira» - a autora viveu em África como professora e regressou a África nas páginas de um livro. Não por acaso essa ligação surge a seguir no poema «Amo-te África»: 

Canto as tuas / mansidões / teus jorros / de sangue quente / continente de poeiras / cor de nuvens. / Que o teu viço de palmeira / aqueça o rosto frio da Europa.

No contraponto do registo mais rural surge um poema citadino:

 

Tomo o tom rosa das casas / e caminho as praias de sol de Oeiras. / E as minhas beiras / brandos beirais de andorinhas / trocam os casais / e as madressilvas / pelos areais do mar / em que os olhos / mergulham confundidos / a chorar.

Na lucidez de quem descobre os erros de ortografia do mundo o poema invoca os poetas do passado numa espécie de memória justificativa do seu artesanato invisível:

Sem Catulo, sem Horácio, sem Camões / Só tu Cesário me vais acalentar / Naquele teu jeito caloroso de Verões / E em cidades, em ruas, em lugares / Eu vou de encontro a outros corações / Perfumo-me de cores e sei cantar.

 

Nunca se fechando no «eu» embora recorra ao «eu» como ponto de partida (mulher vivida, sofrida já de tanto amar) o poema procura sempre o «nós», o olhar colectivo como em «O meu país»: Capaz, capaz disso tudo és tu / que fazes do horizonte o teu sacrário / das tuas mãos em concha o teu baú / e até chamas destino ao teu calvário.

Só assim se justifica a revelação pública de um trabalho pessoal. Neste livro revejo a feliz definição de Maria Eulália de Macedo sobre o trabalho poético: «A poesia é estar atento e aberto ao que somos e nos ultrapassa. É uma espécie de fugidio sacramento, a exigente voz das coisas que são verdade – para além da verdade das coisas».

 

 

JOSÉ DO CARMO FRANCISCO (Portugal,1951).
Prêmio Revelação da Associação Portuguesa de Escritores. Colaborou no Dicionário Cronológico de Autores Portugueses do Instituto Português do Livro. Poeta. Possui uma antologia da sua poesia publicada no Brasil. Jornalista, colaborou entre outros em "A Bola", "Jornal do Sporting", "Remate", "Atlantico Expresso"... Autor de "Universário", "Jogos Olímpicos", "Iniciais", "Os guarda-redes morrem ao domingo", etc., bem como de antologias como "O trabalho", "O desporto na poesia portuguesa e "As palavras em jogo", entre outras. É secretário da Associação Portuguesa de Críticos Literários.
Vive em Lisboa.
Contacto: jcfrancisco@mail.pt

 

 

© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
Rua Direita, 131
5100-344 Britiande
PORTUGAL