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Por certo teria Natália escrito mais ainda para a cena, caso
tivesse recebido a motivação de assistir às suas obras primeiras, para
adultos, encenadas à data de criação escrita. Uma hipótese que surge
inevitável, ao apreciarmos a diversidade genológica das peças teatrais
que Natália vai compondo para o eco morto da gaveta ou, na melhor das
hipóteses, para a cumplicidade conspiratória da leitura partilhada,
nesse espaço de tertúlia cultural e resistência política ao salazarismo
em que se constitui a sua casa de Lisboa, nas décadas de 50 e 60; lugar
onde, por exemplo, se leva à cena privada, pela primeira vez em
Portugal, o Huis Clos de Sartre, sob a direcção de Carlos
Wallenstein, em cujo elenco se integra a escritora anfitriã, a par do
amigo e dramaturgo Manuel de Lima (1918-1976), que com ela traduz a peça
do filósofo francês (1950), e com cuja colaboração Natália comporia a
primeira das suas peças a ser encenada, em 1958, no Teatro Monumental,
mercê do disfarce dramatúrgico de fábula para público infantil: Dois
Reis e um Sono. Nome relevante da estética surrealista no teatro
português, Manuel de Lima será ainda prefaciador da tradução portuguesa
que Natália fará, juntamente com Rosário Corte-Real, do libreto da ópera
de Alban Berg, Wozzeck, do texto de Büchner (publicado em 1959).
É
precisamente com a colaboração de Manuel de Lima que Natália Correia
principia a sua experiência como dramaturga, com o divertimento
surrealizante Sucubina ou a Teoria do Chapéu (1952), peça
considerada perdida durante anos, mas cujo dactiloscrito original viria
a ser descoberto na íntegra, de entre o espólio literário da autora,
depositado na Biblioteca Nacional, em Lisboa. Embora Natália minimizasse
este texto (resistindo a divulgá-lo, segundo o testemunha Júlia Lello),
o que é facto é que decorrido que foi meio século sobre a sua escrita, o
mínimo que podemos falar é de uma sensação de espanto perante uma tão
sedutora e consistente estreia desta dupla de autores, nos domínios do
teatro escrito. Sucubina ou a Teoria do Chapéu é uma peça em
quatro actos, que respira um prazer intenso pela construção dialogal e
pela contracena que lhe é inerente, perpassada por uma elegância e
subtileza no estilo e pelo desassombro modernista do olhar crítico
(concretizando a acepção de Harold Bloom, que entende o modernismo como
um romantismo tardio), com subreptícias mensagens simbólicas, próprias
de uma criação literária vígil em tempo de ditadura. Experimento
assumidamente paródico, a peça apropria-se do imaginário demonológico
para o subverter, numa espécie de moralidade surreal, parábola com
ingredientes romanescos e policiários. O primeiro acto decorre no
Inferno, mas trata-se de um Inferno nada ígneo, mais entediante e
burocrático do que imediatamente assustador; onde osdiabos mantém
conversas de salão, demasiado humanas, convergindo por vezes, no seu
faustiano pastiche, com os climas de ironização dialogal de um
romance escrito também sob um regime totalitário: Margarita e o
Mestre, de Mikhail Bulgakov (concluído em 1940, mas só publicado na
U.R.S.S. em 1966). Assim, em vez de citar as chamas tradicionais do
Inferno medieval, o espaço cénico apresenta antes uma «vasta sala sem
mobiliário a não ser um cravo cujo respectivo banco é um velocípede»
e «ao centro, uma janela», da qual partem, de cada um dos lados «duas
escadarias que se perdem no infinito» (STC, p. 1). E como o nome do
príncípe caído é legião, segundo a letra bíblica, assim a peça faz jus a
essa multiplicação: temos um Satã líder que toca cravo para se acalmar,
e diz que os seus súbditos pares infernais «estão corrompidos pela
humanidade» (CTC, p. 5); uma Súcubo revoltada com a sua condição de
mera aparência eterna, controlada por Satã (alusão de feminista sátira
ao Eterno Feminino goetheano por ela representada), a suplicar
incessantemente pelo chapéu certo para o seu figurino (e daí o título da
peça); um Lúcifer folgazão que procura um cachimbo; e um Satanás que
exige sem demora que lhe arranjem um lacaio para carregar a sua mala,
cada dia mais pesada - como se fosse, avant la lettre, um sádico
Pozzo de À Espera de Godot (1953) sem ter encontrado ainda o seu
Lucky. A estas figuras de teatro, junta-se Deodata, uma solteirona que
faz tricot e contraria a etimologia latina do seu nome (a Deus
dada), reclamando por já ter expirado o prazo da sua estadia no
Inferno. A trupe dos mafarricos eternos, subalternos de Satã, torna-se
entretanto sensível à substância do tempo e, tal como Deodata (que tenta
subornar os diabos para se evadir daquele Inferno moroso e
pseudo-kafkiano, de hierarquias corporativas onde nada se altera),
também eles suspiram por uma viagem ao mundo dos vivos, para
satisfazerem os seus desejos pessoais.
De tal modo assim é que os três actos consequentes terão todos lugar na
muito terrena estalagem da D. Briolanja, onde se encontra hospedado há
muito um idoso e tenaz trabalhador, chamado Sr. Querubim de Nascimento;
figura aparentemente apagada que se suspeita pelo nome ser um
funcionário ao serviço de Deus, até porque os anjos danados hão-de
dizer-se seus admiradores desde sempre. Florindo, filho de Briolanja, a
proprietária da estalagem, é um jovem idealista que compõe com o som de
sinos um tipo de música que é temida pelos dois íncubos recém-chegados,
mas será despertadora do amor em Sucubina, aprendiz de humana - um
aspecto pelo qual ela nos lembra, em paródia surreal e metafísica, essa
Inês em peregrinação terrena, filha do deus Indra, que protagoniza O
Sonho (1901), de Strindberg. Os três diabos viajantes mudaram
entretanto de nomes próprios, para humanizarem o disfarce da sua nova
identidade: Súcubo é Sucubina; Satanás é Santanazo; e Lúcifer passa a
ser Luciferro. Santanazo quer logo fazer de Florindo o seu lacaio,
carregador da mala; Luciferro cobiça o cachimbo austríaco de Querubim; e
Sucubina persiste na busca por um metonímico chapéu ideal. Uma
preocupação comum a estes anjos caídos reside na procura teatral de uma
psicologia que seja adequada às personagens que representam na cena
vivente; oportunidade para falas de deliciosa sátira psicossocial (2º
acto).
«LUCIFERRO:
Deixa-te de lições. Eu só acredito no que vem no jornal. Foi para isso
que eu mudei de ambiente.
SANTANAZO: Eu cá
só me deixo convencer pelo aspecto das pessoas. Se assim não fosse
ficava lá onde não havia fisionomias.
SUCUBINA: Não
sejam idiotas. Convençam-se que ainda têm muito que aprender. Tu e o
Luciferro desde que aqui chegaram só têm cometido imprudências. Vocês
não sabem falar a língua desta gente. Têm que me dar ouvidos. Eu
conheço-os. Se descobrem quem somos fazem para aí uns exorcismos que nem
a pele se nos aproveita.
SANTANAZO: Espero
que isso não aconteça. Este mundo é muito agradável. As pessoas têm
várias caras.
SUCUBINA: Queres
dizer caras diferentes. Mas não te entusiasmes. primeiro que tudo o que
nós temos é de criar uma personalidade. Isto é... condensar a nossa
força dentro de uma noz.
LUCIFERRO: Sim...
Criar um temperamento.
SANTANAZO: Eu já
escolhi o meu temperamento. A psicologia que me convém é esta: pôr os
outros a trabalhar para mim e tirar daí o rendimento dum grande
prestígio. O trabalho é uma anomalia. Nasce-se trabalhador para não
morrer de fome e morre-se de qualquer outra coisa. Os que percebem isto
vão parar a um manicómio. E quem não perceber isto tem mentalidade de
formiga.» (STC, 2º acto, pp. 6-7)
Magnetizada pela beleza da música dos sinos e do discurso convicto de
Florindo, Sucubina, que viaja como mulher de Luciferro, acaba por
descobrir o amor correspondido na alma desse jovem inconformista;
sentimento humano que não será bem visto pelos demónios que a
acompanham. Ainda assim, quando Santanazo planeia um estratagema para
eliminar Florindo, fá-lo pelo facto deste se ocupar em tanger os sinos,
som simbólico de um divino sublime que afugenta qualquer mafarrico que
se preze. O impulso de eros faz com que Florindo revele a
Sucubina o idealismo esotérico da sua arte incompreendida.
«FLORINDO: Eles
nem sequer sabem o que é um sino... Um sino não é o que eles pensam. O
que o constitui não é a forma que reveste na sua massa, nem mesmo o som
com que fere o ar. São as suas harmonias com a consciência, as artes, a
pátria, a natureza, a sociedade... Voz para o Oriente, voz para o
Ocidente... voz do sul e do setentrião...» (STC, 2º acto, p. 16)
Para calar a voz do artista Florindo, Luciferro e Santanazo induzirão
para sua cúmplice uma outra hóspede da estalagem, já conhecida pelo
leitor/espectador: a solteirona Deodata, estereótipo da megera
castradora, que inveja o amor de Florindo e Sucubina. Santanazo explora
o lado mais frustrado e mesquinho do seu temperamento de delatora. D.
Briolanja divulgara um pesadelo agoirento que frequentemente a visita, e
em que o voo de uma ave negra junto às torres assinalaria a morte do
filho músico. Santanazo oferece então umas asas negras para Deodata se
disfarçar de ser alado, e será ela o falso avejão que conduz Florindo à
queda mortal, numa encenação literal do sonho mau de Briolanja. Deodata,
antagonista de Sucubina, tipifica uma condição feminina prisioneira de
si mesma, de dedo moralista acusador das acções que sempre desejou mas
nunca ousou praticar. «A sua alma é um pássaro que ficou engaiolado
nas grades do celibato» (STC, 3º acto, p. 7); dir-lhe-á o saber
diabólico de Santanazo. Avejão é bem o termo que se aplica ao
rosto interior desta personagem caricatural, que se diz perseguida pelo
diabo (que «pode ser até a própria consciência», segundo o diz
Florindo no 2º acto, p. 20) e que aparecerá de novo como a Solteirona do
nataliano Auto da Feiticeira Cotovia (1959); a sua erofobia ecoa
a velha moribunda da peça homónima de Raul Brandão (O Avejão,
1929), uma falsa cristã que não experimentara em vida a fruição erótica
por impotência e hipocrisia comportamentais.
No quarto acto comparece o Inspector, que vai interrogando, em jeito
policial, as diversas personagens, potencialmente suspeitas da morte de
Florindo. Na sequência dos diálogos cruzados, Sucubina dará a entender o
que pode significar para ela a busca desse chapéu surreal que nomeia a
peça; chapéu aliás que se materializara na cena de encontro amoroso com
que abre o 3º acto, em que Florindo, num gesto de simbólica dádiva
edipiana, oferecera a Sucubina um belo chapéu de plumas, com quarenta
anos, que pertencera à sua mãe. E como dirá agora Sucubina, a teoria do
chapéu vem a ser «o caso comum da mulher que quer ter o direito ao
sonho. A um sonho de amor». (STC, 4º acto, p. 10) Por isso ela saiu
do Inferno dos demónios para a esfera dos vivos, para concretizar o seu
sonho. Um paralelismo sinistro é terem também os seus comparsas
concretizado o pesadelo filicida de Briolanja, descontente com a
inadaptação lírica do filho ao mercado de trabalho (pois o artista
Florindo é um desempregado por opção própria). A busca pelo
auto-conhecimento através da realização do sonho inconsciente é uma
chave fundamental da peça; e o inconsciente é bem o lugar onde habitam
os nossos demónios mais profundos. Saber dar voz ao dáimon sem
torná-lo demoníaco (isto é, sem que ele se torne em agente destrutivo)
foi a tentativa vã de Sucubina, como ela própria o reconhece - ao
responder ao senso comum reducionista de Deodata -, pelo pacto nocivo
que estabeleceu com os dois íncubos que a escoltaram ao palco dos vivos.
«DEODATA: Porque é
que não fez como as pessoas normais. Porque é que não se contentou com
aquilo que era?
SUCUBINA: Todos
sonham o que são. E assim não há progresso. Porque não entendendo o que
são não podem entender o sonho. Eu quis ser o que sonhava. Quis aprender
o que era. (pausa) Agora vou entrar no lado vergonhoso da minha
confissão. Para viver o meu sonho eu tive que fazer um pacto com a
realidade: o cachimbo de Luciferro e a ambição ociosa do sr. barão de
Santanazo.» (STC, idem)
Mas o Inspector parece sempre saber mais do que os depoimentos que cada
um lhe vai prestando. Por invocar a frase do início (ao perguntar-se até
que ponto Santanazo e Luciferro se deixaram «corromper pela
humanidade»), percebemos que se trata de Satã oculto na identidade
do Inspector; desafiando a memória das origens naquelas três personagens
infernais que se fazem passar por tão humanas como humana é a sua
acólita Deodata. Uma fala interpelante do Inspector antecipa a
desconstrução final do enredo, introduzindo o arquétipo gnóstico da
interrogação pelas origens, e as respectivas fugas para o sujeito se
furtar a essa esfinge questionadora.
INSPECTOR: (...)
Claro. Não pensam nada. Para pensarem teriam de se lembrar donde vinham.
O fantasma da nossa origem é um monstro que se afoga em esquecimento,
não é? O vinho... (aponta Santanazo) O fumo... (aponta
Luciferro) O amor... (aponta Sucubina) qualquer destas três
formas de embriaguês se fosse possível até faria esquecer ao diabo a sua
própria origem. Vistas bem as coisas porque é que eu não hei-de ser um
Inspector? A falha de memória que vos levou a aceitar-me como tal podia
ser aproveitada por mim para me apresentar com qualquer outra
identidade. Numa sociedade em que os homens estão esquecidos de si
mesmos, qualquer aventureiro pode ser até um rei se declarar que é um
rei. Portanto, meus senhores, nada impede que eu seja o Inspector.»
(STC, 4º acto, p. 11)
Dá-se então o golpe de teatro final, como n' A Ilusão Cómica, de
Corneille: o até aí pacato Querubim mostra agora todo o seu magno poder
de encenação e impede que este Inspector se mantenha em funções. «Apagam-se
as luzes subitamente» (STC, idem) por ordem de Querubim, e quando se
acendem, o Inspector já saiu de cena. Tudo não passou de uma sessão de
leitura, materializada em representação do ponto de vista do público.
Querubim é, como um Próspero tutelar, o autor/leitor de um manuscrito
que fecha entre as mãos nesse momento, enquanto «as outras
personagens estão sentadas na sala em atitude de quem acaba de ouvir uma
leitura». (STC, 4ºacto, p. 12) Todos são afinal hóspedes em férias
na estalagem de Briolanja, e a ironia derradeira é digna de uma
sofisticada comédia pós-pirandelliana, que baralha os dados do universo
de ficção antes criado diante do espectador. «Ouve-se o barulho dum
carro que pára»; é o filho de Briolanja que chega de viagem, nada
mais nada menos do que Florindo, um jovem estudante que Sucubina elogia
como «grande artista». Florindo é um executante de cravo (o
teclado de Satã, apresentado no 1º acto) e a peça termina no momento em
que ele se prepara para explicar a Sucubina as razões do seu interesse
por esse «instrumento longínquo para a nossa época». (STC,
4ºacto, p. 13)
Nesta surpreendente Sucubina, que não merecia a gaveta escondida
a que os autores a relegariam, já se encontra bem vincada uma
característica comum a todo o teatro nataliano, e que tem na Idade
Moderna o seu paradigma tutelar em Shakespeare: falamos do teatralismo;
que se manifesta num jogo permanente com os mecanismos intrínsecos à
gramática com que se urde a mimese teatral, numa dialéctica que em
Natália passa pelo gosto barroco de fazer e desfazer a ilusão dramática.
E talvez o tempo de recepção desta peça, habitada por demónios muito
humanos, seja o nosso, se atentarmos nas palavras premonitórias que
Florindo diz a Sucubina (projecções paródicas prováveis da dupla
autoral, nomeadamente por Florindo ser um músico tal como Manuel de Lima
também o era, e Sucubina uma romântica vamp, com corte
poliândrica que a disputa, à imagem da máscara de femme dominatrix
sob a qual Natália se protegeu), depois de a presentear com o chapéu de
plumas; palavras que são também a expressão de uma asfixia cultural
vivida na sociedade portuguesa do tempo da sua escrita.
«FLORINDO: Isto
ainda não é nada. Tenho muito mais para te oferecer... a minha sinfonia
do futuro. Sim... porque futuro é a única palavra que está de acordo
connosco. Não é verdade que nós somos contra o presente? Não nos é
possível aceitar o que se passa aqui. Não podes viver toda a vida ligada
a um doido...» (STC, 3º acto, p. 1)
Mas uma peça teatral pode ser vista em antítese a essa garrafa de vinho
da colheita de 1923 (data auto-referencial, por ser o ano de nascimento
de Natália) que produz em Sucubina o seguinte aforismo: «Os homens
põem o tempo dentro duma garrafa para se esquecerem do tempo» (STC,
2ºacto, p. 15). A latência virtual do texto dramático não somente
contraria o esquecimento do tempo como o transcende, ao proceder à
reinvenção de um tempo outro por intermédio do tempo mesmo da
representação cénica; o tempo do teatro é memória activa e liberação
criativa.
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