REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2010 | Número 07

   

 

 

 

ESPECIAL

NICOLAU SAIÃO

NOS 20 ANOS DE “OS OBJECTOS INQUIETANTES”

Prémio Revelação/Poesia APE/IPPL -1990

Uma antologia

 

 
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Maria Estela Guedes  
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NICOLAU SAIÃO

Os objectos inquietantes

antologia -index

                                                                            Nicolau Saião
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
 
  DEFUNTO
 

      ao Margarido Neves

 

Agora já perdeste a camisola

e ficaste relativamente circunspecto

Por esta altura a trombeta já soou

e deste o que sabias ao porteiro.

 

Porque não defendeste esse penalty?

Joga-se lá, de facto, melhor que aqui?

E lá – há mais apitos, com certeza?

E quanto a catedrais, estacionamento

de místicos pedacinhos de ternura? E a insónia

tem finalmente endereço certo?

 

Sobre o retrato, outro retrato desfocado

 - garatujas de negro ou de neblina

por entre os nossos olhos.

Que maravilha, meu velho, agora as árvores

ora apagam ora acendem. Setembro já lá vem

começa qualquer dia

e mesmo os pontos cardeais, por brincadeira

fingem que andam mas não andam. A alegria

- calcula! - entoa com cagança

o seu sereno tric-trac de tíbias

como se fosse na própria antemanhã

de sul-sueste para setentrião

que era como a ambos nos quadrava.

 

Se tudo é efémero, sorri ligeiramente

coça os tomates, pois já não é vergonha

nem má educação

e não te esqueças que tudo faz sentido

- pé esquerdo pé direito -

como uma lágrima, um tiro, um pontapé.

 

Se a ti mesmo alguma coisa recusares

que não seja o bom repouso secular

Afinal de morto é que de facto não se passa

queira ou não queira o Código

em que também tiveste de aprender. O resto

é segundo me dizem ossos do ofício.

Como se lê na estrofe número doze

(ou seria num salmo que não lembro?)

um dia nunca é igual a outro dia

- e o Sol, aí, não tem que se meter -

nem, se calhar, diferente

quando se está principalmente ao telefone

de era para era.

 

Com isto tanto podes cortar um já de idade

com um bastante moço. Na noite angélica

todos os gatos esperam, sempre imóveis

a hora parda de fingir que os adágios

morreram com uma navalha no cachaço.

Por cá vai-se matando devagar.

 

Enche-me aí esse minuto, por favor

com sete litros de ar

ou passa-me um cigarro, ou dá-me antes

tarde por madrugada.

 

Sei bem que não precisas, por enquanto

de toalha, sabão, loção p'rá barba

mas vai encomendando (não desistas).

 

Vê lá então se a vela se apagou.

E não te falhe vestires o sobretudo.

Cachecol? Ora está claro: os hábitos

se bons, evitam confusões em qualquer parte.

 

Por favor fecha-me esses séculos com cuidado

não vão deteriorar-se sem haver necessidade.

 

Isso é mesmo para nunca mais?

Retira então do perímetro que te ficou de rosto

umas sombras abusivas de claridade. E não

bebas de mais. E quanto a Deus

manda-o à fava por mim.

 

Terás seguramente, mesmo se gaguejares

se te portares como um dorso que afinal já és

(as pernas e a cabeça põe mesmo aí ao canto

que não se suja nada, por obséquio)

um ou outro utensílio, um operoso insecto

à tua disposição, eternamente.

 

 

 NICOLAU SAIÃO [FRANCISCO GARÇÃO]
 [
Monforte do Alentejo,1949, Portugal]
Poeta, publicista, actor-declamador e artista plástico. Efectuou palestras e participou em mostras de Mail Art e exposições em diversos países. Livros: “Os objectos inquietantes”, “Flauta de Pan”, “Os olhares perdidos”, “Passagem de nível”, “O armário de Midas”, “Escrita e o seu contrário” (a publicar). Tem colaboração dispersa por jornais e revistas nacionais e estrangeiros (Brasil, França, E.U.A. Argentina, Cabo Verde...).
CONTATO: nicolau49@yahoo.com

 

 

© Maria Estela Guedes
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