REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2010 | Número 07

   

A história que ides ler foi-me contada na tabanca de Quebo, no sertão da terra dos fulas, por um homem chamado Umarú Só, velho para além de toda a idade e que por ser velho e sábio conhecia os segredos do mundo e as suas maravilhas. Vou narrá-la por palavras minhas, porque sei que não me perdoariam o uso daquele estilo floreado, exuberante, por vezes difuso mas sempre poético que os fulas usam para contar uma história.

Houve um tempo em que todos os seres viviam na mais perfeita harmonia e a paz reinava por toda a parte. Isto passou-se antes de ter nascido uma garça chamada Macute e que ficará para sempre como o anjo mau que perverteu o mundo.

Foi o caso que numa manhã de sol, quando as manadas de búfalos pastavam nas lalas verdejantes de Bambadinca, uma garça ainda nova e inexperiente, ao esburgar com o bico as carraças de um búfalo, picou-o profundamente, o que o levou a dar um sacão com a cauda, sacão que apanhou a garça e a fez cair.

 

 
DIREÇÃO  
Maria Estela Guedes  
Índice de Autores  
Série Anterior  
Nova Série | Página Principal  
SÍTIOS ALIADOS  
TriploII - Blog do TriploV  
TriploV  
Agulha Hispânica  
Arditura  
Bule, O  
Contrário do Tempo, O  
Domador de Sonhos  
Jornal de Poesia  
   

ARTUR AUGUSTO DA SILVA

 

O cativeiro dos bichos

 

       Artur Augusto da Silva

   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   

As coisas teriam ficado por aqui se não fora a garça Macute que, de longe, presenciou o caso e porque queria tornar-se rainha das aves, logo engendrou um plano que a conduzisse à satisfação dos seus desejos.

Andou de terra em terra convocando uma grande reunião de todos os bichos que voam para tomarem conhecimento da maior afronta que jamais fora praticada sobre um ser vivente.

Chegado o dia da reunião, ali se encontrou toda a bicharada que povoa os ares, desde a águia-real, de peito branco e bico adunco, até ao colibri que é mais pequeno que a mais pequena flor. Vieram os papagaios vestidos de cinzento e peitilho vermelho, vieram todos os patos, desde o marreco ao ferrão, vieram as galinhas, incluindo as perdizes e as galinhas da Guiné, todas louçãs na sua vestimenta preta de bolas brancas, vieram os mergulhões de longo bico e plumagem verde, azul, preta e branca, veio toda a casta de pardalada que enxameia os céus, vieram as abetardas no seu voo lento e majestoso e por fim chegaram as borboletas no seu voo saltitante e colorido.

Reunidos todos, a garça Macute dedarou que era necessário escolher um presidente que dirigisse os trabalhos mas, quando esperava ser investida no cargo, teve a desilusão de ver que optavam pela águia-real.

A águia-real soltou três assobios e declarou aberta a assembleia.

Logo a garça Macute levantou uma questão prévia:

- Vejo aqui as nossas boas amigas, as avestruzes, mas afigura-se-me que elas não são aves. Com efeito, desde que o mundo é mundo, não há notícia de que uma avestruz tenha voado. Elas fazem parte dos bichos que andam e, por isso, não devem tomar parte da nossa reunião.

Todas as garças grasnaram em sinal de assentimento e estabeleceu-se um certo burburinho, prontamente reprimido pela presidente que declarou ir pôr o caso à votação.

A coruja, sábia reconhecida por todos, pediu a palavra e disse:

- o problema posto pela nossa companheira, a garça, não é novo e muitas têm sido as opiniões ventiladas sem que se chegue a qualquer conclusão. Se é verdade que a avestruz tem asas, não é menos certo que nunca se serve delas para voar. Em minha opinião, devem ser classificadas entre os bichos que andam e não entre os que voam.

Como, após tão sábio resumo, ninguém quisesse usar da palavra, a águia pôs o caso à votação, e por maioria esmagadora, foi decidido que as avestruzes não eram aves, mas sim bichos que andam.

Então a águia convidou a garça a dizer do motivo da reunião, e Macute começou:

- As aves são neste mundo em que vivemos, os animais mais nobres e mais valentes. Nunca uma de nós sofreu qualquer vexame ou insulto sem que imediatamente respondesse. Ora, devo dizer-vos que é com o coração oprimido de indignação e raiva que vos vou contar que há dias, na bolanha de Bambadinca, uma de nós, precisamente uma garça, foi vítima de agressão por parte de um búfalo. Devo acrescentar que o caso não pode ficar assim e por isso proponho que se declare guerra sem quartel a todos os bichos que andam.

Uma vozearia infernal atroou os ares e os abutres eram, de entre todas as aves, quem mais grita fazia, apoiando tão dignos sentimentos.

Um pardalito que estava presente, voltou-se para um jagudi que deu mostras de grande contentamento e ainda disse:

- O que vocês querem é que haja guerra para poderem comer a carne dos que morrem.

Logo o jagudi, gritando “traidor”, deu-lhe uma sapatada e em três tempos o engoliu.

- Calma! Calma! Gritava a águia-real, receosa de não ter mão na assembleia.

Serenados um pouco os espíritos, a águia deu a palavra ao primeiro orador inscrito, o periquito. Este começou por dizer que a afronta fora grave mas, em seu entender, deveria averiguar-se primeiro se as coisas se tinham passado conforme o relato da garça, porque não via razão para que um búfalo magoasse uma garça, sem qualquer razão. Propunha, pois, uma comissão de inquérito.

O papagaio, segundo orador, citou alguns precedentes em que o comportamento dos bichos que andavam para com os bichos que voam demonstrava crueldade e propôs que o caso fosse levado ao conhecimento do bicho homem que possui discernimento mais do que suficiente para resolver o conflito.

As corujas apoiaram e depois de muitos oradores terem falado, foi resolvido levar o caso ao bicho homem.

Formada a comissão que se avistaria com o bicho homem, dissolveu-se a assembleia, no meio de grande excitação.

O papagaio, como falador de grandes conhecimentos, presidia à comissão de queixa, a qual se dirigiu ao bicho homem para fazer as suas lamúrias. Ouviu o bicho homem as mágoas da passarada e ali jurou que iria investigar, para que se fizesse inteira e completa justiça. Voltassem daí a sete dias, para ouvir a sua resolução.

A passarada retirou-se em boa ordem e o bicho homem ficou a esfregar as mãos de contente porque em sua cabeça surgira um plano. Mandou o bicho homem chamar o rei dos bichos que andam e que é, contra o que se pensa, o elefante. Veio este acompanhado de numeroso séquito do qual fazia parte o seu melhor conselheiro, o macaco.

Exposto o motivo da convocação, logo ali declarou o elefante que as intenções da bicharada que anda eram pacíficas e que nunca, até aquele momento, qualquer dos seus súbditos fizera mal a outrem, facto que devia ser do conhecimento do bicho homem que tudo sabe.

- Na verdade, na verdade, retorquiu o homem. Mas há uma queixa e é necessário saber quem tem razão. Parece-me que seria melhor que os bichos que andam nomeassem um delegado e os que voam, outro, para trazerem à minha presença as alegações de cada parte e as provas a produzir.

Todos concordaram e ficou estabelecido que daí a sete dias se realizaria o julgamento do caso.

Sete dias passados e à hora marcada, reuniu-se a grande assembleia e o bicho homem, dizendo que ambas as partes lhe mereciam o maior respeito e consideração e que, assim, não podia dar a direita a um e a esquerda a outro, propôs que o representante de cada parte ocupasse a direita durante meia hora e que a primeira posição fosse tirada à sorte.

Constituído o Tribunal, entraram o macaco como advogado dos bichos que andam e mais vinte e sete testemunhas, logo seguido pelo papagaio, representante dos bichos que voam, com vinte e cinco testemunhas.

Historiou o homem o diferendo em poucas palavras e pediu ao papagaio, como advogado da parte acusadora, que dissesse da sua justiça.

Falou o papagaio com perfeita dicção e clareza, citando vários confrades seus e algumas palavras que ouvira aos homens, o que lhe valeu aplausos até dos bichos que andam. Empertigou-se o macaco, abriu os braços como já vira fazer em comícios do bicho homem e analisou, um por um, os argumentos do papagaio e a sua queixa. Falou no amor, na justiça, na piedade, em todos os sentimentos nobres e a tal ponto comoveu a bicharada que voa, fez chorar um pardal, estouvado e brincalhão como todos os pardais.

Exposta a questão, iniciou o bicho homem a audição das testemunhas e quer as de acusação, quer as de defesa, declararam nada saber do assunto.

Concedida novamente a palavra aos advogados, estes excederam-se em citações: foram épicos, heróicos, patéticos, fizeram chorar a assembleia e, logo a seguir, fizeram-na rir desabridamente e foi numa das suas tiradas mais sublimes que o macaco, demonstrando rara intuição científica, classificou o homem de seu primo.

O Chimpanzé que estava seguindo a peroração nos menores detalhes, comentou em aparte: primo, mas degenerado... Depois desta afirmação solene do macaco, os jornais e revistas que o bicho homem publica, começaram-na citando obstinadamente, pelo que hoje é ponto assente a existência de tal parentesco.

O bicho homem suspendeu a sessão por uma hora, ao cabo da qual reentrou para ler a sentença. Era uma longa peça cheia de considerandos e que começava por afirmar que “em virtude de se não ter provado a queixa dos bichos que voam, mas convindo fazer justiça, profiro a seguinte sentença: julgo a acusação improcedente mas, tendo em atenção que a paz é um dever indeclinável de todos os espíritos sãos, e para poder reservá-la, determino que me sejam entregues como reféns e para garantia da paz futura, um animal de cada uma das espécies que voam e que andam”.

Eliminava magnanimamente custas, dada e manifesta pobreza das partes.

Todos os animais, tanto os que voam como os que andam, aplaudiram delirantemente tão sagaz decisão e só o macaco, fiado no parentesco com o bicho homem, quis recorrer da decisão, alegando que “começara a escravatura”.

Ninguém o quis ouvir, a decisão ficou sem recurso (recurso para quem? perguntava o papagaio) e o bicho homem começou encaminhando a bicharada para currais e capoeiras previamente instalados por sua indústria.

A verdade é que com o correr dos anos as palavras do macaco tiveram plena comprovação, pois o bicho homem nunca mais soltou nenhum dos reféns e porque estes se reproduziam e o bicho homem não tinha com que alimentá-los, passou a comer deles cada vez com mais apetite.

Se acontecia alguém perguntar ao homem a razão de tão prolongado cativeiro, respondia: como querem que eu os liberte se ainda ontem vi um milhafre pilhar um rato e comê-lo em três tempos? É com sacrifício, com muito grande sacrifício que dou de comer à bicharada, mas mesmo com sacrifício devo manter a minha palavra honrada e a minha justiça proverbial. É certo que ensinei os bois a trabalhar para mim; é certo que como a carne dos bichos e uso das suas penas e da sua pele em utensílios que fabrico, mas não é menos verdade que todos devem conhecer a minha isenção. Estou esperando que os bichos consigam uma promoção social que os habilite a entrar no concerto dos seres civilizados para, então, lhes dar a liberdade que eu desejo mais do que eles.

Se a história é verdadeira, não posso assegurá-lo pois que os factos passaram-se há muitos anos e não conheci o bicho homem que fez tal justiça; mas, porque Umarú Só é pessoa séria, incapaz de inventar, estou em crer que eles se verificaram conforme a narrativa.

 

(Prisão de Caxias, 1966)

 

 

Artur Augusto Silva (Guiné-Bissau)
Nasceu na Ilha da Brava, a 14 de Outubro de 1912. Ainda estudante, foi Director da revista “Momento”, réplica lisboeta da coimbrã “Presença”, onde se propunha com outros literatos jovens abrir uma “Tribuna Livre” em que livremente se discutisse e todos pudessem falar. Publicou vários artigos, fez reportagens, dirigiu saraus literários, organizou exposições de arte moderna, promoveu conferências culturais na Casa da Imprensa, na Sociedade Nacional de Belas Artes e em vários outros locais de Portugal. Licenciou-se em Direito em 1938. Em 1939, partiu para Angola, onde trabalhou como Secretário do Governador Geral. De 1941 a 1949 exerceu advocacia em Lisboa, em Alcobaça e em Porto de Mós. Em 1949, partiu para a Guiné onde foi advogado, notário e substituto do Delegado do Procurador da República. Foi também Membro do Centro de Estudos da Guiné, juntamente com Amílcar Cabral, de quem era grande amigo. Visitou vários países africanos, recolhendo elementos que mais tarde lhe serviriam para escrever, entre outros livros, “Os Usos e Costumes Jurídicos dos Fulas”.  Um dos seus comprometimentos cívicos em que mais se empenhou consistiu em defender presos políticos. Foi defensor em 61 julgamentos, um deles com 23 réus, tendo tido apenas duas condenações. Em 1966, já em plena luta de libertação da Guiné, foi preso pela Pide, no aeroporto de Lisboa. Meses mais tarde, por intervenção de Marcelo Caetano e de outros responsáveis políticos, que embora discordassem das suas ideias políticas o admiravam como homem de carácter, foi libertado, mas proibiram-lhe que regressasse à Guiné, sendo-lhe fixada residência em Lisboa. Em 1967, Marcelo Caetano, convidou-o para ir trabalhar como advogado na Companhia de Seguros Bonança. Também Adriano Moreira o convidou para leccionar no Instituto de Ciências Ultramarinas, o que ele recusou, fazendo ver ao portador do convite a incoerência de o terem prendido pelas suas ideias sobre o colonialismo português e depois o convidarem para leccionar matérias relacionadas com África. Em 1976, de visita à Guiné-Bissau, foi convidado pelo então Presidente Luís Cabral para trabalhar como juiz no Supremo Tribunal de Justiça. Também leccionou Direito Consuetudinário na Escola de Direito de Bissau. Faleceu em Bissau a 11 de Julho de 1983.

 

 

© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
Rua Direita, 131
5100-344 Britiande
PORTUGAL