REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2010 | Número 06

 

 

 

Emiliano senta-se no seu cadeirão, exausto e acende o candeeiro a petróleo. Nascido em Tavira em 1884, viverá em Estoi até ao ano da sua morte: 1968. Restam-lhe por isso, apenas quatro anos de vida, embora não saiba ainda. Esse é o nosso privilégio - contemplá-lo a partir do futuro. Por outro lado, é sempre a incerteza do amanhã que nos aquece os dias e acalenta a o espírito.

A idade já lhe vai pesando e o dia de trabalho foi árduo. Mal a manhã rompeu veio o Custódio, desesperado, lavado em lágrimas. A mulher entrara em trabalho de parto há várias horas, mas a parteira não conseguia que o bebé nascesse. Entretanto, Gertrudes esvaía-se em sangue e dor para dar à luz uma vida que se recusava a nascer.

Emiliano lá se vestira rapidamente, aparelhou o cavalo e partiu a galope atrás do homem desesperado até ao modesto lar, situado a escassos quilómetros da aldeia.

 

 
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Maria Estela Guedes  
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DORA GAGO

Emiliano,

o poeta da luz e cor

 

 
 
 
 
 
 
 
 

Mal chegaram, amarraram os cavalos na primeira árvore e entraram de rompante no pequeno compartimento onde apenas se ouviam os gemidos da rapariga.

Gertrudes era jovem, deveria ter uns dezanove anos. O seu rosto alvo e belo, estava inteiramente transfigurado pelo sofrimento.

O médico tirou os instrumentos da maleta, pediu água quente, panos, toalhas e começou a agir com precisão cirúrgica.

Todavia, o choro tão desejado teimava em não se fazer ouvir. O bebé não estava na posição adequada e parecia já nem sequer evidenciar sinais vitais. Provavelmente havia morrido asfixiado pelo demorado trabalho de parto. Se tivesse chegado mais cedo, talvez a situação fosse outra. Agora importava retirá-lo e salvar a mãe, que parecia percorrer o limiar  entre a vida e a morte.

Lá fora, apenas o silêncio ecoava contra as paredes brancas da casa. Uma chuva miudinha principiava a acariciar tristemente a terra. De súbito, uma prece lânguida e sofrida erguia-se. Era a avó da parturiente que rezava e fazia promessas à Virgem Maria.

O médico prosseguiu o árduo combate contra a morte. Conhecia as suas limitações, sabia que muitos destinos se encontravam mais nas mãos de Deus do que nas suas. Também ele se sentiu impotente e em pensamento ergueu uma oração simples e curta.

Finalmente a hemorragia abrandou, o corpo roxo de uma menina foi arrancado daquele ventre rasgado, onde a semente germinou e morreu antes de florescer.

- Doutor, é menino ou menina? – murmurou a pobre rapariga, com o fio de voz que lhe restava – Porque não chora? Não oiço nada...

- Filha, agora vais descansar... vou dar-te um remédio para as dores. – respondeu a meia-voz, ignorando a questão colocada.

Acabou por adormecer, num sono pesado, do qual não chegou a acordar.

Sentiu  a revolta a minar-lhe as entranhas. De que servia afinal toda a ciência, todos os anos de estudo e de trabalho? Naqueles momentos tudo parecia absurdo. A morte seria sempre mais tarde ou mais cedo a suprema vencedora. Afinal qualquer combate visaria apenas o seu adiamento até ao dia marcado pelo destino. Ou seria afinal contra esse destino que ele combatia? Já passara por muitas situações de derrota, mas sempre que se repetiam era com a intensidade da primeira vez. Além disso, tratava-se de uma vida por cumprir e de outra ainda a despontar na fogosidade da juventude.

O médico saiu apressadamente, recusando qualquer pagamento. Pensou confortar o pai aflito e a avó adiada e desesperada, mas as palavras morreram-lhe na garganta.

- Mas espere, doutor – pediu Custódio, retendo-o no limiar do portão enferrujado – Então, a minha Gertrudes? O pior já passou, não foi, ao menos ela... vai ficar bem?

-         Meu filho, o que a medicina pôde fazer já foi feito... Neste momento, ela tomou todos os medicamentos possíveis, a hemorragia parou, mas perdeu muito sangue. Agora ela está nas mãos de Deus. Resta rezar. Se virem que piora chamem-me imediatamente.

Atravessou a aldeia branca, enquanto o sino da igreja derramava  doze lânguidas badaladas. Na aflição nem dera pela passagem do tempo. Nem sequer lhe apetecia almoçar. Deteve-se por instantes a contemplar a paleta de cores primaveris que vestia os campos.

Assim que colocou a chave na fechadura, ouviu uma voz aflita, quase asfixiada que o chamava:

-Senhor doutor, senhor doutor, acuda ao meu rapaz que caiu de cima da alfarrobeira... ia cortar uns ramos e desequilibrou-se.

Era a dona Lucília, que viera a correr desalmadamente desde um terreno situado a poucos quilómetros de  Estoi, onde ela e o filho trabalhavam.

-Tenha calma, mulher, é só ir buscar aqui mais uns remédios e uma ligadura. Aparelho a égua num instante e vamos já para lá.

Os momentos que se seguiram foram marcados por acções tão rápidas e mecânicas, que Emiliano só recordava intensamente o instante em que chegara perto do pobre rapaz inconsciente, jazendo sobre um tufo de ervas, avermelhadas pelo sangue que brotava de uma ferida na cabeça. Com alguma dificuldade, conseguiu reanimá-lo e sentiu-se mais tranquilo quando os grandes olhos azuis de Joaquim o fitaram, com o pasmo inicial dos recém-nascidos. Não se recordava do que lhe tinha sucedido e não percebia porque sangrava e se encontrava a mãe tão aflita.

Bastou ligar a ferida e estancar a hemorragia, não parecia ter havido nenhum traumatismo grave, apesar da altura de onde caíra.

- Eh rapaz, tens de acender uma velinha à Nossa Senhora, olha que isto foi quase milagre, cair de uma árvore tão alta e ficar só com uma ferida. Agora vais para casa e descansas. Amanhã vou lá fazer-te o curativo.

Regressara passadas horas Emiliano a casa, exausto. Pouco depois soubera que  Gertrudes havia falecido. Adormecera e não voltara a acordar, como se tivesse tido pressa de se juntar à filha que não nascera. Era assim a vida, sulcada pela dor da perda, pela luta impotente contra a morte e o sofrimento, mas também ornamentada por algumas pequenas vitórias, como a recuperação do Joaquim.

Contudo aquele era o momento mágico do crepúsculo, quando sentado no seu cadeirão, com uma folha de papel poisada no colo, toda a dor, o sofrimento, mas também as cores pujantes da natureza se convertiam em poesia. Além de todas as incertezas, os sentidos, as sensações, os sonhos ainda por ter, entardeciam em cada verso.

 

  In A Sul da escrita (Prémio Nacional de Conto Manuel da Fonseca), Porto, Ed. Campo das Letras, 2007
 

 

Dora Nunes Gago (Portugal)
Nascida  a 20/6/1972 em S. Brás de Alportel, é Professora, doutorada em Línguas e Literaturas Românicas Comparadas, investigadora de pós-doutoramento na Universidade de Aveiro. Publicou: Planície de Memória (poesia, 1997); Sete Histórias de Gatos (em co-autoria com Arlinda Mártires), 1ªed. 2004, 2ª ed. 2005; A Sul da escrita (Prémio Nacional de Conto Manuel da Fonseca, 2007); Imagens do estrangeiro no Diário de Miguel Torga (dissertação de doutoramento), Fundação Calouste Gulbenkian/FCT, 2008.
Além disso, tem poemas, contos e ensaios em diversos jornais, revistas e antologias. Tem apresentado igualmente diversas comunicações sobre as “imagens do estrangeiro na Literatura Portuguesa” em Congressos Internacionais.
Contacto:
doragago@sapo.pt

 

 

© Maria Estela Guedes
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