REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2010 | Número 06

 

 

 

 

Perdoem-me os que, pelo título, antecipam longo estudo, com aprofundamento teórico e antológica diversidade de exemplos.

Prefiro deixar isso para outro lugar, conversando apenas convosco através da evocação de algumas velhas fotografias daquilo que, parafraseando Óscar Lopes, mestre de gerações, poderei designar pelo nosso “álbum de família”, dos nossos autores oitocentistas, assinalando a luz e as sombras que os fazem contrastar no seu retratismo.

Sendo a Arte o lugar que nos oferece cristalizações do imaginário colectivo e singular, permitindo cartografá-lo, assinalar linhagens e itinerários, assim como descontinuidades, o séc. XIX oferece-nos uma constelação riquíssima expressiva de um processo de autognose que implica o esteta comprometido na (re)construção da identidade colectiva. Folheemos, pois, o álbum literário…

 

 
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Maria Estela Guedes  
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ANNABELA RITA

 

Portugal em retratos

de fim-de-século oitocentista

(entre Eça e Junqueiro)  

                                                                    Annabela Rita (CLEPUL/FLUL)
 
 
 
 
 
 
 

Como pano de fundo, a reflexão ensaística, de Garrett a Antero e a Oliveira Martins e destes até ao fim-de-século, a imagem de um Portugal que se “agigantou” nos seus feitos expansionistas e que decaiu desde aí até legitimar a sua sobrevivência num desejo íntimo e irredutível (1) vai-se redesenhando, sob diferentes perspectivas focais, mas vamos à literatura, entre o drama, a poesia e a ficção, espelhos bem mais complexos e medusantes…

Retratado de perfil, Portugal tende a ser representado por pena nobilitante, com tinta mitificadora, através de personalidades que a História preservou do esquecimento, sinalizando com elas o percurso da sua evolução, denunciando uma perspectiva “heróica”, lapidar, hierática (2). Memória configurada para a colectividade visando um reconhecimento identitário, concretizada na medalhística, na pintura, na escultura, etc.: os que as circunstâncias elegeram ao olhar colectivo e que as instituições perpetuaram em pose.

A outra face, no entanto, também existe, oculta nas sombras a dor e o sofrimento que a Trágico-Marítima sublinha, e exprime-se em grito agónico repercutido em eco do génio épico-lírico, esse Camões esfomeado de Gomes Leal (A Fome de Camões, 1880) que se arrasta como fantasma pelas vielas escuras da cidade e da pátria que foi madrasta e que com ele se esvai…

Gomes Leal descreve um país anoitecido pela dor e pela decadência, simbolizado no seu épico (A Fome de Camões):

“Quando no mundo o Génio abandonado

expira à fome e ao frio, indignamente,

um lívido remorso ensanguentado

sacode o mundo tenebrosamente.

Como o arrepio dum terror sagrado,

alguma cousa grita intimamente:

como uma voz terrível que suspira

nas cordas vingativas duma Lira.” (Canto Primeiro)

Mas, mais do que isso, declara que a Literatura é voz questionante obrigando à reflexão, à autognose, à definição de uma identidade gerada na História da colectividade teleologicamente concebida:

“E essa Lira é só feita de ameaças.

Essa Lira é só feita de vinganças.

Essa Lira só fala de desgraças,

d'antigos crimes, e cruéis lembranças.

Essa Lira espedaça e quebra as taças,

cala os festins, e faz parar as danças,

e essa Lira ai! da trágica inocência

é a Lira terrível da Consciência.

 

E a Lira diz: ‘O que fizeste, ó mundo!

das grandes almas únicas, sagradas,

das grandes frontes dum sonhar profundo

que eram as frontes as mais bem amadas?

O que fizeste desse abismo fundo

de vontades mais rijas do que espadas,

desses simples e santos corações

que faziam chorar as multidões?

 

‘O que fizeste dessas línguas d'ouro

que sabiam pregar como os profetas?

Como enxugaste o seu comprido choro?

Como arrancaste as pontiagudas setas?

O que fizeste, ó mundo! do tesouro

que vós homens mortais chamais poetas:

mas cujo nome d'harmonias belas

só o sabem as Cousas e as Estrelas?” (Canto Primeiro)

E também a institui como Sibila que responde, legitimando-lhe o discurso:

“‘Deitaste ao lodo, à rua, e aviltamento

esses que adora a Natureza inteira,

esmagaste entre as pedras o talento,

os seus crânios quebraste, na cegueira!

As suas cinzas espalhaste ao vento!

Profanaste os seus louros na poeira!

E repousam sem lástimas nem lousas

os que viam as lágrimas das Cousas!...

 

‘Por isso me ouvirás, em toda a parte

como um soluço e um grito vingador,

numa alta torre, atrás dum baluarte,

entre os festins, nas convulsões do amor.

Na paz, ou levantando o estandarte

da guerra, escutarás a minha Dor.

Porque eu, ó mundo! guarda-o na lembrança,

– Eu sou a Lira, e a minha voz Vingança!’

 

E o mundo escuta, indefinidamente,

a voz da Lira a protestar terrível.

Ouve-a na sombra, ou pelo sol poente,

se o vento dobra o canavial flexível

ouve-a nos sonhos, ouve-a intimamente,

numa contínua música inflexível,

até que enfim vencido nesta liça

o mundo clama – Faça-se a Justiça! –” (Canto Primeiro)

Verbo clivado entre pergunta e resposta, exprimindo uma consciência em busca de si…

De um Camões garrettiano que, nascido sob o signo da palavra “Saudade!”, "[e]xpirou co'a pátria", plasmado nos moldes textuais da sua epopeia e por ela, imaginariamente emoldurado, em jeito de contra-canto dentro do canto, lírica emergindo da épica, até ao fim-de-século expresso numa Finis Patriae (1890), onde “é negra a terra, é negra a noite, é negro o luar”, pátria que mergulhará no húmus brandoniano (1917), o sentimento da decadência nacional cresce parecendo alimentar-se desse movimento reflexivo de arqueologia da identidade colectiva.

Esse movimento de autognose conduz a figurações expressivas do imaginário oitocentista, na confluência do pensamento religioso e do profano, figurações emergindo das suas matrizes mais profundas, fundadas na memória do passado, na ânsia do futuro, na depressão ou na esperança do presente, entre sonho, utopia e realidade…

Por isso, as linhagens dividem-se entre a versão nocturna e a diurna: muitas tendem a ser figurações emanando das sombras da realidade anoitecida e tenebrosa, quadros exprimindo telúrica e teatralmente o sentimento do inconsciente colectivo; outras tipificam uma personalidade e um presente nos seus traços mais marcantes.

1.      

Uma das figurações dessa linhagem sombria é a da Pátria (1896) de Junqueiro, cuja epígrafe (“Esta é a ditosa pátria minha amada.”, Camões) a impõe em contra-luz e contraponto relativamente à sua elaboração épica camoniana e instituindo ambas as obras como ‘padrões’ do ciclo nacional de esplendor e decadência, refractada em Finis Patriae (1890), polifonia dramática de um povo fragmentado, desorientado, agónico, impotente e ressentido.

Guerra Junqueiro (3) reconfigura a Pátria portuguesa numa personagem marcante: o Doido. Primeiro, em Finis Patriae (1890), fixa-lhe a genealogia, apresentando-a “À Mocidade das Escolas” em epígrafe (a primeira) que a legitima institucionalmente no discurso da História de Portugal (1879) de Oliveira Martins:

“Por isso a descendência de Nun'Álvares, um herói e um santo, foi uma sucessão de intrigantes mesquinhos, de maus doidos, ou de egoístas vulgares. A grande herança do herói esmagou os seus descendentes.” (itálico meu)

Em Pátria (1896), Junqueiro faz surgir teatralmente essa personagem enquadrada por nocturno tormentoso, trovejante (“Noite do tormenta. Céu caliginoso, mar em fúria, ventanias trágicas, relâmpagos distantes.”), precedida pela sua designação minusculada (“o doido”) e pela sua “voz trágica”: Doido sem nome nem vestígios de consciência da sua identidade, que anda perdido de si, alienado, com um livro na mão, “um velho livro em pedaços”, volume semi-despedaçado sem “princípio, nem fim; trapos todas as folhas” (cena VI), em jeito de vida suspensa na desorientação por falta de coordenadas (temporais, espaciais), onde se lê a epígrafe da obra e outros versos reconhecíveis d’ Os Lusíadas. Palavra sobre a palavra em si mesma reflectida. Memória épica e colectiva dissolvendo-se nas folhas perdidas, no título elidido, no volume desmanchado, no nome e identidade esquecidos…

E, se o Doido surge, entre relâmpagos e trovoada,

“enorme, cadavérico, envolto em farrapos. As longos barbas brancas flutuando. Numa das mãos o bordão. Na outra um velho livro em pedaços. Lembra um doido e um profeta, D. Quixote e o rei Lear. O olhar, cavo e misterioso, é de sonâmbulo e de vidente.” (cena VI),

o seu bordão evoca também o do viajante e o do peregrino que se conciliam no bordão garrettiano das Viagens, convocando, quer o bíblico Moisés, quer a longuíssima tradição da literatura de viagens, quer todo o imaginário nacional expansionista, combinando a cruz e a espada, e o seu discurso da perda e da queda na miséria, o seu pranto, assemelha-se ao da vicentina Maria Parda, ao do Lusíada nobriano, ao de toda uma linhagem de perspectivações da decadência que desembocará no encontro pessoano com a espectralidade dos seus fantasmas, diversidade susceptível de se sintetizar num só, “aparição estranha e luminosa”: Nun’Álvares, “guerreiro” e “monge”, “S. Portugal em Ser”.

Do confronto do Doido com o seu fantasma e ancestral (Nun’Álvares) (4), emerge, progressivamente, a consciência identitária, onde indivíduo e colectividade confluem e se fundem simbolicamente:         

“Oh, que figura estranha e luminosa!

Que aparição aquela!...

E eu já a vi... eu já a vi... lembro-me dela...

Mas onde foi?... Cabeça tonta! ... Onde seria?!...

Ah, ah, já me recordo!... quando eu vivia,

Tive assim um parente... um irmão... Um irmão?

Eu nunca tive irmão!...

Oh, que loucura! oh, que loucura!

Mas eu conheço este fantasma... esta figura...

Aquele ar singular de guerreiro e de monge...

Eu conheço-o... Mas onde foi? quando é que foi? lá muito ao longe...

Muito ao longe... Ora espera!... Já sei! Não era irmão, não era!...

Fui eu próprio!... Fui eu assim!... Fui eu! fui eu! fui eu!

É tal e qual... é exacto,

O meu retrato!...

Fui eu!...

................................................................................

Ah, fui eu... um outro eu... que andou no mundo e já morreu!” (cena XXII)

Este processo de auto-reconhecimento do Doido de Junqueiro decalca-se no itinerário parenético, nesse encontro de si consigo mesmo e com a transcendência que lhe devolve a alma (“A alma embebe-se-lhe no corpo.”, cena XXIII), encontro concluído no beijo à “fúlgida epopeia” da sua história e da sua memória, mas também o reconstrói para a crucificação final sob a legenda “Portugal, rei do Oriente!”, representando a crucificação arquetípica, de Cristo.

Por fim, representando as duas idades do presente crucificado, sacrificialmente, passado e potencialidade de futuro, atravessam a névoa um velho camponês e uma criança

“Clareia, roxa, a manhã de Novembro, triste lençol de misericórdia, a que limpassem forcas ou calvários. Um aldeão senil e vagabundo, caminha ao longe, tropegamente, como um fantasma, em direcção à cruz. Roto, cheio de lama e de sangue, no bordão aos ombros uma taleiga, e, escondida no peito, aninhada nos braços, uma criancinha forte e luminosa.”

No campo devastado e desértico faz-se reconhecer esse Alcácer Quibir da tragédia colectiva, mas na claridade “roxa” desenha-se a esperança de renascimento do imaginário sebástico, messiânico, cristalizado na luminosidade espiritualizadora da criança. Diante da cruz, o aldeão, figura telúrica e da consciência comunitária (mesmo senil), faz a identificação entre o Doido (maiusculado e minusculado) e Deus, identificação necessária até para o ritual fúnebre.

E a criança encontra a espada nacional (o montante de Nun’Álvares) (5) caída e a ergue, retomando a cena fundadora do ciclo arturiano e a da renovação nacional (Aljubarrota), mas também reescrevendo, no gesto do braço, a transfiguração descrita por Mateus no Novo Testamento e representada por Rafael (1518-1520), onde uma criança hesita entre o assombro e a alienação.

Entre a cruz e a espada, a vida e a morte, a guerra e a paz, num campo de batalha e redenção, desolação e assombro, define-se a identidade nacional.

Nessa cena, portanto, o futuro configura-se na retomada, na espiral de um devir nacional onde o imaginário cristão mescla a ortodoxia e a heterodoxia, o discurso bíblico e o literário (ciclo arturiano e afins), a voz erudita e a popular. É a redenção de um povo, de uma nação, de uma Pátria, de alma com fundas e sombreadas raízes, banhada, por fim, de luz vital e de canto telúrico, em comentário de voz off que vectoria a leitura: 

“Luz enigmática, vem de longe, do fundo do passado, morrendo ao longe, em sonho, nas obscuridades do porvir... Esse velho fantasma, com esse menino ao colo, lembra a derradeira árvore dum bosque, árvore nua e carcomida, com uma florinha última no tronco. Flor de morte!... flor d'esp'rança!... Nasceu dum cadáver, e dela se hão-de gerar, talvez, os rumorosos bosques d'amanhã!... /…/ Os braços da criancinha estendem-se com avidez, numa alegria doida... Nobre montante, qual o teu destino? Sulcarás, relha de arado, a gleba deserta desse camponês? Nas mãos dessa criança, um dia homem, brilharás acaso, espada de fogo e de justiça? Mistério... mistério. -  Invisivelmente, saudando a luz, as cotovias gorjeiam...” 

Na figuração metamórfica de densidade cristológica de que a Pátria é exemplo marcante e que atravessa o século na representação e na gnoseologia da identidade nacional, há, naturalmente, descontinuidades: mudam as penas, alteram-se os retratos… 

 

  2.
 

Contrastando com essa linhagem nocturna e trágica, embora também no quadro do reconhecimento de uma decadência nacional, ocorrem-me dois retratos queirosianos da identidade nacional, onde a encenação diurna emoldura o traço vigoroso (A Ilustre Casa de Ramires, 1890) ou a ironia desiludida (O Crime do Padre Amaro, 3ª ed., 1899), emergindo do diálogo entre representantes dos dois poderes, temporal e religioso, as duas forças tradicionais da sociedade portuguesa.  

No primeiro caso, a imagem de uma personagem conclui A Ilustre Casa de Ramires (1900), impondo, na concisão contundente de uma só palavra, afirmativa e constativa, um reconhecimento e uma identificação incontornáveis entre o indivíduo e a colectividade, legenda sem margem a objecção ou a discordância: 

“Então João Gouveia abandonou o recosto do banco de pedra e teso na estrada, com o coco à banda, reabotoando a sobrecasaca, como sempre que estabelecia um resumo:

- Pois eu tenho estudado muito o nosso amigo Gonçalo Mendes. E sabem vocês, sabe o Sr. padre Soeiro quem ele me lembra?

- Quem?

- Talvez se riam. Mas eu sustento a semelhança. Aquele todo de Gonçalo, a franqueza, a doçura, a bondade, a imensa bondade, que notou o Sr. padre Soeiro... Os fogachos e entusiasmos, que acabam logo em fumo, e juntamente muita persistência, muito aferro quando se fila à sua ideia... A generosidade, o desleixo, a constante trapalhada nos negócios, e sentimentos de muita honra, uns escrúpulos, quase pueris, não é verdade?... A imaginação que o leva sempre a exagerar até à mentira, e ao mesmo tempo um espírito prático, sempre atento à realidade útil. A viveza, a facilidade em compreender, em apanhar... A esperança constante nalgum milagre, no velho milagre de Ourique, que sanará todas as dificuldades... A vaidade, o gosto de se arrebicar, de luzir, e uma simplicidade tão grande, que dá na rua o braço a um mendigo... Um fundo de melancolia, apesar de tão palrador, tão sociável. A desconfiança terrível de si mesmo, que o acovarda, o encolhe, até que um dia se decide, e aparece um herói, que tudo arrasa... Até aquela antiguidade de raça, aqui pegada à sua velha Torre, há mil anos... Até agora aquele arranque para a África... Assim todo completo, com o bem, com o mal, sabem vocês quem ele me lembra?

- Quem?...

- Portugal." (6)

A ficção plasma a saga familiar iconicamente representada na velha Torre e na novela em progresso (A Torre de D. Ramires) na história colectiva, de que se pretende, até certo ponto, representação fragmentária (e plagiada), impondo um seu membro como símbolo de um Portugal entre a Europa e a África, entre os objectivos e as personagens de outrora e os do presente oitocentista, país desequilibrado no mapa-mundo do nosso autor. O território de outrora insinua-se fuga do futuro europeu cujos  atributos  Eça consagrará, com ambígua ironia, no conto “Civilização” e n’A Cidade e as Serras (p. p.,1901) … 

No segundo caso, recordo a cena com que conclui O Crime do Padre Amaro (3ª ed., 1899) de Eça de Queirós: o conde de Ribamar aponta com gesto abrangente um quadro da vida citadina onde se evidenciavam sinais da “degenerescência de raça” e da decadência social, declarando-os, enfaticamente, a “animação” e a “prosperidade” de um povo que fazia a “inveja da Europa!”.

Sob o olhar frio da estátua de Camões “cercado dos cronistas e dos poetas heróicos da antiga pátria – pátria para sempre passada, memória quase perdida!”, as palavras finais do narrador são legenda ao livro, à ficção e à nação, legenda nostálgica, declaração amorosa, lastimosa… 

Poderia convocar aqui e agora outros retratos da decadência nacional simbolizada em paisagem com figuras ou em personagens, muitos e diversos na suas modulações, muitos deles com a Europa em contra-luz, na linhagem do imaginário dos estrangeirados, referência ou imagem prestigiada com a qual Portugal se vai confrontando, oscilando entre o desejo de aproximação e o desânimo pela distância, embora, às vezes, com a insinuação de algum orgulho ainda de uma especificidade sobrevivente em que beberá, depois e por outros motivos, a sua revalorização como país tradicional, familiar e provinciano, mesmo nas suas urbes. 

Em “O Sentimento dum Ocidental” (1880), Cesário assinala o ciclo da heroicidade à decadência, quer na própria figura de Camões, de guerreiro e náufrago e à escultura em recinto vulgar, quer na progressão da noite e dos fantasmas da memória colectiva que o verbo poético evoca e exprime, transmitindo o legado patrimonial identitário:

“E eu sigo, como as linhas de uma pauta

A dupla correnteza augusta das fachadas;

Pois sobem, no silêncio, infaustas e trinadas,

As notas pastoris de uma longínqua flauta.” (“Horas Mortas”)

Prefiro deixar a observação suspensa na incompletude retratista, em jeito de esboço com notas para um trabalho a fazer…

 

 

Notas

 

(1) Portugal na Balança da Europa (1830) é um dos textos que nos oferecem a imagem de um “gigante” ou “colosso” a declinar e a questionar as razões e as possibilidades da sua sobrevivência como país soberano...

(2) Apesar de evolução do discurso histórico, da transformação do seu modo de olhar a História, multiplicam-se os exemplos da persistência desse tipo de perspectivação, em especial nas publicações que visam o grande público. É o caso, p. ex., de volumes como Portugal 860 anos (Lisboa, Edimpresa Editora, col. Super-Interessante-“Os Livros”, Lda., 2003), que acompanha a revista Super-Interessante (66), de Outubro de 2003, pois especifica e concretiza esse período no subtítulo Figuras 1580-1926. Os portugueses mais destacados nos campos da política, das armas, da religião, da cultura e das artes: título e subtítulo fazem coincidir Portugal com esses portugueses.

(3) Sobre a reavaliação da obra de Guerra Junqueiro, cf. o projecto “Revisitar/Descobrir Guerra Junqueiro”, dirigido por Henrique Manuel Pereira (http://guerrajunqueiro.wordpress.com/tag/henrique-manuel-s-pereira/).

(4) De acordo com alguns autores, a estirpe do Condestável também estava marcada por personalidades excessivas, violentas e, até, pela loucura (Cf., p. ex., José Júlio Dantas. Outros Tempos, Companhia Editora Portugal-Brasil, Lisboa, 1909).

(5) Trata-se de um dos símbolos icónicos de uma identidade indomável e independente, central em quadros (como o de Luciano Freire, de 1904). D. Nuno Álvares Pereira, chamado por sua mãe “meu Galaaz”, quis torná-la numa versão nacional da Excalibur arturiana e é conhecida a história do trabalho da sua transformação encomendado ao alfageme de Santarém, que lhe profetizou o sucesso. Nela, mandou inscrever “Excelsus super omnes gentes Dominicus” numa face e, na outra, “Maria”, e dentro de um círculo as palavras Dom Nuno Álvaro, vendo-se ainda uma contra-marca, com a cruz entrelaçada por flores.

(6) Eça de Queirós. A Ilustre casa de Ramires (edição crítica de Elena Losada Soler), Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1999, pp. 455-456.

 

 

Annabela Rita (Portugal)
Professora na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, é Doutorada em Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea pela Universidade de Lisboa e tem a Agregação em Literatura pela Universidade de Aveiro.
Integrou a MRPB - Missão para o Relatório sobre o Processo de Bolonha (2003-04) e, actualmente, é Conselheira para a Igualdade de Oportunidades do MCTES.
Presidente das Direcções do CLEPUL (Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias), da APT - Associação Portuguesa de Tradutores e do Conselho Consultivo da CompaRes-International Society for Iberian-Slavonic Studies, Administradora do OLP (Observatório da Língua Portuguesa), integra os Conselhos Consultivos da FMP (Fundação Marquês de Pombal), do ICEA (Instituto de Cultura Europeia e Atlântica), a Mesa da Assembleia Geral da APE (Associação Portuguesa de Escritores).
É, ainda, membro dos seguintes centros de investigação: CECLU (Centro de Estudos de Culturas Lusófonas da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da UNL), CEHME (Centro de Estudios Históricos de la Masonería Española) da Universidade de Saragoça, o CECULBE-UNIFAI (Centro de Estudos Culturais Brasil-Europa) do Centro Universitário Assunção - UNIFAI, em São Paulo, GIA do IECC-PMA (Instituto Europeu de Ciências da Cultura - “Padre Manuel Antunes”).
Criou e coordena a Tertúlia Letras Com(n)Vida, além de outras iniciativas.
Foi agraciada com o Diploma de Mérito Cultural pela Academia Brasileira de Filologia e pela Faculdade CCAA (Rio de Janeiro, 17 de Setembro de 2007) e com a Medalha Municipal de Mérito – Grau Ouro pela Câmara Municipal de Oeiras (Junho de 2010).
Além de dezenas de participações em júris de prémios literários nacionais e internacionais (de: PEN Clube Português, APT, APE, IPLB, LER/BCP, Aristeion, etc.), fez a edição prefaciada de autores nacionais consagrados e tem vasta colaboração ensaística dispersa em Portugal e no estrangeiro, destacando-se os seguintes livros:
· Cartografias Literárias, Lisboa, Esfera do Caos, 2010 [pp. 198]; Itinerário, Lisboa, Roma Editora, 2009 [pp. 232]; Rui Nunes. Antologia Crítica e Pessoal [Coordenação e um estudo, com Antologia Pessoal de Rui Nunes], 2009 [151 pp.];De tempos a tempos. Júlio Conrado [Coordenação e um estudo, com Antologia Pessoal de Júlio Conrado], Lisboa, Roma Editora, 2008 [271 pp.];Homem de Palavra. Padre Sena Freitas [Co-coordenação, prefácio e um estudo], Lisboa, Roma Editora, 2008 [846 pp.]; No Fundo dos Espelhos - II. Em visita, Porto, Edições Caixotim, 2007 [310 pp]; Teolinda Gersão: Retratos Provisórios (Co-autoria com Teolinda Gersão e Maria de Fátima Marinho), Lisboa, Roma Editora, 2006 [301 pp.]; Emergências Estéticas, Lisboa, Roma Editora, 2006 [239 pp]; Breves & Longas no País das Maravilhas, Lisboa, Roma Editora, 2004 [237 pp.]; O Mito do Marquês de Pombal (Co-autoria com José Eduardo Franco), Lisboa,Prefácio, 2004 [117 pp.]; No Fundo dos Espelhos - I. Incursões na cena literária, Porto, Edições Caixotim, 2003 [230 pp.]; Labirinto Sensível (com Breve Antologia Pessoal de Casimiro de Brito), Lisboa, Roma Editora, 2003 [244 pp.]. 2ª edição (encadernada), 2004 [244 pp.]; Eça de Queirós Cronista. Do “Distrito de Évora” (1867) às “Farpas” (1871-72), Lisboa, Cosmos, 1998.
Direcção de Colecções Literárias:
· “Obras de Almeida Garrett” (série da colecção “Clássicos da Literatura Portuguesa”), Porto, Edições Caixotim; “Faces de Vénus”, Lisboa, Roma Editora; “Faces de Penélope”, Lisboa, Roma Editora; “Casa de Cultura”, Lisboa, Roma Editora; “Ciências da Cultura”, Braga/Coimbra/Évora/Florianópolis/Lisboa, Esfera do Caos Editores; “Letras Com(n)Vida”, Lisboa, Hespéria Editora.

 

 

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