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De alguma forma, este
conto retrata a nossa atitude mental com respeito à nossa maneira
considerada “normal” de focar a realidade e os problemas da vida.
Procuramos em lugar errado, devido aos nossos apegos aos hábitos
adquiridos. O Passado condiciona a nossa maneira de focar o Presente, o
Quotidiano, o Aqui-e-Agora.
Tudo isto tem que ver
com o que aqui denominamos Espiritualidade Holística. Mas não é fácil
descrever este novo/velho paradigma em pocos minutos. Por isso
denominamos somente “introdução” a este trabalho. Quem quiser saber mais
ao respeito, poderá consultar a nossa tese de doutoramento em Filosofia,
denominada ‘Filosofia de la Vivencia Holística’ (em castelhano), no
nosso site:
http://espacioinfinito.orgfree.com/index.htm
2. Podemos
“definir”, brevemente, o ‘Holismo’ como um novo paradigma (ou modelo
epistémico) caracterizado pelo acento que põe sobre o Todo. É a procura
dum Todo unitário, que dá sentido precisamente às suas “partes”. Ou
seja, as partes não são independentes, mas partes de um Todo, fazem
referência à Totalidade. As partes têm autonomia relativa, uma
identidade relativa, mas, em último termo, não são senão expressões
multi-diversas do Único Todo.
Noutras palavras, o Todo
é um Um diverso, ou uma Diversidade/Multiplicidade unificada. A
Identidade absoluta é o Todo, não as suas diferentes partes (identidades
relativas e provisórias).
Além disso, podemos
dizer que o Todo está presente em cada uma das suas partes. Uma parte é
um Todo diminuto, simplificado. É este o ‘princípio hologramático’, que
tanta importância tem na Física contemporânea, na construção de
hologramas. É também o mesmo princípio que se aplica em Biologia, quando
se quer reconstruir todo um organismo a partir de uma simples célula
base desse mesmo organismo (holomorfismo). Isto significa que o Todo não
é uma simples soma das suas partes, mas algo mais do que isso. É essas
diferentes partes e o conjunto das propriedades interactivas entre todos
os seus elementos ou partes.
Isto, que parece tão
abstracto, pode-se compreender perfeitamente através de um simples
exemplo.
Para entender o que é o
modo de produção capitalista podemos estudar densos livros de Economia
para captá-lo. Mas basta ir a uma loja da esquina e comprar lá uma
simples Coca-Cola. Neste acto de compra num pequeno supermercado do
bairro (se é que ainda existem...) estão implícitas essencialmente, ou
basicamente, se quisermos, todas as relações fundamentais do chamado
modo de produção capitalista: o preço, a relação compra-venda, o
dinheiro como meio de troca, a loja, o patrão e as trabalhadoras e
trabalhadores, a jornada de trabalho, a concurrência com outras lojas, o
processo internacional de fabricação e distribuição do produto, a
propaganda, a lógica do desejo e as expectativas criadas pelo produto em
questão, etc.
Ou seja, podemos
descobrir toda essa lógica capitalista (totalidade) numa simples compra
de um produto na loja (parcialidade). De novo, o Todo está presente em
cada uma das suas partes.
3. O Holismo,
contudo, não é um paradigma novo. É muito antigo na história da
humanidade. Esta vivência de que a Totalidade é o mais importante à hora
de compreender o mundo e de vivenciá-lo, é tão antigo como a história da
Humanidade. Modernamente, o que fazemos é tão só esclarecer melhor este
processo, captar melhor os seus fundamentos e explicitá-los. Mas, como
esquema mental, epistémico, é muito antigo.
Talvez não encontremos
todos os seus elementos, conscientemente, em outras filosofias ou modos
de pensar, mas aí estão basicamente. Por exemplo, em várias filosofias
indianas, como no Advaîta Vedānta (inclusive no Vishishta Advaîta
Vedānta). Também no Yoga, no Taoísmo, no Budismo Zen, em diversas
místicas e místicos da Kabbalah, do Sufismo e do Cristianismo (como no
Mestre Eckhart ou em São João da Cruz).
4. Vejamos agora
algumas teses fundamentais do Holismo, formuladas em forma de decálogo.
4.1. O Holismo
parte da experiência de que a Realidade como tal é sempre fluida,
dinâmica, nunca é estática. Como dizia o sábio Heráclito: “Nada é, tudo
se transforma” (‘paradigma heraclíteo’). O Budismo falará da Lei da
Impermanência (anitya). Tudo se transforma. No entanto, postula-se
também a Permanência, a ‘quietude’, o ‘repouso’ (‘paradigma parmenídeo’).
Mas a Permanência absoluta é inexpressável, apofática.
4.2. A Realidade
é uma totalidade unitária. Como tal o Todo é Um, Uno. As “partes” são
sempre partes de um Todo. O Todo é mais do que a soma das suas partes
(porque as inclui a elas e a todas as suas interconexões). “O Todo está
(presente) nas suas partes”.
4.3. Tudo está em
relação com tudo. Tudo é inter-relativo, inter-relacional,
inter-conectivo. É o ‘paradigma ecológico’ (defendido, por exemplo, por
J. Lovelock: ‘Hipótese Gaia’, a Terra como um Super-Organismo vivo).
Nada existe à margem de essa inter-relacionabilidade total.
4.4. O Macro
dá-se no micro (‘paradigma holográfico o hologramático’). A única
diferença é a dimensionalidade. O Macro-micro é uma só coisa. “Como em
cima, assim em baixo” (‘princípio hermético’).
4.5. O Todo é, ou
está, estruturado. Dado que é unitário, integra as diferenças, as quais
não são eliminadas, mas sub-sumidas. Trata-se de um Todo “diferenciado”,
multívoco (O Uni-verso é Multi-verso). A Multiplicidade e a Diversidade
estão integradas e implícitas no Todo. Uno e Múltiple são duas caras da
mesma moeda. Ou seja, a Realidade é uma totalidad multi-diversa.
4.6. Sendo a
Realidade fluida, impermanente, nada é substancial, permanente. Todas as
identidades são provisórias, flexíveis, intercambiáveis. É o paradigma
físico da “dança de Shiva”, postulado pelo físico Fritjof Capra). São
identidades “ilusórias”, no sentido em que não são permanentes.
4.7. Não há
dualidade absoluta entre sujeito e objeto. O/a observador/a é o/a
observado/a, e vice-versa (‘paradigma quântico’: o observador afecta o
observado). Isto implica o fim do dualismo absoluto
epistémico-ontológico. É uma crítica radical ao ‘paradigma cartesiano’.
“A Realidade se auto-observa” (2).
4.8. O Todo,
desde o ponto de vista cognitivo-ontológico, pode ser considerado
fenomenicamente e noumenicamente. (utilizando a linguagem kantiana, mas
sem nos comprometermos com ela). ‘Fenomenicamente’, a Realidade
comporta-se como diferenciada, múltipla, como espacialidade e
temporalidade. ‘Noumenicamente’, a Realidade é una. Precisamente, a
visão holística consiste em “ver” ambos aspectos inter-ligados,
conjugados (‘principio aristotélico’, mas interpretado agora
holisticamente). O nouménico dá-se, simultaneamente, no fenoménico, e
vice-versa.
4.9. Seguindo com
a terminologia kantiana, mas noutro contexto epistémico-ontológico,
podemos dizer que a mente humana (‘entendimento’, en Kant) só pode
captar discursiva-mente os fenómenos. Para captar o Todo com as suas
diferenças, ou seja, o ‘noumeno’ com (em) os ‘fenómenos’,
compreensivamente, precisa de um acto intuitivo, transcendental (uma
espécie de ‘Razão intuitiva’, utilizando paradoxal-mente a terminologia
kantiana, evidentemente com outro sentido).
4.10. Só que este
acto intuitivo (ou intuição originária) não é expressável em conceitos
(pensamento discursivo) e está para além da racionalidade comum
(analítica), já que esta é verbal. É experienciável, sendo uma
experiência pura, originária. Uma experiência não reduzível ao
espaço-tempo (melhor seria denominá-la ‘vivencia’ (3)). Noutras
palavras, o Todo só é captável por intuição transcendental. A
racionalidade analítica só observa fragmentos. A captação da totalidade
é um processo intuitivo, sintético. É feita de maneira paradoxal,
simultânea, espontânea, ruptural (se bem que existem diferentes escolas:
umas mais ‘rupturistas’ e outras mais ‘gradualistas’).
Noutras palavras, a
vivência holística é uma visão sinóptica da Realidade. É apofática (não
se pode dizer ou expressar), mas vivenciável (‘vivência absoluta’), em
princípio por e para todo o ser humano
(4).
5. Vistos estes
aspectos básicos da filosofia holística, vejamos agora as suas
formulações a nível da Espiritualidade.
5.1. Uma
Espiritualidade holística (EH) será, portanto, uma Espiritualidade não
dual, integrativa. Ou seja, uma Espiritualidade onde cessem os dualismos
que contrapõem espiritual e material, mística e ciência, espiritualidade
e política (mística e revolução), mente e braço (intelectual-manual),
razão e emoção, masculino e feminino (pois é andrógina ou ginândrica).
Há outras dualizações
mais trágicas, como a que opõe os privilegiados a nível económico,
super-remunerados, àqueles/aquelas (mais elas do que eles, a nível
mundial...) super-explorados pelas relações de trabalho capitalistas. Ou
os países do denominado “Primeiro Mundo” aos do “Terceiro”, “Quarto”,
“Sétimo Mundos”... e por aí afora. Ou dos que têm os seus direitos
humanos (mais ou menos) respeitados àqueles que nem têm nem os “direitos
animais” reconhecidos...
Pessoalmente, achamos
que este é um dos pontos mais importantes da Espiritualidade
contemporânea: a tentativa de ir mais além das dualizações mentais, que
implicam depois modelos sociais e humanos assimétricos.
5.2. Uma
Espiritualidade holística é uma Espiritualidade de sadhana pluralista.
‘Sadhana’ é um termo sânscrito que é o equivalente de ‘práctica
espiritual’. É sinónimo de método ou disciplina espiritual também. Pode
haver diferentes sadhanas dentro de uma EH. A EH não tem um método
próprio.
Por exemplo, pode-se ser
holista e practicar yoga, Tai Chi, meditação tibetana (várias formas),
zazen, oração cristã (diversos modos), sufi, cabalista... Como diz um
provérbio hindu, o importante é chegar ao cume da montanha, e não qual é
o caminho que utilizamos. Neste sentido, uma EH será uma espiritualidade
macro-ecumênica, ou seja, capaz de diálogo interno com todas as
tradições espirituais.
Mas não implica
necessariamente que seja religiosa. Pode-se ser holista e praticante de
alguma das diferentes religiões históricas. Mas não necessariamente.
Podemos ser ateus e agnósticos e ainda assim sermos pessoas
“espirituais”. Isto seria um tema para desenvolver, mas, em princípio,
achamos que isto deve ser possível.
5.3. Uma EH será,
necessariamente também, uma Espiritualidade de trascendência do ego. O
ego é uma construção social, mas que é internalizada essencialmente
pelos seres humanos. O perigoso é a nossa identificação com o ego.
Nalgumas grandes tradições espirituais há quem fale do “pequeno ego” e
do “grande Ego”.
A virtude fundamental de
uma EH é integrar o pequeno eu (o eu limitado e individal) no Ego
universal (Deus, Todo, Cosmos, Absoluto..., segundo as diversas
concepções).
Mas os egos também podem
ser colectivos (Pátria, Partido, Religião, Género, clube, etc.). Valem
só relativamente, não podem nem devem ser absolutizados.
No momento em que somos
vivencialmente conscientes de que o ego é o conjunto do nosso passado,
uma acumulação de experiências, ideias, sentimentos, etc., então
estaremos preparados/as para não mais “levá-lo ao pé da letra”. O ego é
só uma metáfora que se auto-trascende. É preciso não se atar a uma
metáfora.
5.4. Importante
também na EH é a corporalidade. Isto significa que o corpo também é
Espiritualidade. Neste sentido, actividades como o Hatha-Yoga, o Yoga
psico-físico, são essenciais no sadhana espiritual.
O corpo não é um lastro
a ser evitado ou obviado. Pelo contrário, a EH é a expansão da
corporalidade ao máximo. Trascender até os sentidos considerados
“normais”, para alcançar experiências parapsicológicas. Mas isto não é
um fim em si mesmo. Porque pode-se converter numa projecção do ego, e
então ser um perigoso desvio no caminho espiritual.
O corpo não é só o nosso
corpo físico. É também o corpo social e o corpo cósmico. De alguma
forma, somos o Corpo Cósmico e poderiamos parafrasear o humanismo
clásico dizendo que: “Somos o Cosmos e nada do Cosmos nos pode ser
alheio”
5.5. A EH é,
essencialmente, se assim se pode dizer, presencialista, ou seja, está
concentrada em viver o Aqui-e-Agora, sem esforço nem tensão,
simplesmente em Atenção Permanente. Há uma história oriental também
neste sentido:
“Após
os seus dez anos de estágio, Tenno fez uma visita ao Mestre Tan-In.
Era
um dia chuvoso; foi de tamancos e guarda-chuva. Logo que entrou, o
Mestre perguntou-lhe: Os tamancos ficaram lá fora...? Diz-me, então, se
os deixaste à esquerda ou à direita do guarda-chuva.
Tenno
ficou confuso e sem resposta e concluiu que não fora capaz de praticar
sempre, constantemente, uma Atenção Consciente. E decidiu passar com o
Mestre mais dez anos...”
O comentário a esta
história é que “aquele que está sempre atento e consciente, totalmente
presente a cada momento da vida, esse é o Mestre!”
(5).
Noutras palavras, a
pessoa espiritual é aquela que vive o seu dia-a-dia com intensidade,
como se fosse o último dia da sua vida. Está atenta ao que sucede à sua
volta, mas também é consciente dos seus próprios pensamentos,
sentimentos e emoções, dos seus próprios sentidos. Vive o Presente
Eterno, ou a Eternidade do momento presente. Assim falaria alguém
agnóstico ou ateu. Um cristão falaria de viver a Presença de Deus em
cada momento e acontecimento. Mas, qualquer que seja a perspectiva,
ambas vão dar no mesmo.
A ideia é viver o céu na
terra, o nirvana no samsara, o Macro no micro, “o lótus em fundo
lamacento”. Não de escapar para um céu mais além, mas para viver o mais
além no mais aquém. É este o repto da verdadeira Espiritualidade.
Um provérbio zen dizia:
antes de estudar o zen, a montanha era montanha e o vale era vale;
depois que comecei a estudar zen, a montanha deixou de ser montanha e o
vale deixou de ser vale; quando o satori (iluminação) chegou, a montanha
voltou a ser montanha e o vale voltou a ser vale.
Só quem teve esta
vivência pode entender isto. “O que fala não sabe, o que sabe não fala”,
dizia Lao-tse no Tao te King (Daodejing, LVI)
(6).
5.6. A EH
resulta, por isso, tremendamente vivencial.
Vivencial contrapõe-se
aqui a teórico, intelectual. É algo próprio da Vida, algo que se impõe
por si mesmo, pela “lógica das coisas”, ou melhor, pelo “ritmo das
coisas”, como diria o taoísmo.
Sem prática quotidiana
não há Espiritualidade, há Teoria da Espiritualidade. Também é boa a
literatura espiritual, porque anima e tira dúvidas, mas vale mais dez
minutos de prática de meditação para captar um pouco do que é realmente
Espiritualidade...
‘Vivencial’ é algo do
quotidiano. Contrapõe-se também a experiencial, algo situado no
espaço-tempo, acumulação de experiências, acumulação de Passado. É
preciso morrer ao Passado, para viver no Presente. Não é uma experiência
mais, como a de alegria, ou tristeza, ou mágoa, ou esperança. É
simplesmente estar, Ser. Não se programa. Acontece. Mas podemos
prepararnos para que isso suceda. Prepararnos é limpar “os vidros sujos
da janela, que não deixam entrar a Luz”, como escrevem as e os místicos
de tradição cristã. Limpar os nossos apegos (a Abgeschiendenheit de que
falava o Mestre Eckhart e o detachment dos budistas).
5.7. Assim, a EH
resulta totalmente contemplativa. Não no sentido relativo, de opor
contemplação a acção, que seria outro dualismo perverso. É absolutamente
contemplativa.
Mas o que significa
isto? Isto significa que capta o ritmo das coisas, o Espírito que fala e
age na história e na biografia. Que escuta o Silêncio, valha o paradoxo.
Porque só no e desde o Silêncio é possível compreender a Vida mesma.
Neste sentido é equivalente do não-agir (wu-wei) dos sábios taoístas. O
não-agir é a suprema acção, aquela que age sem procurar agir. Ou melhor,
é a acção espontânea, aquela que surge de dentro para fora, da nossa
originariedade, da nossa autenticidade.
Neste sentido, toda e
todo espiritual são contemplativos/as, ainda que estejam no meio do
tráfego contínuo da vida (“o olho do furacão”). O Karma-Yoga indiano
ajuda-nos também muito bem a viver esta perspectiva. O Karma-Yoga é o
Yoga da acção, a união com o Absoluto, com o Divino, através da acção de
cada dia.
Para isso é
preciso ter em conta dois princípios:
(1) O Espírito é o verdadeiro Agente
(2) Devemos estar des-apegados dos frutos das nossas acções.
O que é que significa em
concreto isto?
(1) Significa que é Ele/Ela quem actua preferentemente. Nós somos só
os instrumentos (bons ou maus) da sua Acção. Por isso é bom
des-apegarnos das nossas próprias ideias, métodos, objectivos (o
nosso ego), para saber escutar as iniciativas do Espírito. Isto não
quer dizer que não pensemos, deixemos de ter juízo crítico das
coisas, ou que não formulemos objectivos. Mas o fundamental é
subordiná-los à Acção do Único Agente, o Espírito. Deixemos que seja
Ele/Ela quem escreva a História... com a nossa colaboração, claro.
(2) Para isso devemos agir, mas des-apegados/as até dos frutos
das nossas acções. Como intervem na História uma multiplicidade de
causas, a objectividade das nossas acções escapam das nossas
intencionalidades iniciais. Assim, pode acontecer que uma acção que
realizamos com boa intencionalidade e que até é objectivamente boa,
possa tornar-se inoperante ou até voltar-se contra nós, ou ser
mal-interpretada e fonte de posteriores conflictos. Por conseguinte,
a actitude mental correcta de quem pratica Karma-Yoga é não ficarmos
atados, dependentes, escravos do êxito ou não das nossas acções.
Façamos a acção por ela mesma, pelo seu valor intrínseco, e não pelo
seu reconhecimento social. A alegria de quem pratica Karma-Yoga é
fazer a acção que devia ter feito, no momento oportuno, alegrar-se
com o valor intrínseco da própria acção, e des-apegar-se do
reconhecimento exterior, ou até do seu resultado.
É preciso então muita
liberdade interior e determinação para levar avante estes dois
princípios do Karma-Yoga, o Yoga da Acção e do Dever. Tudo isto se
inscreve perfeitamente dentro de uma Espiritualidade Holística.
5.8. Finalmente,
ainda que não exaustivamente, pois haveria outras características mais,
a EH é uma Espiritualidade da Solidariedade.
Não basta a libertação
interior. É preciso também a libertação exterior, económica, social,
política e cultural. É este um ponto, em grande parte, novo, na agenda
das místicas do último século e do presente. A/o santo de hoje deverão
ser também “santas e santos políticos”. Ou seja, preocupados,
misericordiosa ou compassiva-mente, pelo sofrimento alheio dos seres
humanos e do resto da Natureza, na medida em que são provocados por
determinadas relações sociais.
Para isso, o místico/a
do século XXI, deve ter também uma formação técnica em ciências humanas
e sociais, ou, em seu defeito, uma sensibilidade aguçada para os
sofrimento alheio e a procura de soluções alternativas. Os poderes
dominantes usam o engano da “alternativa única”, de dizer que utilizam a
única alternativa racional possível, que, por exemplo, estão a seguir os
ditados “da” Economia ou “da” Política, sem dizerem que essa é uma
determinada Economia e Política, e que pode haver outras, sem dúvida
mais solidárias.
Assim, uma
Espiritualidade Holística é uma Espiritualidade que promove desde dentro
para fora, com enorme solidariedade por tudo o que existe, novos modelos
de organização económica, social, política e cultural que levem a uma
justiça, paz e harmonia totais, e não só ao benefício de alguns
privilegiados ou capas sociais dominantes.
E, mais do que
solidariedade, a EH falará de identificação. Identificação com as e os
mais pobres e oprimidos. É colocar-se no posto, na pele deles e delas, e
sentir como próprias as agressões em contra da Humanidade e do Resto da
Natureza.
Neste sentido, o Advaîta
Vedānta indiano dá-nos umas boas pistas de compreensão. A ideia central
desta filosofia-espiritualidade é da unidade de tudo. O seu principal
filósofo foi Shankara (aproximadamente, entre 788 e 820 d.C.), ainda que
houve outros formuladores, como Rāmānuja (aproximadamente, s. XII d.C.),
de fundo mais teísta.
Para Shankara, só o
Absoluto, Brahman, é realmente existente, pois é o Único que Permanece.
Tudo o resto é ilusão, maya, no sentido, em que não é permanente.
Brahman (ou Atman, o Espírito) é unidade pura. A multiplicidade das
almas e do mundo são aparência. Só o sábio compreende que esta aparente
multiplicidade (que é própria do conhecimento relativo) não é, no fundo,
senão uma expressão do Único Realmente Existente, que é Brahman. Assim,
este conhecimento vivencial, mais do que intelectual, é o verdadeiro
conhecimento, o conhecimento absoluto, aquele que verdadeiramente
liberta.
Pois bem, sem nos
atarmos totalmente ao modelo ontológico do Advaîta Vedānta, mas
inspirando-nos nele, poderemos, com a sua ajuda, interpretar de maneira
profunda, a conhecida passagem evangélica da parábola do Bom Samaritano
(Lc 10, 29-37).
Com efeito, a questão
não é só que o Samaritano enternece-se, ou é movido a compaixão, pela
situação do judeu assaltado e caído meio-morto ao lado do seu caminho.
Não é só que o ajuda paternalísticamente, quando o normal seria, dado o
ódio/desprezo étnico mútuos, e dada a incerteza da situação (podia ser
uma armadilha para ser assaltado ele próprio por bandidos, tão frequente
isto naqueles dias em Israel), que se fosse embora, escapando quanto
antes desta situação incómoda e perigosa. Esta imagem ainda é própria de
uma visão superficial e dualista (“eu me compadeço de outro,
coitado!”).
Mas, desde o ponto de
vista de uma EH, eu sou o outro caído. Identifico-me com ele, porque
ambos somos o mesmo. Sinto o que lhe aconteceu a ele, como se mo
tivessem feito a mim próprio. Eu sou ele. Ele é eu. Somos uma unidade.
Por isso, ajudo-me a mim próprio, ajudando o outro. E vice-versa. O
sofrimento dele é o meu. E não posso soportá-lo! Levantando-o e tratando
dele, eu me ajudo a mim próprio.
(Entre parêntesis, aqui
estaria uma boa fundamentação também para qualquer trabalho profundo de
solidariedade ecológica: “Eu sou a Natureza: o que lhe fazem a ela,
fazem-me a mim próprio!”).
Esta ideia da unidade de
tudo, e, portanto, da identificação com o Cosmos e os seus sofrimentos,
especialmente dos mais pobres e oprimidos, é, sem dúvida, a aposta mais
radical da Espiritualidade Holística a nível social. |