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A quem servem as evocações? Em certas
alturas, a nós próprios. Talvez a um que outro, recheado de minutos de
dúvida sobre a face da sociedade. A gentes projectadas num futuro incerto,
possivelmente, viajando entre recordações e utopias. Entre os rochedos da
memória provável.
A certas horas, rodamos em torno das
recordações como um lobo em volta da presa. É a nossa própria carne que,
como num espelho, se faz significado, matéria afastada que pouco a pouco se
ilumina. Se para se escrever uma página, como referia Rilke no seu “Malte
Laurids Brigge”, é preciso a frequentação de muitas ruas, muitos rostos,
funerais e nascimentos, deambulações ao acaso e a cor quotidiana da vida e
da morte nos olhos de nasciturnos, grávidas, simples seres solares e lunares
que subitamente ficam presos à rota que vai do princípio ao fim – é preciso
igualmente a decantação da memória para que ao termo, no cadinho que são os
nossos olhos brilhando na obscuridade, num quarto vazio, a pouco e pouco as
sementes auríferas se separem das escórias e palpitem, ainda que nuas e
frágeis, ainda que em solidão singularmente solene. Crê-se que o futuro nos
poderá ver como num espelho iluminado, devolvidos à nossa verdadeira imagem;
mas a matéria do futuro é incerta, vaga, na sua superfície criam-se como que
buracos negros que não é possível preencher: ainda estão e estarão por
muitos anos, de pé, as aparelhagens pseudo-sociais, constrangedoras e
inúteis, para desequilibradamente acantonarem neste local, naqueloutro, em
outro ainda, as verdadeiras faces dos que, na sua passagem pela Vida,
criaram mundos de liberdade que a “realidade societária”, informe e espúria,
não quer consentir. |
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Dias depois, entrei no “Facha”; o stand do meu
padrinho ficava mesmo em frente, por baixo da “Cegrel” e em direcção ao
“Rossio” e era o Café que me ficava mais à mão para os reconfortantes
amendoins, rebuçados escapados à catástrofe que costumavam ser as
finanças adolescentes… Lembro-me que numa mesa perto da porta um
indivíduo de fato azulado, um pouco inclinado sobre o tampo, se
entregava a qualquer actividade pouco usual. Quando tornei a passar o
sujeito acendia um cigarro; o busto, erecto, deixava entrever uma folha
de papel. Soprou o fumo, tirando com a mão esquerda um pedacito de
tabaco que se colara nos lábios; nessa altura, o empregado perguntou:
“Sr. D’Assumpção, quer em copo ou em chávena?” Referia-se à “bica”;
naquela altura havia pessoas que preferiam bebê-la em recipientes de
vidro e não na habitual chávena branca, de loiça; hábito que se radicava
na aprendizagem de que (segundo constava) os micróbios frequentavam
menos os primeiros…
Na rua, pensei: “Este é que é o tal da mota…”. Mas o
que me ficara nos olhos, pelo traçado inusual, fôra o desenho. Onde se
encontrará hoje, depois de por um momento se ter cruzado com o garoto
que eu era então?
Quando cheguei ao “Stand” – (naqueles anos, como se
sabe, tudo tem um halo de mistério, aliás a verdadeira face do mundo;
depois perde-se pouco a pouco a capacidade de nos maravilharmos) – na
ocasião propícia disse a meu Pai que vira o sujeito da mota no “Facha”,
a desenhar. Ele retorquiu que o filho do Sr. Rosiel tinha estado lá
fora, parece que em França, fazia quadros, mas tinha estado doente ou
coisa que o valha. “Tem estado agora cá, não sei se para trabalhar com o
pai…”, concluiu.
O Sr. Rosiel conhecia eu bem (viria a conhecê-lo
bastante melhor, mantendo mesmo com ele largas conversas iniciadas no
estabelecimento de electrodomésticos “Custódio Silva”, pela noitinha,
enquanto – umas vezes por outras – um que outro cívico, obedecendo a
ordens, fingia que olhava os aparelhos expostos na montra, vigiando a
bem da Nação os perigosos dois-ou-três subversivos que ali,
mefistofelicamente, trocavam opiniões sobre gente tão perigosa como
Faulkner, Aquilino, Tolstoi, Van Gogh…) . Como alguns se recordarão,
tinha um “atelier” de fotografia à esquina por cima da loja “Hermínio
Castro”; era ele que me plasmava em retratos tipo passe para diversas
utilizações: para tias devotadas e madrinhas amantíssimas, com um
xi-coração repenicado; para as cadernetas da Escola; para os usos e
costumes de molduras sobre as cómodas, depois excursionando por feéricos
álbuns, hoje envoltos em nostalgia, onde os primos, cunhados, avós e
tios nos contemplam de juntura com faces de amigos que já não sabemos
bem quem sejam.
Certo dia, nessa loja, vi encostada à parede uma
pintura onde os azuis e os vermelhos, os rosas e os verdes-maçã criavam
uma estranha sinfonia. “É do meu filho…” respondeu o Sr. Rosiel à
pergunta que timidamente lhe fizera. “Gostas? Vê lá tu que reparaste!”.
Ficara contente. Era aliás uma pessoa extremamente atenciosa, cuja
bonomia recordo por entre outras aparências de depois, sempre com o seu
cigarrinho que nervosamente chupava com todo o ímpeto de velho fumador.
De fato escuro, magro, tinha semelhanças com o filho. Mais tarde,
conheceria o outro filho – dar-me-ia um pouco também com ele – este
sobre o fornido de carnes, só tendo em comum talvez o olhar agudo. Como
era fotógrafo, encontrava-se comigo frequentemente em eventos que eu ia
cobrir jornalisticamente como redactor dum velho periódico local.
Mas voltemos a D’Assumpção. Tanto quanto o permite o
rodopiar das palavras, ora aqui ora ali.
Tempos mais tarde, entrei na época do ping-pong e do
bilhar. Depois das aulas, a dadas horas, frequentavam-se as salas da
“Mocidade Portuguesa” (onde os preços eram mais em conta), do “Central”,
a sala traseira do “Facha”, o salão do Clube de Futebol do Alentejo, da
FNAT (onde de noite, às vezes, havia uns teatros e se podia ver
televisão), do “Alentejano” e do “Plátano”; quando estes estavam
ocupados ia-se também à sala do “Estrela”, na altura num primeiro andar
frente à Casa Umbelino, mas era lugar acanhado onde os tacos batiam por
vezes na parede; o “Plátano” da época era também frequentado por
partidários do dominó, da bisca lambida… Na parede, enquanto
efectuávamos as carambolas, os efeitos, um que outro pique mais
desenvolto e promissor, um quadro bastante grande servia para
descansarmos o olhar vitorioso ou derrotado: o célebre quadro de
D’Assumpção que, segundo ouvi relatar, seria depois vendido pelo
proprietário a uma galeria do Porto, com bom e legítimo proveito.
Na minha recordação o quadro aparece-me enevoado: sei
que havia um horizonte, árvores, - mas o todo da obra desapareceu-me
para reinos inalcançáveis. E quantas vezes o contemplei, umas vezes
apreciando-o em miradas sucessivas, outras num relance, assoberbado
pelas excessivas carambolas do adversário! Mas o mesmo sucede com
rostos, acontecimentos e coisas que connosco se cruzam na nossa
navegação através do tempo, uma vez que as sedimentações se dão
incontrolavelmente, por uma mecânica subtil que ora nos surpreende ora
nos sufoca – se sabemos conservar o nosso coração de crianças.
Mais tarde, já adulto, soube de D’Assumpção de
maneira diferente: algumas vezes falei dele com Herberto Hélder no
“Monte Carlo”, nos meus tempos de tertúlia lisboeta logo ao voltar da
Guiné, depois de com outro antigo companheiro ter entrado em contacto
com a gente do grupo de revista “Grifo”; algumas vezes escrevi sobre
ele, sobre a sua pintura; certo dia, como que por acaso, soube da sua
morte – sobre a qual não me vou debruçar; tomei a iniciativa de expor
quadros dele, integrados numa colectiva em que além de obras diversas de
autores de Portalegre havia também serigrafias de Mário de Oliveira e
óleos de Cesariny (a “Geração Sibilina”, que pertence hoje ao acervo do
Museu local, por minha decisão, pois encaminhei para ali os quadros que
o Mário oferecera a Portalegre, ficando ao meu alvedrio a entidade que
os devia receber – secção cultural do Clube de Futebol do Alentejo?
Museu Municipal?
Optei por este último, por me parecer melhor
apetrechado para os expôr. E assim foi, com efeito: três anos depois já
lá os tinha nas paredes, assim como os outros… Foi a última notícia que
ao meu emprego dessa época me veio dar o Manuel Mourato de boa memória).
Aqueles quadros, hoje patentes no Museu, estão lá por
uma razão: fotografados por Joaquim Ceia Trindade (A.J.Silverberg) por
minha solicitação, as fotos foram remetidas ao marchand João Pinto de
Figueiredo, que por intermédio de Mário Cesariny eu prevenira de que
existiam; embora ele não estivesse, na altura, interessado na sua
aquisição, sabia do eventual interesse de um apreciador do Porto;
perguntou-me por telefone se os quadros estavam assinados. Eu não vira
assinatura (saberia depois, pelo seu cunhado Sr. Valente, também da
minha lidação, que o estavam nas costas, que as molduras interditavam) e
assim lho disse, embora de acordo com o mesmo Valente um perito, que os
analisara, atestasse que eram obras de D’Assumpção sem qualquer dúvida.
Devido a isso – o que é compreensível nestes negócios – Pinto de
Figueiredo declinou mais interesse. E, assim, foram posteriormente
adquiridos pelo Museu local por um preço bastante razoável (preço de
conterrâneo); em 1981, na exposição “Três Poetas do Surrealismo – A. M.
Lisboa, M. H. Leiria e Pedro Oom”, era um desenho aguarelado de
D’Assumpção que constituía a face do convite endereçado pela Biblioteca
Nacional, entidade que a patenteava; e na mostra de 1984 “Surrealismo e
Arte Fantástica”, organizada por Cesariny e C.Martins com a minha
colaboração (infelizmente de longe e vendo com certa angústia o quanto
ficaram assoberbados por tarefas inúmeras) no Teatro Ibérico e na
Sociedade Nacional de Belas Artes, outro desenho de D’Assumpção aparecia
no catálogo-livro em jeito de homenagem, sendo igualmente a partir de um
óleo seu que o cartaz e o desdobrável foram iluminados.
Entre uma e outra idade houve contactos, reflexões,
momentos e olhares que a escrita memorialista não atinge: pertencem ao
céu e ao inferno do poeta, daquele que evoca. São imarcescíveis e
impossíveis de fixar. A sua geografia é interior, pertence a lugares
inabordáveis.
Mais terra a terra, saudavelmente perversa e envolta
em roupagens quotidianas, aqui fica uma pergunta com que termino estas
breves e leves, difusas recordações: como é possível que depois de tanto
tempo após o seu falecimento, tendo o Pintor atingido tal notoriedade
pública (ele que sempre dispôs da estatura que lhe era própria, mas que
foi solapada num gesto em que a terra portalegrense, ainda controlada
por medíocres e onzeneiros sem perfil, segue sendo fértil) não se tenha
ainda efectuado em Portalegre uma retrospectiva ampla, séria e
fundamentada de D’Assumpção? Como é possível que os seus conterrâneos
continuem afastados da contemplação conveniente da Obra de um dos mais
originais e suscitadores pintores modernos lusitanos?
Aqui fica, em terreno vago, a pergunta. E o seu eco
gostaria que se projectasse, justa e acusadoramente, além dos rochedos
que o proporcionam, rochedos que não serão para sempre as fragas da
Serra da Penha em que alguns querem encerrar as consciências livres. |