|
Mas se esta poesia nos remete para os princípios
formais claros, “ clássicos “, com todo o rigor que lhe é inerente, já
no que diz respeito à linguagem aqui usada, embora sendo uma linguagem
cuidada, muito cuidada, encontra-se em perfeita disjunção com a forma.
Pois que há de facto entre o exterior, a forma comedida e límpida
(positiva) e o interior, a linguagem violenta (Há a boca pisada de
pedras), brutal, explosiva (Acredito no fogo e nas mãos que o servem
brutais e definitivas como as pedras) de imagens fortes, densas (A
mulher fechou-se no quarto/ com a noite entre as mãos), obsessivas,
bruscas, muitas vezes estranhas, vibrantes (As crianças amanhecem a
prumo) bem como o uso de vocábulos raros (ignívaga, insanes, gárrulos,
esquírolas, múrias, vurmo, coaxial etc.) diremos até barrocos, de
aspectos negativos ( “ Muitas morrerão na longa travessia/ mas nem uma
pedra ascenderá à garganta.”; É poderosa a casa/ curvada sobre a minha
morte. ) uma Disrupção. E nisto podemos dizer que Melícias se encontra,
pesando toda a sua originalidade, próximo do expressionismo alemão. E a
violência das suas imagens fazem-nos muitas das vezes lembrar a estética
da brutalidade clínica de um Gottfried Benn, sobretudo, em “ Morgue. “
Alguns exemplos:
Risco na carne o caminho do relâmpago.
[... ]
Abro o corpo ao último punhal
que o iluminou.
ou:
Adestramos na carne
os estrepes do horror.
e ainda:
E a brutal inflorescência
dos ferros no dorso
e também:
Há uma luz doente sobre a mesa,
um pulmão de pedra no centro.
E eu mordo a própria boca
[... ]
ou:
E onde a febre tange
a esquadria
radicarei a chacina.
Outros exemplos poderíamos aqui apontar. Mas é o próprio Melícias que
testemunha a influência do expressionismo alemão na sua poesia, quando,
numa entrevista concedida ao poeta Valter Hugo Mãe, diz o seguinte:
O expressionismo alemão, por exemplo, foi um movimento que me marcou
profundamente. Ainda hoje marca. Não apenas a nível literário (Gottfried
Benn é dos escritores mais poderosos que já li até hoje) mas também a
nível cinematográfico. Vi pela primeira O gabinete do Dr. Caligari, de
Robert Wiene, há muitos anos atrás, quando frequentei História e
Estética do Cinema.
Podemos igualmente afirmar que a sombra de Herberto Helder se encontra
bastante presente na obra de Jorge Melícias O que é natural, pois grande
parte dos poetas contemporâneos portugueses vêem em Herberto Helder uma
espécie de modelo. E se Melícias não vê em Herberto um modelo, pelo
menos leu-o profundamente. O seguintes versos, do primeiro livro, onde o
corpus poético é mais “ vasto “ do que nos seguintes, demonstram-nos bem
isso:
Em redor da cama as mulheres
tomaram já o seu lugar
e o silêncio da casa está todo nos ombros.
Eu estou de fora, à porta do quarto,
E penso que as galerias são longas
E correm na direcção do sangue.
Em redor da cama as mulheres
bordam a morte devagar
E os homens fumam fechados sobre si
como navalhas
Todavia Jorge Melícias , como poeta inteligente que é, ao contrário de
muitos outros, embora usando um género de imagética herbertiana [ que um
outro poeta ao falar de Herberto chamava de obscura – claridade ]
conseguiu fazer dessa influência algo de novo e original. E isto
consegue-o ele , a nosso ver, para além de se apoiar no expressionismo,
sobretudo, pela redução do discurso, ou seja, pelo uso de uma linguagem
concisa e sintética, que é precisamente o oposto do largo e vasto
discurso de Herberto Helder, encontrando assim a sua própria voz e
libertando-se , até certo ponto, da sombra do Herberto.
Mais atrás dizíamos existir na poesia de Jorge Melícias uma disrupção.
Disrupção? Mas afinal o que vem a ser isso? Onde fomos buscar este
vocábulo?
Disrupção é precisamente o título do último
livro de Jorge Melícias, editado em 2009, há bem pouco tempo, pela
editora Cosmorama, uma antologia que reúne a sua obra poética de dez
anos e onde se encontra incluído o livro inédito: agma ( 2008 ).
No início desta antologia, deparamos com uma nota
extraída do Grande Dicionário da Língua Portuguesa, Sociedade de Língua
Portuguesa, em que nos é explicitado o significado do vocábulo que dá o
título à obra. Vejamos:
Disrupção: (s.f) Salto de uma faísca entre dois corpos carregados de
electricidade. Diz-se da descarga eléctrica súbita que provoca o
desaparecimento da maior parte da energia acumulada. Acto de romper.
Ora, a nosso ver, este título, este vocábulo, anuncia-nos precisamente o
que devemos esperar desta poesia. Isto é, este título será em si uma
poética. Pois toda a poesia de Jorge Melícias, desde o primeiro livro
até ao último, é o resultado dessa disrupção: por um lado a forma (como
já acima fizemos notar) sempre rigorosa e a linguagem cuidada,
substantiva, lacónica, por outro as imagens fortes, violentas,
estranhas, herméticas, quase surreais, muitas vezes cruéis. É deste
atritoviolento e cruel (que pode ser extensivo, ou seja, que poderá ser
visto igualmente a partir do aspecto dual (dialéctico): mundo exterior
(forma) - mundo interior (eu poético), homem – cosmos, luz – trevas,
feminino – masculino etc. e que, como podemos ler num dos poemas, será
um “ Trabalho de crueldade “.) que o poema desponta, se torna corpo
vivo. Quer dizer a criação ou escrita do poema é um acto violento,
nascido da disjunção, ou seja, atrito, de dois corpos ou pólos
contrários, um exterior outro interior, um negativo outro positivo: uma
rotura, que se dá entre ambos, um “acto de romper “, romper que aqui
também pode ser compreendido como quebrar ou estilhaçar. Já que do
embate violento de dois corpos podem resultar estilhaços. Portanto o
poema, aquilo que o poeta procura atingir, será o resultado desses
estilhaços, de uma realidade estilhaçada à procura da unidade. E isto é
também o que podemos compreender das seguintes palavras, que passamos a
transcrever, e que nos foram dirigidas por escrito pelo próprio poeta:
“ [... ] acredito mais numa totalidade, sim, mas fragmentada,
estilhaçada, nunca completa. “
É igualmente desta rotura, deste acto de romper, estilhaçar, isto é, da
potência destrutivo-construtiva, da sua violência, que a beleza nasce:
Para mim a beleza está, inextrincavelmente, ligada à violência. Uma
violência irrompente, fundadora, tão latente quanto recidiva.
Contudo o estilhaçamento de que temos vindo a falar e que resulta do
atrito violento entre corpos ou objectos, entre o exterior e o
interior,não se perde, graças à exactidão, ao claro rigor da forma e da
linguagem, a este trabalho minucioso, de ourives, entre forma e
linguagem, a esta poderosa construção ( que tem como alicerces a
imolação do eu, a identidade : É poderosa a casa / curvada sobre a minha
morte, pois toda a verdadeira criação poética resulta desta imolação )
em desregramentos extravasantes, bem pelo contrário, ele mantém-se coeso
e uno porquanto:
Atravessa o sangue,
transborda para dentro.
Quer dizer, graças a esta técnica, o equilíbrio entre o sair: “
atravessa o sangue” (fluir, movimento, transformação) e o entrar, “
transborda para dentro” (permanecer, unidade e imobilidade)
estabiliza-se, formando assim um círculo de estilhaços, ou fragmentos,
um movimento fechado em si, como uma espécie de roda de bicicleta, onde
os raios serão os tais estilhaços que, embora sendo estilhaços, são
igualmente parte integrante da unidade, pois que permitem que a roda
exista como um todo, ou seja, unidade: ligação entre o eixo e o aro
periférico, relação entre movimento e imobilidade ( graças ao carácter
estático ( consistência ) desta compósita , a roda pode ser
movimentada.) E se repararmos bem descobriremos igualmente que o aro
periférico e o eixo são, tal como os raios, fragmentos da totalidade,
isto é, sem estas peças (fragmentos) a roda não poderia existir.
E eis um poema que formalmente exemplifica o que acabamos de dizer:
Caminharei entre os homens
com um punção virado ao medo.
As meninges
recrudescendo nas navalhas
como um apostema.
Todo o metal sitiado
pela injunção das ínguas.
Este poema é constituído por três estrofes: duas de dois versos e uma de
três. Se analisarmos melhor a estrutura desta composição, reparamos que
cada uma das estrofes pode ser considerada um fragmento ou estilhaço.
Pois que não há propriamente uma conexão entre elas. A verdade é que
cada uma delas poderia existir por si mesma, isto é, independentemente
umas das outras.
A técnica aqui usada (não só aqui mas em muitos
outros poemas) foi a de um ajuntamento (neste caso tríplice) de três
imagens: o homem que caminha / as meninges nas navalhas/ o metal
sitiado. E embora, se, como já dissemos, à luz da análise descobrimos de
facto que este poema é um poema feito a partir de estilhaços, portanto
um conjunto de fragmentos, um poema estilhaçado, e que cada imagem
poderia existir por si mesma, a verdade é que são precisamente estes
três elementos (o conjunto) que dão a intensidade, força e beleza ao
poema, isto é, coesao, densidade e intensidade tornando-o assim num
corpo uno. Se o poeta tivesse usado cada uma destas estrofes (o que
poderia ter feito), por si mesmas, como pequenos poemas, estes jamais
conseguiriam atingir a maravilhosa densidade ou corporalidade que aqui
se atinge e o leitor ficaria sempre com a impressão de que faltava
alguma coisa. Por este modo o poema, embora tendo uma base fragmentária,
é sentido como uma unidade.
( Nesta poesia o poema não representa algo, mas antes, ele é: este algo,
um corpo autónomo, resultado da linguagem viva, em movimento, que forja
a sua própria realidade.)
Depois de tudo o que dissemos, podemos concluir que é precisamente do
aspecto violento, de uma espécie de dialéctica ou estética do confronto,
do seu acto destrutivo-construtivo, do movimento estilhaçado, que
irrompe a grande força, intensidade, fascinação, peculiaridade e magia
desta poética; poética de uma beleza lancinante, poética de uma
intensidade figurativa, de uma circunferência feita de estilhaços.
É claro que outros aspectos poderiam aqui ser
realçados, porém este é, repetimos, a nosso ver, o aspecto principal,
mais gritante, ou pelo menos o que de imediato, como já no início demos
a entender, a uma primeira leitura (que a nosso ver é o modo mais sólido
de se atingir a essência da poesia) nos salta aos olhos e nos faz vibrar
o espírito e os sentidos.
Para terminarmos , reparamos ainda que no aspecto formal, ou seja, o
corpo do poema, depois do primeiro livro (iniciação ao remorso, 1998) se
tem vindo a tornar cada vez reduzido: a construção formal tornou-se mais
comprimida, lacónica, o poema menos povoado, minimalista. Muitos dos
poemas possuem mesmo uma forma que poderemos chamar lapidar, chegando a
atingir, sobretudo no livro Incŭbus, uma tonalidade aforística. Um
exemplo:
Aquele que mata decifra.
Está sobre o crime
como quem maneja deus.
Já no aspecto linguístico, a intensidade do verbo, perturbante, sempre
violento e extremo é uma constante de toda a obra, no entanto a escolha
de imagens cada vez mais herméticas, bem como de palavras raras, que em
muitos casos nos obrigam a consultar o dicionário e que lembram uma
certa tendência maneirista, tem vindo a acentuar-se , sobretudo, nos
últimos livros . Um exemplo:
As refinarias do medo trabalham o alvidrio.
Até que todo o movimento seja sem aporias.
O sangue por baixo galgando
andaimes,
fazendo da sufusão a sua única eclusa.
Este recurso a vocábulos tão raros e extravagantes (neste caso alvidrio,
aporias, sufusão, eclusa) se provocam, por vezes , um certo nervosismo
no leitor já que o levam a uma interrupção da leitura (o leitor vê-se
obrigado, passo a passo , a consultar o dicionário) são, no entanto,
constituintes imprescindíveis desta linguagem poética, ou seja, sem eles
esta poesia seria muito mais pobre, pois que perderia grande parte da
sua força e originalidade. |