REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2010 | Número 04

 

 

 

Numa conferência proferida por Leal da Câmara na Rua do Século em Lisboa, já após o seu regresso de Paris, onde se exilou antes do advento da República, o mestre explicava a arte de utilizar a terra para as necessidades do homem, o que se cravejava no espírito humano, desde o início de qualquer civilização.

Tudo teria, pois, a ver com a necessidade do fabrico de utensílios onde se pudesse comer e beber e, acima de tudo, com os recipientes em que se conservassem os alimentos indispensáveis à existência de cada um e para outros fins de utilidade, tais como a cobertura dos telhados com telhas, o fabrico de vasos, os mais variados e de formas diversas, potes…, alguidares…, entre outros utensílios. Tudo teria a ver também com o fabrico e o uso a dar a utensílios que permitissem o ciclo dos alimentos: do grão do cereal, por exemplo, que tinha de ser recolhido, para voltar a ser semeado, deitando-se à terra arada e remexida, para o efeito, a melhor parte para desabrochar em espigas, donde voltássemos a retirar grão, a moê-lo, e com a farinha a obter pão de trigo, meado ou terçado, de vários géneros, e papas, indispensáveis, mesmo nos tempos que correm.

DIRECÇÃO  
Maria Estela Guedes  
   
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JOÃO SILVA DE SOUSA

Tomás Júlio Leal da Câmara

Um cartoonista português em terras de França

(1876-1948)

 

                                                   “Uma obra de arte é um canto da criação”
Émile Zola

 
 
 
 
 
 
 

Passando para a caracterização das tipologias de porcelana, o mestre refere-se aos aparelhos de que dispomos hoje, a fim de facilitar a sua produção quer em quantidade quer em qualidade. Fala da distinção entre faiança e porcelana, sendo esta última uma louça translúcida, em quanto que a primeira se nos apresenta opaca e avança para a utilização do esmalte ou do chumbo para lhe dar um revestimento metálico, fornos especiais, os mufles, as tintas muito diversificadas também, finalizando com considerações acerca de Sèvres, Versailles, Flor de Lotus, Sarregemines, Vieux Strasbourg… entre as demais.

Tinha uma perfeita adoração pela nossa e não esquecia nunca os azulejos nacionais uma das maiores riquezas de Portugal: do de tradição islâmica ao Bordaliano (Rafael Bordalo Pinheiro)… a Jorge Barradas: os dos prédios da nossa Lisboa aos Visienses.

Mas não acabou a sua exposição sem referir que tal como os antigos tinham o espírito todo voltado para o comércio, para as trocas e colocação no Exterior dos produtos que fabricavam e trocavam… devíamos, no seu século, já para não nos referirmos aos difíceis anos por que estamos a passar, exportar muito mais do que importar. Lembrava que o grande sacrifício a impor ao povo era passar sem apetrechos e ostentação e permitir a saída dos seus fabricos, mesmo que passar sem eles lhes custasse em trabalho e produção própria esforçada e acrescida. Quer dizer, mestre Leal da Câmara dava igual peso aos produtos alimentares que se obtinham e aos aparelhos ou instrumentos – melhor dizendo – com que eles eram fabricados e transformados, devendo exportar-se de tudo, para onde fosse necessário. Relembra que os meios de transporte modernos, como o comboio, viabilizavam a saída para mercados em Espanha, França e na Europa Central, mas que o mar, o nosso mar de sempre, que havia feito de nós um povo de marinheiros, com o recurso aos nossos barcos, permitia a expansão das vendas e compras de matérias-primas, pelo Atlântico e Mediterrâneo fora.

 
 

 

À esquerda: D. Carlos, in L’ Assiette au Beurre: AU CLOU – Les véritables ressources portugaises (A). Les Voilà!. À direita: D. Carlos em Paris. In L’ Assiette au Beurre, n.º 243, Nov. de 1905 (B)

 

Portugal achava-se numa situação super privilegiada como entreposto entre estes dois mares que nos colocaram, desde sempre, em contacto com o Norte da Europa, a América, o Sul de África, o Oriente e, pelo Mediterrâneo com a Itália, a Grécia, o Norte de África e o Próximo Oriente.

O Estado Novo (1933 em diante) ouviu-o. E até demais, pois, antes de vir a falecer (1948), não poucas as vezes lhe fora pedido que moderasse os ímpetos, pois o País de Carmona e Salazar não captava as suas ideias com a rapidez que ele pretendia, nem no seu todo, porque tudo tinha de ser feito moderadamente. E não fossem os grandes empresários portugueses a quem a celeridade das propostas não causavam medo mas estímulo, ainda hoje não tínhamos referências, se bem que os governos recentes pouca atenção dêem às suas palavras e às de outros do seu Colégio Político que nunca calaram, razão por que ainda actualmente não sejam ouvidos. O enriquecimento do País fazia-se sobretudo à custa das indústrias e das exportações.

 
 
 

À esquerda:Portugal, 1920. In Ilustração Portuguesa. À direita: La Ressurrection de Lazare. La République au Peuple: Lève-toi et Marche!

 

As suas palavras ultrapassaram, desde sempre, a mera teoria. Em 1900, na Feira Internacional de Paris, o Pavilhão Português entregue às suas mãos, ganhava o 1.º Prémio. Na Exposição Internacional do Brasil, em 1923, vencíamos também: um cofre continha a terra a que ele tantas vezes aludira, e que a recebeu de Sagres a Viana do Castelo, de mistura com a exibição de artigos decorativos do Minho ao Algarve também. Em 1927, tomou lugar em Paris a Exposição de Produtos Tropicais, tendo as nossas colónias tido aí um papel de superioridade em comparação com os Países Baixos e a França. Voltou a organizar-se um certame colonial em Paris em 1931, não descurando os meios que fizeram da anterior um dos maiores êxitos de Portugal no Estrangeiro.

     A 30 de Junho de 1916, Richebourg-L´Avoué, uma cidadezinha e uma das primeiras comunas no Pas-de-Calais, em França, fora palco da batalha dos Boar´s Head, parecida com a Batalha de Somme, que teve o seu início um dia depois. Milhares de Ingleses e Portugueses ficaram-se na guerra. Leal da Câmara concebeu aí uma aldeia portuguesa, como uma das saloias que ele bem conhecia e onde morava em Portugal nas Mercês, perto de Sintra (hoje Casa-Museu de Leal da Câmara), e previu a existência de um cemitério que recolhesse os soldados portugueses mortos em batalha e,  entre 1924 e 1938, 1 831 corpos oriundos de diversos cemitérios franceses, Belgas, e da Alemanha, donde vieram prisioneiros de guerra assassinados. Em 1939, era aumentada a sua superfície para 4 300 metros quadrados.

 
 

À esquerda: Casa-Museu Leal da Câmara . À direita: cemitério militar português em Richebourg – foto MPMP. 

 

A feira Internacional de Paris, de 1900, coincidente com os Jogos Olímpicos que, no mesmo ano, tomaram lugar na Cidade das Luzes, ofuscou estes por completo. Teve a Torre Eiffel, inaugurada 11 anos antes, como porta de entrada e seguiu um tanto, embora o superasse, o certame londrino de 1851, em Hyde Park, no Palácio de Cristal, bem como as francesas de 1855, 1867, 1878 e 1889.

    A Exposição Internacional do Brasil, de 1923, onde o Pavilhão organizado por Mestre Leal, tal como todo o Certame de que fez parte como membro do grande Colégio daria ainda, muito possivelmente, azo à idealização do Salão Internacional de Caricatura Godofredo Guedes, no Brasil, recentemente promovido e, que, ao que consta, onde não foi vista uma única charge de Leal da Câmara como referência. Aquela teve lugar em Montparnasse e ainda hoje é recordada pela simbologia de que aí resultou.

     Em 1931, a Exposição Colonial de Paris, no Bosque de Vincènne, vendia para cima de 30 000 bilhetes de acesso e expunha tudo quanto se relacionava com África, Índia, Extremo e Médio Orientes, ou era Inglês, Francês e Português, entre outros. A organização seguiu o estilo da anterior e da de Londres de 1924-25, levando sempre o toque dos membros da organização, em que tomou parte ou fora mesmo organizada por Leal da Câmara que soube, dadas as suas ideias acima referidas, impressionar os feirantes, vendedores, expositores e visitantes.

     Será, no entanto, Paris que abrirá os olhos a Leal da Câmara e lhe desenvolverá o espírito. O facto é que tudo até aqui parecer-nos-á pouco mais do que casual.
 
 

À esquerda: a Barraca da Política . À direita: o acordo com a França.

 

Leal, multifacetado, será um paisagista de modo e técnicas estilizadas e simplificadas; um retratista de traços muito sóbrios; um caricaturista que, pelo contrário, manifesta uma mordente ironia; desenhador de croquis de visão arguta; decorador de amplas concepções e de um inteligente poder de concretização dos seus trabalhos; um jornalista de espírito de arrumação; um pintor, crítico, severo e mordaz, de cor e movimento; um professor de ideias modernas, abertas e de actuações livres… No fundo, um homem de maneiras hábeis, de cérebro arguto e, para além disto, um verdadeiro diplomata, um embaixador do nosso País em Espanha (1898-1900), França (1900-1911; 1913-1915 …) e no Brasil (1922-23).

L´Assiette au Beurre representou, em Paris, a nível internacional, a sua grande oportunidade de demonstrar e evidenciar os seus grandes dotes de originalidade, uma vez que conseguiu ultrapassar os seus antecessores pátrios com novidades de género e evocação. Foi na cidade que conheceu Anatole France e se avistou com muitos seus patrícios, entre eles Aquilino Ribeiro. Bem rodeado do melhor que existia no campo da Literatura e do desenho-charge, Leal continua a criticar a situação portuguesa e alimenta as esperanças dos seus compatriotas que, com as suas críticas ao sistema, mesmo os republicanos por que tanto lutara com Aquilino e outros, não correspondiam nem de perto às expectativas dos mesmos.

 

 

Imagens de L'Assiette au Beurre, D. Carlos (A)   e     D. Carlos (B)

 

 

Entre os diversificados motivos para os seus deboches, contamos com os magnatas, os burgueses, os reis, o clero (gorducho, anafado, comprometedor do intelectualismo), as épocas que se volatilizavam a pouco e pouco: a monarquia e a 1.ª República.

Já em 1907, segue o caminho de Guillaume Apolinaire e entra no atelier de Picasso que já conhecia de Madrid, no Bateau Lavoir, Les Demoiselles d’ Avignon. Leal, de certo modo, vai deixar contagiar-se pela surpresa e modo de representação da realidade matemática do raciocínio e da representação pelo absurdo, propostos pelo pintor espanhol e por Anatole. Quando a deformação de corpos, como a de espíritos, na pintura, no desenho e na escrita, no ridículo das situações, de um Dreyfus, ou de um Jean Valjean…ou a ausência de nitidez revelam o desejo imparável de romper com a representação tradicional, como uma Thaïs anatoliana, bem aproveitada por Massenet e a perspectiva única praticada pela Renascença, Leal é levado a elaborar nova conceituação, como também sucede a Braque e a Dali, na sua ostentação oriental a necessitar de bons, argutos, entendidos e cuidadosos interpretes.

Se, durante certo tempo, a colaboração entre Picasso e Leal foi estreita, as artes de ambos tomariam rumos bem divergentes, impulsionados por preocupações conceituais e a diferentes níveis. E se o renome de Pablo Picasso, já a esse tempo, o eleva à categoria de mito, a arte de Leal em nada ficará a dever à do Espanhol. Henri Matisse simplificou a pintura e, mesmo quando velho, soube imprimir juventude a tudo quanto fez, sem que Leal e aquele se afastassem demasiado: o mesmo poderemos, pois, dizer de Câmara, homem seguro, de opiniões firmes e definitivas sobre tudo quanto o rodeava – as pessoas e a vida em geral; ao lado de Van Gogh, Gauguin, Cézanne e ainda de Picasso, Leal como Matisse imprimiu grande luminosidade nos seus quadros, alegria nas cores, realismo nas cenas, e uma boa dose de optimismo. Era o que ele mesmo sentia pela República. Embora fosse grande a desilusão que ia experimentando com Aquilino, ambos olhavam a França e preparavam os seus espíritos para um Português de um Portugal uns anos mais tarde, quando largasse as muletas e começasse a caminhar como Lázaro, como ordenava a velha República Francesa, como ele a desenha para o Jornal. 

 
   Lázaro
 

 

Como Picasso, já nos seus tempos republicanos, Leal da Câmara, pelo menos, sem que a pudesse alterar, pintou a realidade do seu País quer caricaturalmente, fosse em visões simbólicas ou reais impressionistas e interpretativas. Pintou o quotidiano. Como Pablo, ele era um homem superiormente inteligente; distinto deste, conservou e dilatou inclusive uma boa cultura geral acima da média dos do seu tempo, em qualquer dos países em que esteve. Aquilino também havia aprendido grego para traduzir Xenofonte. Leal apreendeu o cheiro, a cor, as expressões, os falares e, com tudo isto, compôs D. Carlos, Humberto de Itália, o saloio do Muro do Derrete da Feira das Mercês, Bernardino Machado e Eça de Queirós, Josephine Baker e outros cançonetistas parisienses, Cleo de Merode, uma dançarina francesa da Belle Époque, e os soberanos nos seus frisos… deu poesia e história aos Arlequins e a Columbina, à Lua, sua confidente.                                   

 

 

Ilustração Portuguesa

 

 

Leal, como Picasso e todos os dos seus círculos de amigos e companheiros de trabalho, era republicano convicto e fervoroso. Via-se aqui que os ideais, naqueles tempos, em que os intelectuais se não dividiam em dúzias de partidos, tal como as profissões que desenvolviam complementarmente, faziam-nos aproximar. Convenções para o lado, diferenças para trás das costas, mostram nos seus trabalhos tão apelativos modernas ideias, consideradas como “avançadas” para o seu tempo, dado que buscavam e baseavam-se em novas formas de expressão de arte, pondo de parte os velhos e caducos processos de pintura.

 

 

Para o Leal de quem falámos, fácil é entender que a arte antiga apenas serviria como ponto de partida para criações totalmente a renovar, a modificar na íntegra e que exprimissem visões pessoais das coisas, incluindo obviamente, o ser humano. Como Aquilino Ribeiro, também o nosso pintor e caricaturista prendia quebrar amarras, partir as Lápides como o nosso novelista propôs no seu livro e substituí-las por outras.

Os cânones da sua actividade artística são bem claros. Nas suas mostras bem pessoais, não retrata nobres, mas trabalhadores das nossas aldeias; não pinta palácios, desenha, outrossim, habitações comuns; não envaidece o País com a sua monarquia, mas arrasta-a para a morte, para o ridículo, fazendo erguer o Zé Povinho bordaliano e pondo-o a trabalhar, numa Terra que tal como ele se tinham de erguer, por fim! 

Numa carta a alguém que trata apenas por “Meu caro Senhor”, Leal da Câmara recusa-se a trabalhar para tudo quanto não tenha um significado coerente e diz: 

                    “Meu caro Senhor,           

                    Se a publicação para a qual me pede  a colaboração fosse um

                    jornal de puro combate, destinado a dar lambada nessa meia

                    dúzia de sujeitos que envenenam Portugal política, literária e

                    artisticamente, seria com o maior prazer e o mais incondicio-

                    nal possível que eu vos daria a minha cooperação – pelo enor

                    me desejo que sempre tive e que tenho ainda de ver feliz esse

                    pobre e digno País”. 

É esta a resposta que lhe envia de Clamart (Seine), a 4 de Outubro de 1910. A sua permanência na Europa, em épocas tão convulsivas, será suficiente para o deixar definitivamente comprometido com a problemática do homem. Não aquele homem abstracto, tal como o idealizara o pensamento liberal do oitocentismo, mas o homem concreto, definido por condições muito específicas, através da História do seu País que tanto amou e chorou.

 

  BIBLIOGRAFIA
 

 

CÂMARA, Leal da, Miren Ustedes (Portugal visto de Espanha), ed. Livraria Chardon-Lello & Irmão, Porto, 1917.

Cartas – Correspondência manuscrita existente no Arquivo e Biblioteca da Casa-Museu de Leal da Câmara, Rinchoa-Mercês.

NASCIMENTO, Augusto, A Individualidade Multiforme de Leal da Câmara (tentativa manuscrita de uma biografia relativa ao pintor), a que faltam as pp. 45, 67-69, Lisboa, 1947 (in Arquivo e Biblioteca da Casa-Museu de Leal da Câmara, Rinchoa/Mercês).

RIBEIRO, Aquilino, Leal da Câmara: Vida e Obra, in Col. Obras Completas, ed. Livraria Bertrand, Amadora, Set., 1975.

SANTOS, Vítor Marques dos, Leal da Câmara. Um caso de caricatura, ed. dos Serviços Culturais da Câmara Municipal de Sintra, Sintra, CM., 1982.

SOUSA, João Silva de, Leal da Câmara. Um Artista Contemporâneo, Lisboa, Livros Horizonte, 1984.

SOUSA, João Silva de, Aquilino e Anatole: Espíritos sem Tempo, Viseu, AVIS – Associação para o debate de ideias e concretizações culturais de Viseu e AMIGOS DE AQUILINO, 2008.

 

 

João Silva de Sousa (Portugal)
Professor do Departamento de História da FCSH da Universidade Nova de Lisboa, Comissário-Geral das Comemorações dos 900 Anos do Nascimento de D. Afonso Henriques em Viseu, Académico Correspondente da Academia Portuguesa da História.

 

 

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