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Durante todo este tempo
fiquei confinado a uma espécie de escritório idealizado, onde
confortavelmente sentado na minha poltrona, vou seguindo o que se vai
passando no mundo, sobretudo no meu país. De vez em quando, recebo a
visita de Fernando Pessoa, que nunca pensei conhecer pessoalmente, ou
melhor, espiritualmente, quero eu dizer. É uma alma inquieta, que embora
passe a maior parte do tempo nas imediações de Lisboa, aparece por cá de
vez em quando. Contou-me que visitou há pouco a África do Sul, mas ficou
de tal modo transtornado com a violência que por lá se respira e com as
feridas do apartheid, que prefere, ficar por aqui, no concerne ao
continente africano. É uma boa companhia, e com ele sentimo-nos no meio
de uma multidão. Vem quase sempre com o Álvaro de Campos, o Ricardo Reis
e o outro... aquele, que fala muito no rio da aldeia dele e diz que tem
«o olhar nítido como um girassol»... Ah, claro, o Alberto Caeiro. Além
disso, quando se sente bem disposto, ainda se subdivide nas outras
setenta e tal personalidades literárias, como é o caso do Alexander
Search e de todos os outros... Aí, faz-se uma verdadeira festa e
embriagamo-nos (metaforicamente, claro) de ambrósia. Sim, porque aqui
não há sequer vestígios de qualquer gota de absinto. Outras vezes é o
Ricardo Reis que cá vem com a sua Lídia. Aquilo nunca passará de um amor
platónico, pois ele acha sempre que nem sequer vale a pena enlaçarem as
mãos...
Nunca me senti entediado,
pois é como se estivesse diante de um ecrã gigante, onde o mundo real e
actual se projecta. Disponho ainda de um aparelho redondo com vários
botões, correspondendo cada um deles a um país distinto. Neste caso,
interessa-me, obviamente os designados pelas letras P (onde vou
acompanhando todos os eventos ocorridos em Portugal e o A (através do
qual matava saudades da cálida pátria do exílio, a Argélia). No entanto,
de vez em quando fazia um zapping pelo resto do mundo. Assim, assisti,
por exemplo à queda do muro de Berlim no dia 9 de Novembro de 1989. Que
emocionante o desmoronar de todo aquele cimento de opressão! Foi um dos
acontecimentos mais notáveis a que assisti. Dois povos finalmente
irmanados, sem peias nem barreiras ideológicas que lhes travem o olhar,
nem o agir.
O que ultimamente mais me
chocou foram os trágicos acontecimentos do 11 de Setembro de 2001 em
Nova York. Geralmente, quando há guerras ou acontecimentos muito
violentos mudo de país. Já não tenho alento, nem paciência para observar
a violência e a bestialidade humana. Aliás, sempre fui um hedonista, um
amante da beleza e da tranquilidade. Por isso, vivi no tempo certo.
Antes os turbilhões da recém-nascida república às ameaças terroristas
que pairam sobre o mundo, às guerras mascaradas, onde os interesses
económicos se disfarçam de causas humanitárias, para participar nesse
baile gigantesco e dramático que é o mundo.
Do meu país, vibrei com a
revolução dos cravos a 25 de Abril de 1974, até cantei a «Grândola Vila
morena», mas ao som de uma harpa, pois é o único instrumento musical a
que temos acesso por cá. Senti orgulho em ter vindo ao mundo no seio de
um povo que até na revolução pratica a paz. No entanto, não me agradaram
alguns acontecimentos posteriores. Os problemas sociais são
preocupantes. As teias da droga cada vez vão capturando mais jovens,
como se as produzissem insaciáveis aranhas gigantescas; a elas aliam-se
o desemprego, os problemas ambientais, a corrupção. Além disso, a apatia
social e o culto do pessimismo (des)compõem mais o cenário. Mas enfim,
não são do meu tempo, não passo de um mero e passivo espectador.
O tempo já não passa por
mim. Sou eu que vou passando tranquilamente por ele.
A adesão à Comunidade
Económica Europeia gerou cascatas de oportunidades em termos de
desenvolvimento, embora nem sempre tenham sido bem aproveitadas.
É incrível, como tudo mudou! Apetece-me às vezes
recordar. Evocar a vida passada para lhe traçar as linhas de esplendor
após a morte. Foram doces e suaves os últimos tempos em Bougie, no
quarto número 13 do Hotel l´Étoile, que ocupei desde 1931, data da sua
chegada. Até o nome parecia pressagístico. Fora guiado por essa boa
estrela que extraíra o néctar da vida. Carpe diem.
Despertava ainda noite cerrada, muito antes do sol
pensar em acordar para iluminar a terra. Gostava de percorrer as ruas
àquela hora dos solitários e dos boémios. Adquirira hábitos insólitos:
deitava-me cedo e depois levanta-me de madrugada para assistir à
chegada do dia, empurrando a noite com dedos de veludo.
Preparava sempre a minha toilette minuciosamente, a
lembrar os tempos de dandy. E pensar que até havia sido Presidente da
República!
Recordo com um sorriso
irónico aquele seis de Agosto de 1923. A República era então uma criança
de colo, os Presidentes e Ministros sucediam-se numa dança frenética,
devido à instabilidade que reinava no país a todos os níveis. Uma luta
renhida aquela! Só ao fim do terceiro escrutínio se soube o resultado.
Foi grande a sua surpresa ao constatar que havia vencido os outros
candidatos com cento e vinte e um votos.
Não, o poder nunca me
subiu à cabeça, nunca se apoderou de mim, não senti saudades desses
remotos tempos.
Efémero foi o meu
mandato, pois vivia-se um clima de pura efervescência política, social e
militar...Por isso, perante a desunião e a corrupção das forças
republicanas, consciente da minha impotência, resignei do mandato em 11
de Dezembro de 1925. Mas digo-te, por vezes, vejo situações tão caóticas
que me recordam os tempos conturbados da Presidência da República.
Enfim, nessa altura, o preço dos combustíveis não subia diariamente, os
tesouros das nossas serras não eram destruídos através de incêndios
criminosos, o desemprego não alastrava como uma praga. Outra epidemia
grassava e se mantém ainda: a mediocridade, cultivada com afinco, os
compadrios e a corrupção.
O dia glorioso foi o de
17 de Dezembro, quando embarquei no paquete grego Zeus e disse para
sempre adeus à pátria natal que lá ficou perdida além-mar, dilacerada
pelas quezílias, pela ambição desmedida e a inveja infinita...
Não havia sido aquele o
meu lugar. A vida esperava-me. Precisava só de encontrar uma nesga de
terra, uns raios de sol, talvez um pedaço de mar onde acabar em paz os
meus dias, serenamente, em paz comigo e com o mundo.
Já viajara e vivera
demasiado para me confinar à mediocridade e ao mofo de um país cinzento
e adiado. Havia presenciado em França a Revolução de 1878. A partir de
1891, talvez inconscientemente para compensar o meu pai da desilusão
provocada por não ter concluído o curso de Medicina, percorri novamente
a França, a Bélgica e a Holanda, transportando comigo a doçura dos figos
Algarve, colhidos pelos empregados do meu pai.
Em Itália permaneci
durante algum tempo, seduzido pelo charme e encanto desse país. Não me
limitei à Europa, deambulei pela África do Norte e Ásia Menor.
São agora negras as
nuvens que pairam nos céus. A verdade é que também há instantes em que
me fatiga acompanhar o futuro do momento – que para ti, leitor, será o
presente, visto vivermos em diferentes dimensões temporais.
Desarrumo então o velho baú da memória. Vou
revolvendo sem pressa cada recordação como se de um tesouro se tratasse.
Porém, noutras vezes o passado parece jorrar indisciplinado, sem que
possa escolher os acontecimentos que quero reviver. Surge-me com
frequência a imagem de Belmira da Neves, que me deu a graça da
paternidade. Estranhamente, apenas através da lembrança a posso
contactar, tal como sucede com os meus pais e outros familiares. Parece
que fiquei num local destinado a escritores ou artistas, uma espécie de
panteão espiritual. Não é uma divisão elitista, tendo apenas a
finalidade de manter unidos certos espíritos que já em vida tiveram
algumas afinidades. Deste modo, podemos partilhar as riquezas da alma.
Por isso, tenho longas conversas com os amigos de tertúlias e aventuras
literárias, como é o caso de João de Deus, Fialho de Almeida, Gomes Leal
e António Nobre. Não esqueço que foi precisamente o autor do «livro mais
triste de Portugal» o impulsionador da publicação do meu primeiro
rebento literário: Inventário de Junho, no último ano do século XIX. Com
o século XX gerei Cartas sem Moral Nenhuma e Agosto Azul (1904) e depois
Sabina Freire (1905) e Gente Singular (1909). Conheci também a Florbela
Espanca (continua um pouco melancólica), o António Aleixo, o Emiliano da
Costa... Além disso, há um local destinado aos mais antigos: o Bernardim
Ribeiro conversa muito com Garcia de Resende. Há também dois poetas
árabes, cujo nome nunca recordo que parecem que foram inimigos e só se
reconciliaram aqui...
Às vezes entristece-me que as minhas personagens não
se tenham afirmado, nem convivam actualmente com as novas gerações. Mas
enfim, algumas das minhas obras ainda povoam certas prateleiras modestas
das livrarias...
Sou agora um mero
manjerico à janela do mundo, mas agrada-me acima de tudo essa atitude
contemplativa.
Neste Outono de esperança
e de sonho, a sul da escrita e da morte, canto o esplendor da vida em
cada letra que não escrevo. |