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REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
Nova Série | 2010 | Número 04
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Três palavras sobre António
Salvado
Por Nicolau Saião
Há, neste acervo, um verso
que a meu ver descreve com exactidão o mundo da escrita de António Salvado:
“só a natureza purifica os sons”, diz ele a dada altura no poema dedicado a
Claudio Rodriguez. (Claudio Rodriguez, sublinho, ou seja: um dos poetas
europeus onde a natureza se confrontou decisivamente com os sons duma
modernidade assumida, reencaminhada nos troços vicinais de um continente que
não perdera de vista a claridade da Grécia mas sabia ser impossível não a
tentar reconverter através do mergulho achado em Rimbaud e Dylan Thomas).
Poeta da natureza, António
Salvado? Sim, mas também da linguagem que a certifica, perpassa e
ultrapassa. Conhecedor dos clássicos, sempre soube viajar – como fica
patente nesta pequena antologia – pela comovida desconstrução da escrita.
E, assim, é um contemporâneo
tanto dos que se foram como de todos os outros que a seguir irão vindo. |
DIRECÇÃO |
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Maria Estela Guedes |
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António Salvado
UM FIO DE ÁGUA |
António Salvado |
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Clarear as ansiedades |
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Descem ao coração angústias lentas e, de repente, encanecem
de medo os zumbidos carinhosos do verão, pulverizam-se os arvoredos
frondosos dos aromas.
Desafogadamente, acreditei nas lisonjas e nos degelos das
cercanias: o azul remanescia como fonte a correr, o horizonte sinalizava
contínuas alvoradas e, pela terra, as videiras resplandeciam maduras e
luzidias. Cruzei os descaminhos ignorando onde refulgia a fronteira entre a
noite e o dia, padecendo assombros imprevistos, abrigos fortuitos, amparos
maculados. Daí que à minha volta as ladeiras de promessas desertificassem e
que nem as montanhas de exaltações tivessem fecundado a raiz por mais
humilde que fosse a coesão d’esta ao húmus. A lassidez dos frutos na sua
tumescência contribuiu , também, para que a revoada de certezas desterrassem
as probabilidades os lances triunfantes. Permear tempos de indigência
elevava, sem dúvida, relevos quase arrasados: e quando ouviria eu de novo
uma flauta a tanger? Quando descortinaria no pomar as áleas verdejantes?
Quando, pelo rio, haveria de correr a limpidez insaciável da água?
Que não se aguardem músicas improvisadas ou linhas de
palavras balanceantes: o porvir cristaliza sem pejo as placas de xisto ou
desboroa falsamente os elementos do granito… Os sulcos debuxados nas palmas
das mãos iluminam idolatrias arenosas, venerações amargas.
Que refluxo de firmezas conseguiria clarear as ansiedades
que me afogam o coração? |
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Epitáfio para minha mãe |
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Porque sabias os caminhos
que encontrarias na viagem,
sem desaires nem labirintos
a tua vida foi a simples
maneira de atravessares
no mundo brenhas e neblinas.
Não precisavas de milagres
para aqueceres a tua crença:
afagos de serenidade,
os dias chegavam passavam
com a mesma limpidez quente
e mansa que a fé torna clara.
Desfolho rente à tua campa
os ramos de malvas: lembranças
do cálido peregrinar
das contas puras do rosário
que os dedos do amor rezaram
à espera de um céu alcançado.
“AGUARDARÁS O TEMPO…”
Aguardarás o tempo da vindima:
que as uvas sofram, como bem-fazeja
dádiva férvida, o calor de enlevos
que aproximar vai o verão do fim.
E só depois as poderás colher,
e só depois tu poderás fremindo
esmagá-las sem dor com a leveza
com que se beija um corpo em cio
unindo-se.
Aguarda pois. E faz da tua espera
a certeza insuspeita de que um dia
há-de num copo rutilar o vinho –
e nos teus dedos em papel modesto
fulgirá o mistério da vindima
transformado nos versos que nutriste. |
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Casa do amor |
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Foi nas perenes coisas que aprendi
a ser: a casa do amor cercada
de ruas que subiam junto ao fim
do céu que sempre mais se prolongava,
de longo mudos maternais jardins
onde as eternas flores eram lagos
de fragrância ofegante colorida
e os lagos sol em água mergulhado.
E nela: o pão cantado sobre a mesa,
a bilha da ternura a renascer,
a pureza do linho a dedilhar
as palavras nos lábios entoadas…
deito longe a saudade: permanece
a casa do amor, em mim, perene. |
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Ver um broto surgir... |
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Ver um broto surgir entre a secura
(um fruto anunciado, ante-manhã
que ao fim da noite s’esclarece e tão
prestes a ser o dia que é só luz)
na árvore não morta quase murcha
mas que teimou em ganhar seiva errante
e alçando-se - feliz - na cor da
esp’rança
a vigorar-se no que era um tronco inútil.
E cobre-se de verde e ganha forma,
de surpresa em surpresa desafia
futuras tempestades, imprevistos –
ali: como a palavra que borbota
natural singular silenciosa
no início um verso a construir-se. |
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E de sorriso em sorriso... |
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E de sorriso em sorriso
isso bastou para amarem-se:
dizendo frugais palavras
mas sonoras de sentidos.
Nas langues horas vividas
era no silêncio grave
que os seus olhos se exaltavam,
que as suas bocas bebiam.
E quando os dedos se uniram,
quando as mãos s’entrelaçaram,
a noite havia surgido
como intenção desejada.
…
Depois sem rumo partiram
para o amor consumarem. |
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Meditação |
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(à memória
de Claudio Rodriguez)
Dos olhos e das mãos brotam as coisas:
inocentes paisagens onde a vida
e a mote se insinuam e comprazem.
Feitas indagação, elas entregam
- mesmo longínquas – o fluir constante
do sangue atravessando o pensamento.
De há muito que o sabemos caminhando:
somente a natureza purifica os sons
da chama inviolável que destrói
enganos: uma flor desabrochada,
rapariga no curvo do distante,
calor do oiro na melancolia.
Daí, que a claridade estenda os braços
a resvalar-se à voz: e invada os veios
exaltados da pureza e bafeje
para que ouçamos dela o sussurrar,
como um astro súbito inesperado,
como a verdade plena de harmonia.
Em segredo, o pulsar do coração
traça novos destinos entre areia,
reconstruindo a casa à beira do abismo
solidifica a água das correntes.
Em segredo. Os olhos abrem-se mais
e as mãos, hirtas p’lo frio passageiro,
modelam ouro espaço e outro tempo
para que o canto seja eternidade. |
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Um fio de água |
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Um fio d’água foi o teu passar
tão fugidio que os meus olhos presos
àquele movimento de surpresa
quase sem ver mas vendo-te ficaram.
Tua figura esguia meneava-se
como folhas vernais dum arvoredo
que uma brisa veloz tivesse aflado
subitamente para mais crescerem.
E assim cruzaste a minha solidão
sorrindo tão de leve que nem lembro
se para mim olhaste em tal exílio.
Mas satisfez o que me deste então:
que uma fonte escondida existe sempre
capaz de brotar água: seja um fio. |
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A coroa de névoa |
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A coroa de névoa
que sobrevoa a vila
será a porta aberta
ao começo do dia.
Permite penetrar-se
lenta serenamente
por cores matizadas
que a coloram também.
A pouco e pouco deixa
em pequenos fragmentos
que por ela se veja
o casario além.
E janelas que se abrem,
escancaradas portas:
o bulício usual
de tudo o que se move –
o repassar das gentes
trocando vãs palavras,
ou animais que arrastam
consigo iguais lamentos…
A névoa fugiu longe,
e outra névoa começa
em diverso horizonte
d’incertezas nublado
e cada vez mais perto:
do dia a dia as mágoas
e ninguém que as impeça. |
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Anos se leva |
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Anos se leva a descobrir a pátria:
a terra onde existir p´ra sempre a
salvo,
o barro que há-de modelar a alma,
a língua a ser sabida a ser falada.
E que os rios e serras e que mares
e que cidades grandes ou lugares,
que plantas animais vão habitar
essas paisagens virgens a brotarem.
Porque o amor — uma conquista lenta —
precisa de passado e de presente
quando constrói os elos do futuro;
que a pátria seja em ânsia toda a
gente —
de mãos nas mãos e olhos indif´erentes
a quem não queira partilhar o fruto. |
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António Salvado (Portugal)
Natural de Castelo Branco. Depois de terminar os estudos
secundários, partiu para Lisboa onde se licenciou na Faculdade de Letras
em Filologia Românica. Em Coimbra e em Paris frequentou posteriormente
outros cursos superiores, relaccionados com as actividades que
desempenhou, durante alguns anos, como Director do Museu Tavares Proença
Júnior.
Além de museólogo e de poeta, tem-se dedicado a outras tarefas
culturais, tais como a tradução, o ensaio, o ensino e a direcção de
publicações, de que se destaca Sirgo e Petrínea. Está traduzido para
francês, inglês, italiano e castelhano.
Em 1980 foi galardoado com o Prêmio Fernando Chinaglia/Personalidade
Cultural, da União Brasileira de escritores, e em 1986 foi-lhe atribuída
a Medalha de Mérito da Universidade Pontifícia de Salamanca, que também
o homenageou.
As suas traduções de Cláudio Rodriguez, arroladas num precioso
livrinho, são exemplares. Obra poética, entre outros: A Flor e a Noite
(1955), Recôndito (1959), Na Margem das Horas, (1960), Narciso (1961),
Difícil Passagem (1962), Cicatriz (1965), Interior à Luz (1982), Face
Atlântica (1986), Amada Vida (1987), Ao Fundo da Página, (2007);
Afloramentos, 2007 |
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© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
Rua Direita, 131
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PORTUGAL |
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