REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2010 | Número 03

 

    Duas horas. O sol faísca no espelho da penteadeira e começa subindo pela cama. Deitada de costas, nua, Vera olha o teto branco do quarto e escuta o barulho dos pratos na pia. Ah, vovó, por quê que a senhora não morre de uma vez e me deixa em paz, hem? E eu que casei pra me ver livre, puta que pariu. Abre a gaveta da mesinha-de-cabeceira e tira uma cigarreira de couro. Procura o isqueiro, pega um cigarro mal enrolado e acende-o. Fecha os olhos e traga profundamente. Ainda de olhos fechados, solta o fumo devagar e traga de novo. Ah, vovó, vai lavar pratos... Outra tragada, mais outra e Vera começa perdendo peso, flutuando, nadando na dança do vai-vai. Da cozinha vem o barulho de um prato caindo no chão. Vera abre os olhos, três, D. Berta, quebra três, que eu quebro quatro, foda-se. D. Berta, viúva aos vinte e dois anos, é mãe do contra-almirante Marivaldo Fernandes da Silveira, pai de Vera. Vera apaga o cigarro com cuidado e guarda a guimba na cigarreira, lasseia o corpo e estica as pernas e os braços em cima do lençol. D. Berta, setenta e dois anos secos, magros e miúdos, o cabelo branco preso num coque no alto da cabeça, abre a porta e espreita dentro do quarto.         

DIRECÇÃO

 
Maria Estela Guedes  
   
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Cunha de Leiradella

 

FAHRENHEIT

NA JANELA

                                                                    Cunha de Leiradella

 
 
 
 
 
 
 

          - Pouca vergonha..

- Quê que há, vovó? Nunca viu mulher pelada, não?

- Falta de respeito.

Vera cruza as mãos por baixo da cabeça, espreguiça-se e ri. D. Berta aponta o corredor.

- Pode entrar alguém.

- Quem que vai entrar aqui com a senhora aí de sentinela, hem? Só Almeno e, mesmo assim, pedindo licença, licencinha.

D. Berta sai do quarto e fecha a porta. Vera encolhe os ombros. Ah, foda-se, se nunca mais fodeu o problema não é meu. Fecha as pernas e olha os pentelhos castanhos, encaracolados, Vera detesta depilação pubiana. Por quê que Almeno é tão burro, hem? Olha os bicos duros dos seios e rola na cama. Tou que tou, pegando fogo, puta merda. Senta-se na cama, pega um livro do chão, Vera gosta de ler policiais, e deita-se de novo. Lê algumas páginas, fecha o livro e olha o teto do quarto. Aquela vaca estragou a minha tarde. Sempre estraga, filha da puta. Joga o livro no chão, levanta-se e entra no quarto do cunhado, puxa a colcha e arrasta o corpo em cima dos lençóis. Pega o travesseiro e esfrega-o nas coxas e no sexo. Sorri. Almerindo, tadinho dele, vai tocar punheta até.

Vera mora na Savassi, rua Fernandes Tourinho quase esquina com Sergipe há pouco mais de um ano. Mas odeia. No mesmo edifício mora também o resto da família. Avó, pai, mãe e dois irmãos, um mais velho, outro mais novo, ambos solteiros.

- Almeno, por quê que você comprou este apartamento? Não tinha outro lugar, não?

- É um edifício novo, muito bom, e foi o seu presente de aniversário, meu bem.

- Mas logo aqui, Almeno? Todo mundo do outro lado do corredor?

- É um ótimo apartamento, meu bem. Quatro quartos, duas vagas na garagem...

Almeno, Dr. Almeno Junqueira-Lobo, com hífen, é psiquiatra, um dos consultórios de maior clientela da zona sul de Belo Horizonte.

- Você não gostou do presente, não, meu bem?

- Não foi você que escolheu?

- Custou duzentos mil dólares, meu bem. Em dólar.

Vera casou vai fazer cinco anos. No último ano da faculdade. Curso de Letras, habilitação em latim.

- Não precisa se formar, não, meu bem. Eu não quero que você trabalhe fora.

Foram morar com os pais de Almeno, no Gutierres, ele também psiquiatra e ela prendas do lar. Pai e filho, mesma profissão, mesmo senso, mulheres em casa. Vera ainda tentou, mas não agüentou morar mais de dois anos com os sogros. Almeno, você não acha que morar perto do consultório seria muito melhor pra você? Hem? Meu bem... Precisa nem de gastar gasolina, Almeno. Alugaram um apartamento em Lourdes. Um ano depois, Almeno trouxe o irmão para morar com eles.

- Você não se importa, não é, meu bem?

- Não foi você que trouxe?

- Mas você podia se importar, meu bem.

Almerindo, ex-estudante do Seminário de Mariana, escriturário do Banco do Brasil, e dois anos mais velho que Almeno, é solteiro.

- E não se preocupe, meu bem. Almerindo vai ajudar nas despesas da casa..

- Não tou preocupada.

No quarto ano de casados, no aniversário de Vera, Almeno comprou aquele apartamento.

- Almeno, eu não quero morar aqui, junto com todo mundo. Vovó então...

- Você sabe que eu gosto da sua família, meu bem. E vovó só quer ajudar. Ela mesma já falou.

- E essa extensão do nosso telefone no apartamento da mamãe?

- Precaução, meu bem. Apenas precaução. Enquanto eu estou no consultório, se você precisar de alguma coisa...

Preciso, sim, mas é de quem me foda. E bem. Vera fumou o primeiro baseado por curiosidade. Mexendo nas gavetas de Almerindo, dentro de um par de meias mal dobrado, Vera encontrou um pacotinho de maconha e papel de seda já cortado. Enrolou um cigarro e puxou uma tragada. Horrível. Na segunda a cabeça rodou, Vera vomitou, passou mal. Mas continuou. Se o bosta pode, por quê que eu não vou poder? Uma semana depois já viajava, sozinha no quarto, vovó lavando a louça ou arrumando o apartamento. Almerindo nunca disse nada e Vera nunca soube se ele dava pela falta. O sangue de Vera lateja, o corpo começa a ficar leve e começa a flutuar. Um bosta. Um bostão que nem Almeno. Viado. Puxa mais duas tragadas profundas. Olha só vovó sumindo. Morre, sua vaca, xereta, filha da puta. A vaca morre e eu toco gaita no enterro dela. Ri. A vaca morre e eu toco gaita no enterro dela. Toco gaita, toco gaita, toco gaita no enterro dela. Ri às gargalhadas. A vaca morre e eu toco foda, toco gaita, toco vaca, ah, ah, fodeu a vaca, fodeu a gaita. Puxa a última tragada, joga a guimba no carpete, deita-se de costas, sobe no teto e tchau, meu bem, apenas precaução, viu? 

Vera despe-se no closet. No banheiro da suite, Almeno escova os dentes e faz um gargarejo antiséptico. Vera tapa os ouvidos, odeia aqueles gargarejos.

- Mas, meu bem, compreenda, é uma questão de higiene. No consultório entra todo tipo de paciente e o ar fica todo viciado.

Almeno veste o paletó do pijama e deita-se. Vera deixa-se cair na cama, nua por cima dos lençóis, apesar do ar condicionado. Verão ou inverno, ar-condicionado ligado ou desligado, Vera dorme sempre nua. Almeno aconchega o travesseiro, apaga a luz, cobre-se com o lençol e pouco depois adormece, ressonando. Vera acende o seu abajur, pega um livro policial e acende um cigarro. Continental. Vera gosta de cigarros fortes. No quarto em frente Almerindo apaga a luz. Vera vê pela bandeira da porta e sorri. Aposto que tá cheirando o travesseiro. Puxa uma tragada profunda e saboreia o gosto áspero do fumo. Vai, punheteiro.

Almerindo não consegue dormir. De luz apagada ou acesa, de olhos abertos ou fechados, o corpo de Vera não sai da frente dele. Moreno, brilhante, oferecido, escorrendo água por entre os seios e pelas coxas. Almerindo, a mão já descendo por entre as pernas, recorda a cena mais uma vez. Onze horas da manhã. D. Berta, como sempre, na cozinha, preparando o almoço, ele no quarto, Vera tomando banho no banheiro social. Almerindo passa no corredor e vê a porta aberta. Pára e olha. Vera, de braços levantados, olha para ele e abre um sorriso, a água escorrendo pelo corpo.

- Quer entrar, não?

Almerindo quer recuar, fechar a porta. Vera levanta os seios com as mãos, oferecendo-os.

- Ó, hoje é de graça.

Almerindo bateu a porta com força, fechou-se no quarto, não almoçou nem foi trabalhar da parte da tarde. E, agora, passados mais de quinze dias, ainda não consegue dormir. O corpo de Vera continua na frente dele, moreno, brilhante, oferecido, Vera sorrindo, como se quisesse que ele entrasse no banheiro e a fodesse, fodesse e fodesse. Num gesto brusco Almerindo levanta-se e abre a porta do quarto. Vera escuta os passos no corredor. Aposto que vai pro banheiro. Almerindo entra no banheiro e tranca a porta. Vera sorri. Vai tocar punheta até. Olha Almeno ressonando. Burro. Levanta-se. Pára na porta do banheiro e espreita pela fechadura. Sentado no vaso, olhos vidrados numa foto de Vera no dia do casamento, Almerindo masturba-se furiosamente.

D. Berta todos os dias vai ao apartamento de Vera. De manhã faz o café, prepara o almoço ao meio dia e limpa e arruma tudo durante a tarde. Vera levanta-se tarde. Onze horas, meio-dia. Às vezes até depois do meio-dia. Almeno não almoça em casa. Almerindo nunca sai sem almoçar. Vera sempre senta na mesa de baby-doll. D. Berta reclama.

- Vera, isso não são modos de sentar à mesa do almoço.

- Ora, vovó, Almerindo não se importa. Importa, Almerindo?

Almerindo não responde. Mas à noite não vem jantar, esperando que Nelly, lá no puteiro da rua Paquequer, atenda o último freguês e ele possa trancar-se com ela no banheiro. Nelly tomando banho e Almerindo olhando, pensando em Vera e masturbando-se.

Vera levanta-se da cama de Almerindo e entra no banheiro da suite. Deixa os lençóis amarrotados e o travesseiro caído no chão. Assim ele bem que vai saber que tive aqui. Abre o chuveiro e fica imóvel, a água escorrendo pelo corpo, a mão direita entre as coxas, o tesão vindo, começando, tomando conta. Está no meio do orgasmo, os gritos já rascando na garganta, a vista turva e o corpo tremendo quando o telefone toca. Vera não escuta. O telefone insiste. Vera deixa passar a última convulsão, abre os olhos e vai atender, nua, a água pingando no carpete.

- Alô? Ocá. Tchau.

Vera termina o banho, o corpo mole, bambo, mas tranqüila, entra no quarto e veste-se. Escuta a chave de D. Berta na porta de serviço. Vaca, filha da puta. Escutou na merda da extensão. D. Berta entra no quarto.

- Sua mãe disse pra você esperar por ela.

Vaca. Filha da puta. Mamãe que é, ó... D Berta olha Vera e sai do quarto. Vagabunda igual à mãe.

 

 

Cunha de Leiradella (Póvoa de Lanhoso, Portugal, 16.11.1934)
Emigrou para o Brasil em 1958. Desemigrou em 2003, mas foi lá que escreveu a maior parte da sua obra. Peças de teatro (Laio ou o poder, Judas, As pulgas, etc.), romances (Cinco dias de sagração, Guerrilha urbana, Apenas questão de método, etc.), contos (Fractal em duas línguas, Síndromes & síndromes (e conclusões inevitáveis), O que faria Casanova?, etc.) e roteiros para cinema e televisão (Belo Horizonte: caminhos, O circo das qualidades humanas, Vestida de sol e de vento, etc.). Com isto ganhou alguns prêmios (no Brasil, Prêmio Fernando Chináglia, 1981, I Concurso de Textos Teatrais Rede Globo de Televisão, 1982, Prêmio Humberto Mauro, 1997, no México, Prêmio Plural 1990, em Portugal, Prêmio Caminho de Literatura Policial, 1999, etc.).
Contacto: leiradella@sapo.pt

 

 

© Maria Estela Guedes
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