REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2010 | Número 05

 

RAIMUNDO GADELHA

 

Transfiguração

                                                                Raimundo Gadelha

DIREÇÃO

 
Maria Estela Guedes  
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    Lá fora, o melodioso canto dos pássaros

era providencial indício de que chegara a hora

Permanecer na caverna – pedra d’ara em desuso –

Era apenas difuso e inútil sacrifício

Em suas entranhas deixei – além de sonhos -

parte de mim, minhas mais estranhas sensações...



Perdera-se nos labirintos que por muito habitei

o anseio do encontro de uma liberdade sob o sol

Em cheio atingido fui pela certeza:

o sonhado oásis, seio da terra secou,

cedeu espaço ao desencanto e ao cansaço...



Trazendo tristeza de séculos estampada no rosto

e, mais uma vez, ao mundo inteiramente exposto,

pendurei meu pouco corpo, pouca cor, no varal

Quase branco, ele ao lado de brancas e coloridas roupas,

ao sabor do vento agitou-se em tristes acenos de despedida



Minha alma, na hora da partida, hesitou por um instante

Contemplou o horizonte distante e seguiu sentindo-se liberta

Minha alma, corpo meu de todo dispensado,

em nova e incerta jornada, dispersou-se mundo afora

Fauna de tantas feras; flora e espinhos, sim e senões...

Intermináveis guetos e becos, sujos e sórdidos porões



Ganharam corpo as lembranças e a sensação de desperdício

enquanto, lá longe, meu corpo continuou largado ao sol

e, sem alma, sentiu-se mera isca presa ao anzol do destino

Em um segundo qualquer do tempo entre Montanha e pó,

com surpresa, viu uma ave arisca brincando de riscar o arco-íris

E mesmo sem alma, chorou ao ouvir o silêncio dos pássaros mortos

que, desatentos, entregaram-se a um voo sobre fogo



Minha alma, que sempre esteve por um triz, novidades quis

Escutou os gritos da noite, do vento experimentou o açoite

e sob o sol a pino de um tempo nunca findo

viu o sofrimento de meninos em desolada existência...

Sentiu em si mesma o olhar dolorido que mora e chora

nos olhos subtraídos de brilho dos sem-esperança



Então minha alma, cansada de tanta andança,

decidiu retornar e retomar meu corpo

Mas alma encharcada de pranto ficou...

Meu corpo, há tanto abandonado no varal,

lá não mais estava, perdeu-se diluído no tempo

Junto também se foram, e jamais saberei para onde,

a compreensão do Bem e do Mal e também a saudade do que ficou...

No ar, apenas rastros de um caminho circunstancial e sem volta.
 

 

Raimundo Gadelha (Brasil)
 Poeta e fotógrafo, sua obra percorre o romance e a poesia, geralmente associada à Fotografia. Trabalhou durante três anos como editor da Aliança Cultural Brasil-Japão e, em 1994, fundou a Escrituras Editora. É autor de diversos livros, entre eles: Tereza, perdida, Tereza (contos, 1978), Colagem Trágica (poemas, 1980), Este circo tem futuro (Teatro, 1982) e Cristal (CD de Música Popular Brasileira, gravado em parceria com Cláudio Vespar, 1984), Um estreito chamado horizonte (1992), que o transformou no primeiro brasileiro a escrever em Tanka, a forma poética mais tradicional do Japão, Em algum lugar dentro de você mesmo (poesia, 1994, português-japonês), Brasil Retratos Poéticos 1 (fotografia/poesia, 1996, 7a edição), Para não esqueceres dos seres que somos (poesia, 1998, CD com participações especiais de Chico César, Marisa Orth, Celso Viáfora e Ná Ozzetti), Brasil Retratos Poéticos 2 (fotografia/poesia, 2001, 3a edição), Histórias do olhar (contos, 2003, com outros autores), Brasil Retratos Poéticos 3 (fotografia/poesia, 2003, 2a edição), Brasil Natureza e Poesia (fotografia/poesia, 2004), Vida útil do tempo (poesia, 2004), Brasil - Livro e Postais (fotografia, 2005) e Em algum lugar do horizonte (romance, 2000), publicado em 2007 na Grécia e no México. Em 2007, Raimundo Gadelha assumiu o controle acionário e administrativo da Arte Paubrasil (www.artepaubrasil.com.br), uma das mais reconhecidas livrarias virtuais do País.

 

© Maria Estela Guedes
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