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REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
Nova Série | 2010 | Número 05
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Resumo
Durante aproximadamente
um século, da metade dos setecentos a meados dos oitocentos, três
gerações de químicos uniram dois países, Brasil e Portugal, ajudando a
mudar a história política e científica de ambos. Eles tiveram papel
destacado em conduzir a Química e a História Natural de Portugal a um
melhor desenvolvimento e reconhecimento acadêmico. O processo se iniciou
com Domingos Agostinho Vandelli (1735-1816), naturalista italiano
trazido a Portugal em 1764 pela reforma pombalina, e que foi mestre de
José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838) em Coimbra. O filho mais
velho de Domingos, Alexandre Antonio Vandelli (1784-1862), viria a
casar-se em Lisboa no ano de 1819 com a filha primogênita de José
Bonifácio, Carlota Emília de Andrada. A ciência luso-brasileira viu
surgir assim uma linhagem de químicos e naturalistas que se uniram não
apenas pela afeição às Ciências Naturais, mas também por fortes laços
familiares.
Palavras-chave:
naturalismo, ciência luso-brasileira, Vandelli e Andrada. |
DIREÇÃO |
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Maria Estela Guedes |
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REVISTA TRIPLOV |
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Adílio Jorge Marques
e Carlos A. L. Filgueiras
Uma
família de químicos unindo Brasil e Portugal:
Domingos Vandelli, José Bonifácio de Andrada e Silva
e
Alexandre Vandelli
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Texto
publicado na “Revista Química Nova na Escola”, Vol. 31, N° 4 ,
novembro, 2009 |
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O
início: o Mestre Domingos Agostinho Vandelli |
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No século XVIII a
educação em Portugal era
responsabilidade quase exclusiva da Companhia de Jesus. O poderoso
Ministro de Estado
do Rei D. José I (1750-1777), Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782), mais tarde 1° Marquês de
Pombal, promoveu no país uma reforma educacional radical após decretar
em 1759 a expulsão dos jesuítas de todo o território de Portugal e de
suas possessões. Pombal introduziu importantes mudanças no sistema de
ensino superior do reino, passando-o ao controle total do Estado. A
Universidade de Évora, de cunho jesuíta, foi extinta e a Universidade de
Coimbra passou em 1772 por uma grande reforma, sendo totalmente
modernizada para os padrões da época. Nessa reforma se introduziram os
estudos das ciências modernas, até então banidas do currículo da
Universidade. Estes estudos, centrados na recém-criada Faculdade de
Filosofia, compreendiam a História Natural, a Química e a Física.
Para esta reestruturação
universitária, Portugal importou professores estrangeiros, em virtude da
inexistência de profissionais versados nas ciências modernas no país. Um
dos mais notáveis e influentes destes estrangeiros foi o médico, químico
e naturalista
Domingos Agostinho Vandelli, natural de Pádua. Domingos Vandelli foi
contratado para lecionar História Natural e Química no Colégio dos
Nobres, indo depois para a Faculdade de Filosofia de Coimbra em 1772,
dentro do espírito iluminista da “Encyclopédie”. Sua formação
acadêmica era baseada nos ideais da sistematização do conhecimento,
devendo servir ao homem para classificar e catalogar a natureza,
apreendendo o Universo com a razão. Partindo de tais atitudes, Domingos
Vandelli mudou a visão da ciência em Coimbra, inaugurando não apenas as
disciplinas de Química e de História Natural, como também o próprio
prédio do laboratório químico da universidade. Este foi provavelmente o
primeiro prédio construído no mundo com a função precípua de abrigar
laboratórios de Química. Havia muitos laboratórios mais antigos em
outros países, mas alojados em prédios adaptados para a função. No
prédio setecentista funciona hoje o novo Museu de Ciências de Coimbra.
Na sua primeira aula de Química, Vandelli começou o programa expondo a
história da disciplina aos seus alunos, e dissertando sobre a afinidade
ou atração química (Ferraz, 1995).
Domingos Vandelli adquiriu ao longo do tempo outras funções em Portugal,
tais como a organização do Jardim Botânico e do Museu de História
Natural de Coimbra e do Jardim Botânico do Palácio da Ajuda em Lisboa.
Ocupou-se ainda em Coimbra da fabricação de louças que levavam o nome
familiar de “louça de Vandelles”. Vandelli permaneceu no cargo de
diretor do laboratório químico até 1791, quando se aposentou, ficando a
cátedra de Química na universidade a cargo de seu ex-aluno Thomé
Rodrigues Sobral, enquanto seu outro ex-aluno, o brasileiro Vicente
Coelho de Seabra Silva Telles era nomeado demonstrador da mesma
disciplina.
Vandelli foi um grande professor, dotado de uma enorme capacidade de
entusiasmar seus alunos numa variedade de atividades. Poucos meses
depois que os irmãos Montgolfier iniciassem a voga dos balões de ar
quente na França, já os alunos de Química faziam o mesmo em Coimbra,
como nos relata a Gazeta de Lisboa em 1784. Entre esses alunos
entusiastas do balonismo estavam dois brasileiros, o já mencionado
Seabra Telles e o futuro inconfidente-químico José Álvares Maciel. Os
alunos de Vandelli também abraçaram com igual fervor a construção de
balões de hidrogênio, assim que a novidade foi noticiada. Aliás, seu
entusiasmo era tamanho que chegaram a promover, em uma ocasião festiva,
a iluminação durante horas do pátio central da universidade com 150
bicos com chamas de hidrogênio, sob os aplausos do Reitor, que não tinha
a menor suspeita do risco que a universidade e todos corriam.
Domingos Vandelli manteve
muitas relações de amizade com cientistas estrangeiros, a
exemplo de seu amigo sueco e também naturalista Carlos
Lineu (1707-1778), reconhecido mundialmente pela criação da
nomenclatura binomial e da classificação científica utilizando
os princípios ainda hoje usados, que faz com que Lineu seja
considerado o pai da taxonomia moderna. Deixou obras como o “Diccionário dos Termos
Technicos de Historia Natural” (Figura 1). Vandelli se tornou membro
de diversas Academias e Sociedades Científicas da Europa, além
de ser um dos fundadores da Academia Real das Ciências de
Lisboa, criada em 1779 sob a égide do 2° Duque de Lafões
(1719-1806), o grande responsável pela concretização do projeto.
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Figura 1 – Frontispício do “Diccionario dos
Termos Technicos de Historia Natural” de Domingos Vandelli, um
de seus muitos trabalhos científicos. |
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Em
adição ao trabalho acadêmico, Domingos Vandelli foi médico e conselheiro
do Regente D. João até sua vinda para o Brasil. Após a expulsão dos
franceses em 1810 ocorreu em Lisboa um movimento conhecido como “Setembrizada”,
no qual se buscaram bodes expiatórios para a deplorável situação em que
estava o país, com o governo e a corte ausentes no Brasil. Neste
processo, tão comum em épocas de conturbação dessa natureza, várias
pessoas ligadas à administração pública e ao comércio foram acusadas de
simpatizar com os invasores franceses, muitas delas injustamente. Nesta
leva se viram envolvidos Domingos e Alexandre Vandelli, pai e filho.
Desterrados para os Açores, entre outros acusados, o filho consegue ser
libertado e retornar a Portugal no ano seguinte, ao passo que o velho
Domingos Vandelli é transferido para a Inglaterra, só conseguindo
regressar em 1815, aos 80 anos de idade.
Domingos Vandelli foi um
dos grandes pensadores do naturalismo português de sua época, formando
toda uma geração de estudiosos, dentre os quais muitos brasileiros, como
já se observou. Vários de seus discípulos percorreram o território de
Portugal e de suas colônias em missão de coleta e pesquisa científica –
as conhecidas “viagens filosóficas”.
Entre os alunos
de Domingos Vandelli, além dos mencionados Thomé Rodrigues Sobral e Vicente Coelho
de Seabra Silva Telles, este autor da renomada “Nomenclatura Chimica”
(Figura 2). Destacam-se
também José
Álvares Maciel, de atuação importante na Inconfidência Mineira,
Manuel Ferreira da Câmara Bettencourt e Sá, que
viria a ser Intendente das Minas de Ouro do Brasil, o
viajante-naturalista
Alexandre Rodrigues Ferreira e o químico
Constantino Antônio Botelho de Lacerda Lobo.
Dentre todos os
discípulos, entretanto, o maior destaque histórico recai sobre
José Bonifácio de Andrada e Silva, o primeiro brasileiro a
granjear renome científico internacional em vida e futuro Patriarca da Independência do Brasil. Embora a carreira
política posterior de José Bonifácio seja muito mais conhecida
dos brasileiros que sua ilustre carreira científica, nunca é
demais repetir sua importância entre seus contemporâneos. É por
isso que José Bonifácio é o patrono da maior condecoração
científica outorgada pelo Governo Brasileiro, a Ordem do Mérito
Científico, que ostenta sua efígie. |
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Figura 2 –
Frontispício da obra “Nomenclatura Chimica Portugueza, Franceza,
e Latina” do químico brasileiro Vicente Coelho de Seabra Silva
Telles. É desta obra, baseada na nomenclatura de Lavoisier, que
se origina a nomenclatura inorgânica que usamos até hoje. |
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O
maior dos discípulos: José Bonifácio de Andrada e Silva |
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José Bonifácio
de Andrada e Silva era natural de Santos, onde nasceu em 1763. Ele se
formou na Universidade de Coimbra em Filosofia Natural em 1787 e em Leis
no ano seguinte. Em 1789 foi eleito membro da Academia das Ciências de
Lisboa, dedicando-se também à Matemática, à Química, à Geologia e à
Mineralogia, áreas em que se destacaria mais tarde. Em 1790 desposou em
Lisboa Narcisa Emília O’Leary, de origem irlandesa. Dentro do espírito
da pesquisa de campo implementada por Domingos Vandelli nas ciências
naturais em Portugal, Bonifácio foi enviado em 1790, juntamente com dois
colegas, numa viagem científica pelo Velho Continente, uma espécie de
pós-graduação científica. José Bonifácio aproveitou ao máximo sua estada
no estrangeiro, entrando em contato com os grandes centros científicos
europeus. Frequentou em Paris cursos de Química e Mineralogia, como foi
atestado por seu professor, o químico Fourcroy, em 1791. Também conheceu
algumas das mais brilhantes mentes científicas de sua época na Europa.
Fez parte das mais respeitadas Academias, tais como a Sociedade
Filomática de Paris, a Sociedade de História Natural de Paris, a
Sociedade dos Amigos da Natureza de Berlim e a Real Academia de Ciências
de Estocolmo, entre outras (Filgueiras, 1986). Sua estada mais
importante foi na afamada Escola de Minas de Freiberg, na Saxônia, onde
foi aluno do Professor Abraham Gottlob Werner, importante geólogo e
mineralogista.
Assim como seu
mestre Domingos Vandelli, publicou trabalhos sobre os mais variados
assuntos científicos, desde a época de sua entrada para a Academia das
Ciências de Lisboa.
Entre suas várias publicações, a mais importante, e que lhe
granjeou renome internacional foi aquela que ele publicou em
alemão, na revista Allgemeines Journal der Chemie, de
Leipzig (Figura 3). Este artigo, oriundo de suas pesquisas
realizadas na Escandinávia, versava sobre 12 novos minerais
estudados e descritos de um ponto de vista mineralógico e
químico pelo autor. Na verdade, sabemos hoje que quatro dos
minerais eram absolutamente inéditos e os outros eram novas
variedades de minerais conhecidos. Entre os quatro novos
minerais havia dois, a petalita e o espodumênio, que hoje
chamamos de aluminossilicatos de lítio. Um terceiro, que também
se mostrou muito importante, foi descoberto por José Bonifácio
num lote de rochas trazidas da Groenlândia, uma possessão
dinamarquesa. Por isso ele denominou o mineral criolita, "pedra
do frio". A criolita é uma fonte importante de flúor e um
fundente essencial para baixar o ponto de fusão da alumina no
processo de eletrólise dessa fonte do metal alumínio. O artigo
de José Bonifácio sobre os novos minerais teve enorme
repercussão. Prova disso é que ele foi traduzido para o francês
e publicado em Paris no mesmo ano de 1800. No ano seguinte
sairia sua tradução inglesa em Londres. |
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Figura 3 –
Artigo de José Bonifácio sobre a descoberta dos novos minerais,
comentado neste texto. |
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A partir daí
vários pesquisadores, em diferentes países, começaram a realizar estudos
sobre a petalita e o espodumênio, os quais resultaram na descoberta de
um novo elemento alcalino. Como os dois outros elementos alcalinos já
conhecidos, o sódio e o potássio, haviam sido isolados de vegetais, o
químico inglês Humphry Davy cunhou para o novo elemento o nome lítio, do
grego para pedra, lembrando sua origem mineral. José Bonifácio é assim o
único brasileiro ligado à descoberta de um novo elemento químico. Um
reconhecimento adicional do trabalho de José Bonifácio ocorreu em 1868,
quando o mineralogista americano James Dwight
Dana (1837-1868), em sua
homenagem, deu o nome de Andradita para a granada de ferro e cálcio Ca3
Fe2 (SiO4)3. (Varella e cols., 2004).
Após seu
retorno a Portugal em 1800, José Bonifácio se tornou professor de
Metalurgia em Coimbra, uma cátedra criada especialmente para ele. Mais
tarde, veio a ministrar aulas no curso químico da Casa da Moeda de
Lisboa, sendo o responsável pela organização do seu laboratório, que foi
o primeiro estabelecimento em Portugal a fazer pesquisas de natureza
fitoquímica, sobretudo com a finalidade de descobrir um sucedâneo para a
quina do Peru em plantas oriundas do Brasil. A quina era uma fonte
importante do único febrífugo conhecido, donde sua importância
estratégica. José Bonifácio foi então o primeiro fitoquímico brasileiro,
fato frequentemente esquecido.
José Bonifácio
também ocupou muitos cargos de natureza técnica e administrativa, de
grande importância política. Um destes cargos foi o de Intendente-Geral
das Minas e Metais do Reino, com o qual ele acumulava a administração
das minas de carvão de Buarcos e das minas e fundição de ferro da Foz do
Alge (Carvalho, 1954). Portugal buscava firmar-se perante outros países
no caminho da industrialização e exploração metalúrgica, movimento
considerado primordial para o desenvolvimento do país.
Durante as
invasões francesas, que motivaram a vinda da corte para o Brasil em
1807, Bonifácio permaneceu no país, mesmo sendo originário do Brasil,
para onde tinha ido o governo e a nobreza, e foi o responsável pelo
fabrico de munição e pólvora no Laboratório Químico da Universidade de
Coimbra, para a luta contra o invasor. Ele também se alistou em janeiro
de 1809 no Corpo Militar Acadêmico, obtendo inicialmente o posto de
major, e mais tarde o de tenente-coronel e comandante. Permaneceu em
armas até o fim das invasões a Portugal em 1810. (Fonseca, 1968).
A partir de 1812,
José Bonifácio foi eleito Secretário Perpétuo da Academia das Ciências
de Lisboa, posto que conservou até sua aposentadoria, em 1819, quando
também retornou a seu país natal, que havia deixado em 1783. A partir
daí sua vida será marcada, principalmente, por seu crescente
envolvimento político no processo de independência do Brasil e sucessos
subsequentes. |
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A união das
gerações de químicos: surge Alexandre Antonio Vandelli |
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Estabelecido em Portugal e na Europa como um grande
químico e mineralogista, José Bonifácio adentrava a segunda década do
século XIX como uma personalidade que conseguiu unir as armas e o
intelecto. No contato direto com seu mestre Domingos Vandelli, Bonifácio
conhece Alexandre Antonio Vandelli, filho mais velho deste com Feliciana
Isabella Bon. Alexandre nascera em Coimbra (e não em Lisboa, como
normalmente mencionado em obras históricas tanto no Brasil quanto em
Portugal) em 27 de junho de 1784, quando seu pai era professor da
Universidade. Ele se desenvolve na prática dos estudos químicos, embora
sem jamais obter um diploma universitário. Em 1813 torna-se assistente
de José Bonifácio no Laboratório Químico da Casa da Moeda de Lisboa. (Filgueiras,
1986). Nesta cidade, casa-se em 1819 com Carlota Emília, filha mais
velha de seu chefe (Fonseca, 1968). A data é marcante, pois demonstra
bem a relação entre as duas famílias: somente após o casamento da filha
com Alexandre é que Bonifácio vem para o Brasil.
Na função de assistente do sogro, Alexandre Vandelli
também trabalhou na Intendência Geral de Minas e Metais do Reino até
1819, quando, com a vinda de José Bonifácio para o Brasil, passou a
ocupar interinamente a direção do órgão até 1824. Alexandre assumiu
então a função de Guarda-Mor dos Estabelecimentos da Academia das
Ciências, permanecendo vinculado à entidade durante toda a sua vida.
Entre os anos de 1812 e 1814, Alexandre foi membro da Comissão de
Reforma de Pesos e Medidas de Portugal, tendo participado das discussões
iniciais no intuito de uniformizar o padrão de medidas. Em 1814, o
Regente aprovou a proposta dessa comissão, baseada no sistema métrico
francês.
Além de vários trabalhos científicos publicados nas
“Memórias da Academia Real das Ciências de Lisboa”, e de diversos
manuscritos inéditos, Alexandre Vandelli publicou cinco livros em
Portugal, versando sobre os mais variados assuntos de História Natural e
de técnicas manufatureiras e agrícolas. (Marques, 2008):
O tema da destilação de aguardente, assunto central
de seu livro Resumo da Arte de Distillação, era considerado importante
para a economia portuguesa da época. Alexandre menciona o brasileiro
João Manso Pereira (Pereira, 1797, apud Filgueiras, 1993), autor de
livros nessa área, chamando-o de “incansável”. No livro, Alexandre
Vandelli mostra sua preocupação com a economia e com as aplicações da
ciência. Para isso ele cita um trecho dos Estatutos da Academia, que
pregavam:
Os Membros (da Comissão de Indústria) promoverão à
competência o aumento da Agricultura, das Artes, e da Indústria
popular... já averiguando, e recolhendo os descobrimentos novos, e
práticas úteis dos estrangeiros, que nos forem próprias, propondo-as, e
facilitando-as aos nossos nacionais, &c.. (Vandelli, 1813, p. 12).
A Academia das Ciências publicou em 1814, em suas
"Memórias", um artigo de 1811 intitulado “Experiências Químicas, sobre a
Quina do Rio de Janeiro Comparada com Outras” de autoria de José
Bonifácio, Sebastião Francisco de Mendo Trigoso, João Croft e Bernardino
Antonio Gomes (Figura 4). Logo na primeira página os autores frisam que
Alexandre Vandelli participara no preparo dos reagentes químicos
utilizados para verificar se a quina do Rio de Janeiro era de boa
qualidade, já que as quinas eram um produto natural de grande interesse
estratégico e econômico, como já se disse.
A quina era importante no tratamento contra febre
intermitente, malária, feridas e inflamações. Ela era o principal
febrífugo da época e de uso difundido nas armas da Corte, pois não havia
muitos tratamentos específicos para ferimentos de guerra. Assim, era
essencial saber se a qualidade da matéria prima, as cascas que eram
usadas em Portugal e no Brasil, eram de boa qualidade. |
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Figura 4 - “Experiências Chymicas, sobre a Quina
do Rio de Janeiro Comparada com Outras”, escrita em 1811 por
José Bonifácio, Sebastião Francisco de Mendo Trigoso, João Croft
e Bernardino Antonio Gomes, com a participação de Alexandre
Vandelli. |
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Alexandre Vandelli foi mais
tarde acusado de apoio aos partidários de D. Miguel, filho de D. João
VI. que reivindicava para si a sucessão do trono em detrimento da filha
do Imperador brasileiro D. Pedro I (D. Pedro IV de Portugal). D. Miguel
perdeu a disputa pelo poder em 1833, depois de muita luta, e o trono foi
ocupado pela Princesa Maria da Glória, que se tornou a Rainha D. Maria
II de Portugal. Em virtude desses acontecimentos, Alexandre Vandelli
decidiu emigrar para o Brasil com toda a família.
Na cidade de Santos
reinicia sua vida como negociante. Naturaliza-se brasileiro em 1838, no
Rio de Janeiro, no mesmo ano da morte de seu sogro, José Bonifácio. A
distância da Corte dificultava seu sucesso profissional e financeiro,
por isso decidiu radicar-se definitivamente na capital (Marques, 2008).
Nesta cidade Alexandre Vandelli foi professor de Botânica e Princípios
de Ciências Naturais do jovem D. Pedro II e da família Imperial entre
1839 e 1862. É possível que tenha, ao final de sua vida, ministrado
aulas para as filhas de D. Pedro II, assim como para outros membros da
elite intelectual da Corte. Alexandre Vandelli veio a tornar-se
Comendador da Ordem da Rosa em 1841 por decreto de D. Pedro II.
Vandelli foi também um dos
fundadores da Sociedade Vellosiana de Ciências Naturais do Rio de
Janeiro, criada em 1850 com a finalidade, segundo seus Estatutos, de “indagar,
collegir, e estudar todos os objectos pertencentes à História Natural do
Brasil; e juntamente averiguar, e interpretar as palavras indigenas, com
que forem designados” (Paiva, 2005, p. 20). Alexandre
chegou a exercer a Presidência ad hoc, assinando o Diploma do
presidente da instituição, o botânico Francisco Freire Allemão de
Cysneiros (1797-1874). O nome sugerido por Freire Allemão foi uma
homenagem ao Frei José Mariano da Conceição Vellozo, nascido na
Província de Minas Gerais em 1742, falecendo em 1811 no Rio de Janeiro.
Frei Vellozo foi o autor da importante obra naturalista brasileira "Flora
Fluminensis", com o resultado de suas investigações científicas
realizadas na Província do Rio de Janeiro durante oito anos.
No início do funcionamento
da Sociedade os sócios efetivos foram distribuídos em quatro Seções:
Etnografia, Zoologia, Botânica e Geologia e Ciências Físicas. Alexandre
Vandelli participava na seção de mineralogia, composta também por
Frederico Leopoldo Cezar Burlamaque, Cândido Teixeira de Azeredo
Coutinho e Custódio Alves Serrão (Paiva, 2005).
Em 1853
Alexandre Vandelli foi um dos protagonistas de uma interessante
querela científica com seus consócios Freire Allemão e Leopoldo
Burlamaque. Vandelli doou ao Imperador D. Pedro II um trabalho
intitulado “Reflexão sobre a Questão dos Nevoeiros Secos”
(Figura 5), constante de três partes, datadas 16 de abril, 24 de
novembro e 10 de dezembro de 1853, respectivamente, num total de
41 páginas manuscritas. |
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Figura 5 – Manuscrito de Alexandre Antonio
Vandelli “Reflexões sobre a questão Dos Nevoeiros Seccos”. Este
manuscrito inédito pertenceu a D. Pedro II, a quem foi
presenteado pelo autor. |
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O texto foi precedido de uma carta ao Imperador, na
qual atacava seus adversários na polêmica, os quais, a seu ver, apenas
“divagavam” sobre assuntos científicos.
A questão dizia respeito a um fenômeno atmosférico: o aparecimento de
nevoeiros secos no Rio de Janeiro nos meses de inverno. Tanto Freire
Alemão quanto Francisco Burlamaque verificavam que o fenômeno consistia
num nevoeiro denso, uma espécie de esfumaçamento não apenas da atmosfera
da cidade do Rio de Janeiro, mas de quase toda a costa do Brasil nos
meses de julho a outubro. Para Frederico Burlamaque, a origem dos
nevoeiros não podia ser atribuída às queimadas, como geralmente se
supunha. Não oferece, contudo, uma possível conclusão para a questão
levantada por Freire Allemão. Para ele, como o fenômeno ocorria não
apenas no Brasil, mas em diferentes partes do globo, sua explicação não
deveria ater-se a um fenômeno local como as queimadas feitas pelos
escravos. Alexandre Vandelli discordou inicialmente de Burlamaque,
dizendo que o fenômeno desaparecia longe da costa.
Para Freire Allemão, em dois trabalhos expostos por
ele na Sociedade Vellosiana, a névoa que cobria a cidade do Rio de
Janeiro entre julho e outubro era apenas oriunda das queimadas, muito
comuns na época.
Em contraposição, Vandelli propôs em seu trabalho que
as névoas “tem relações intimas com outros phenomenos, que estão nas
mesmas circunstancias, como as estrellas errantes, auroras boreaes &c.”
(Vandelli, 1853, p. 7). Era uma explicação completamente diferente,
apesar de ainda em voga na época, que supunha uma constante influência
cósmica na atmosfera terrestre. As névoas teriam para Alexandre origem
astronômica, assim como acontecia com os meteoritos, os cometas e mesmo
as auroras boreais, constituídos por material de origem sideral. Apesar
de sua longa argumentação, Alexandre Vandelli aparentemente não
convenceu seus contemporâneos.
Não houve, após o longo texto de Vandelli,
continuação da disputa, já que após o ano em questão (1853) as reuniões
da Sociedade Vellosiana praticamente desapareceram, com algumas
tentativas esparsas de reativá-la, feitas por Freire Allemão, até o ano
de sua morte em 1866.
Alguns anos mais tarde Alexandre Antonio Vandelli
falece na cidade do Rio de Janeiro, a 13 de agosto de 1862, viúvo, aos
78 anos, de gastro-entero-colite. Era o fim de três gerações de
naturalistas que marcaram de maneira bastante assimétrica a ciência
luso-brasileira nascente. |
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Conclusão
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Portugal e Brasil
foram nações consideradas sempre à margem do processo científico
ocorrido entre os séculos XVIII e XIX. Este trabalho evidencia, através
das três personagens apresentadas, que sobrevivia uma concepção
ilustrada e fisiocrata de nação e cidadania desde a reforma pombalina, e
que tal concepção migrou para o Brasil nos oitocentos.
Luminares da ciência
portuguesa, como Domingos Vandelli, participaram da reestruturação
universitária em Coimbra, o que permitiu a esta Universidade ser um pólo
atrativo ainda maior de estudantes brasileiros. Entre eles estava José
Bonifácio de Andrada e Silva, conhecido em Portugal pelos seus vários
feitos científicos e no Brasil, sobretudo por sua participação política
a partir de 1822. Com Bonifácio, e posteriormente com seus discípulo e
genro Alexandre Antonio Vandelli (naturalista que uniu as duas famílias
com seu casamento), a trajetória do saber mudou de sentido. Se antes
brasileiros iam para a Europa apreender as Luzes, no século XIX passaram
a retornar para o Brasil trazendo as novas idéias, disseminando-as. Este
movimento tornou-se um dos vetores das profundas transformações que a
nação brasileira sofreu no século XIX, exemplificado por Alexandre
Vandelli, cientista vindo de terras portuguesas e que terminou sua
história na Corte de um novo país que buscava construir sua própria
identidade. |
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Referências |
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Carlos Alberto Lombardi Filgueiras
(Brasil)
Possui graduação em Engenharia Química pela
Universidade Federal de Minas Gerais (1967), doutorado em Química pela
Universdade de Maryland (1972) e pós-doutorado pela Universidade de
Cambridge (1980-1981), além de estágios curtos em várias universidades
do Brasil e do exterior. Foi por muitos anos professor da Universidade
Federal de Minas Gerais (1968-1997) e é atualmente é professor titular
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (desde 1997). Ensina e
pesquisa na área de Química Inorgânica, com ênfase em Compostos de
Coordenação e Organometálicos. Uma outra vertente de seu trabalho de
ensino e pesquisa é no campo da História da Ciência, em que também tem
pesquisado, publicado, lecionado e orientado estudantes em todos os
níveis. |
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Adílio Jorge Marques (Brasil)
Doutor em História e Filosofia da Ciência pelo
Programa HCTE da Universidade Federal do Rio de Janeiro, na área de
História da Ciência Luso-Brasileira. Mestre em Astrofísica pelo
Observatório Nacional. Bacharel e Licenciado em Física pela Universidade
do Estado do Rio de Janeiro. Professor e Coordenador de Física no
Colégio Santo Inácio-RJ e na rede pública de ensino do mesmo Estado.
Atualmente tem se dedicado a Projetos de História da Ciência,
especialmente na produção do saber luso-brasileiro.
E-mail: adiliojm@yahoo.com.br |
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© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
Rua Direita, 131
5100-344 Britiande
PORTUGAL |
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