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Também
o ensaísta, perante Terra e Sangue, teme quebrar a delicada película da
emoção, a intensa vibração do som e do sentido, e protesta seguir à
risca um sussurro longínquo que nos ordena, como quem pede: “por favor,
passem sem tocar, passem passem” (1), ou este fio de voz, ciciado, que embala um fantasma como se a um filho,
ou talvez o cósmico silêncio das esferas: “Shhhh, shhhh… / é hora de
mandar os fantasmas dormir” (2). Verso a verso, grito a grito, o mesmo é dizer sussurro a sussurro, se
estabelece uma inextrincável correlação entre as palavras e o corpo de
onde emanam – porque só do corpo pode nascer o espírito, como nos
ensinam os pensadores da imanência e do sensível - e por isso ainda
corpos, corpúsculos carregados da violenta emoção do mundo no ser, ou da
ontológica condição da carne; sucessivas ondas de sentido que dissecam o
sujeito de linguagem e o expõem nas suas vísceras mais recônditas, na
sua obscuridade mais transparente, numa experiência estética do abissal
de tipo existencialista. Estão aí todos os elementos que caracterizam a
condição existencial do homem, como esta “tremenda solidão / de corpo
completo / de ventre vazado” (3). Poesia da vida e da morte, de uma morte vital e de uma vida contaminada
desde o início pela morte, porque se morre no justo momento em que se
nasce, se é que se nasce, pois “a morte é tão rápida / que não dá tempo
para nascer” (4), ou ainda,
na vibrante alegoria biográfica traduzida no poema “Parto”, de Bela
Adormecida, que começa assim: “a mamã e eu / na madrugada de 29 de
Dezembro de 1974 / aproximámo-nos da morte. / Os meus ombros eram
demasiado largos e o médico / viu-se forçado a empurrar a minha cabeça
de volta ao útero” (5). Esta
condição da vida e da morte simbolizada e inscrita na convocação da mãe
e no acto da maternidade é aliás obsessivamente retomada sempre numa
perspectiva de perda, de ausência, de vazio: “O meu ventre é o meu mundo
interior. / o espaço vazio / de tudo o que fui deixando pelo caminho. //
O melhor lugar onde me procurar” (6).
Vida e morte, corpo que toca e que é tocado, aberto ou coberto por suas
máscaras ou véus de terra, de carne e sangue, sustentáculo, em
simultâneo, da “mão que fere e da mão que é ferida” (7). Fala que nasce da imanência, dos fluidos que circulam no interior do
corpo, um eu sensível vivido como experiência interior enquanto alma
imanente, de sentido kantiano, onde carne e espírito não são duas coisas
distintas mas dois aspectos correlativos da mesma realidade. Funde-se
nesta conformidade ideia e sensação, imanência e transcendência.
Movimento dramático que funde e confunde cenário e encenador, actor e
voz, onde a dor acontece e se faz palavra, circulada de sentidos como se
de sangue: “na distância observo as minhas mãos a fazer / como quem
observa as mãos de um actor” (8)
ou também: “não sei para onde vão as minhas personagens / porque é que
começam a falar / e logo se calam” (9).
A claridade e o enigma radicam desde início nesse inquietante mundo
sensível e um meticuloso sopro poético que nos diz em versos superiores
a verdade expressa por Merleau-Ponty: “Como meu corpo, que é um dos
visíveis, vê-se também a si mesmo e, por isso, torna-se luz natural
abrindo para o visível o seu interior, a fim de que venha a ser paisagem
minha, realizando (…) a miraculosa promoção do ser à ‘consciência’”
(10). Essa dobra interior do corpo, esse limiar entre a visibilidade e a
invisibilidade é sistematicamente convocada: “Ele tem a chave do quarto
da foice e da gadanha. / Engendrou a morte utópica. / Pretende fazer do
meu corpo um grande ataúde que a terra coma, / o forro que separa a luz
da obscuridade" (11). Porque
essa carne, como reitera o autor de O visível e o Invisível, não é
matéria “consiste no enovelamento do visível sobre o corpo vidente, do
tangível sobre o corpo tangente, atestado sobretudo quando o corpo se
vê, se toca vendo e tocando as coisas” (12).
Carne tão desprezada por uma longa tradição cultural e civilizacional
dualista que cindiu o homem em dois pólos opostos e que teve os seus
marcos assentes na tradição platónica e neo-platónica, pela moral
predominante no interior do cristianismo, bem como pela valorização da
lógica pura inscrita no pensamento de Descartes. “A carapaça do meu
corpo é um planeta” (13),
afirma, no pólo oposto, a poeta em A bela Adormecida, colocando o corpo
a ocupar um lugar central, agenciando o prazer e a dor, lugar do terreno
e do reflexo divino, por isso a sua reafirmação e convocação são uma
constante: “Amo a minha carne acima de todas as coisas. / Carne banhada
pela saliva dos deuses / que viajam através do meu sangue” (14).
Para além do mais o corpo é um sujeito de fala e que fala, expressa-se
na terrífica força da sua desarmante fragilidade. Também aqui, e
continuando a seguir pelos caminhos do filósofo francês, não só o mundo
permanece atrás do corpo como sobretudo atrás de uma essencial “fala
operante”, através da qual o corpo se deixa falar (15).
O corpo é pátria e exílio, espaço aberto e rasgado por linhas de fuga no
labirinto do ser, lugar desterritorializado - para pedirmos de
empréstimo a palavra bárbara cara a Gilles Deleuze e a Félix Guattari -
nos sucessivos abandonos e perdas de territórios vitais onde e por onde
o sujeito existe, na profunda verdade existencial e existencialista de
que para ser é preciso antes de mais existir. Insistentemente se ergue
no texto uma Geografia do desterro e do exílio: “Exilada? / Exilada seja
aquela que algum dia teve terra. / Não tu / que não tens nem rasto de pó
na tua memória / aniquilada (16).
E existencialista também essa inominável angústia que alastra pelo
espaço do poema, entranhada nos ritmos das sílabas e dos silêncios, mas
ainda tantas outras marcas da condição existencial como o absurdo do
mundo e da morte, a feroz e insuperável solidão do ser no mundo, a
angústia, o abandono, o desespero, a condição trágica da vivência,
repito, “desterritorializada” – desde logo ironicamente afirmada na
biografia constante na badana do livro Bela Adormecida: “Miriam Reyes
nasceu em Ourense em 1974 e em Caracas em 1983” - a revolta,
unissonamente serena e dilacerada, o terror, o medo, o permanente
horror, a visceral náusea, o vómito existencial: “eu, maravilhosa
artesã, / faço do meu asco a minha melhor criação /” (17)
ou ainda “apenas recordo o asco arrastando-se dedo a dedo (18).
Neste ser de linguagem, neste corpo de sentidos, embate o mundo e as
suas obscuridades: contradições, aberrações, alucinações, frustrações,
crimes, e eles, dialéctica e antiteticamente, ecoam poema a poema
enquanto luz e treva, amor e ódio, raiva e ternura, serenidade e
exasperação, no agudo sentido de um ser-no-mundo que é simultaneamente
um ser-na-morte e um ser-para-a-morte. Enclausurado no absurdo,
retalhado pelas lâminas dos dias, pode o sujeito recorrer pela memória
aos lugares míticos da infância que de aí nenhum alívio há-de vir, antes
um eco atroz, que permanece e perdura. O dilema enunciado por Luís
Quintais, noutro contexto, ganha aqui renovado sentido: “Como esquecer /
como não esquecer? (19)”. A
dialéctica entre a lembrança e o esquecimento requer uma longa e árdua
aprendizagem: “Ainda não sei pôr-me à parte do que vivi. / dominar a
memória, / cadela inexorável mais forte do que o porvir (20).
A redenção só pode chegar pela palavra poética, que há-de servir-se
dessa negra matéria-prima para a elaboração do soberbo edifício estético
erguido de livro em livro. E nessa opaca e inquietante nascente, onde o
corpo se faz agente primordial da subjectividade e da
intersubjectividade, não será de todo alheio a presença insinuante desse
sublime teorizado por Edmund Burke, citado inclusive pelo todo o
poderoso Emmanuel Kant na sua Crítica da Faculdade do Juízo”: “O
sentimento do sublime fundamenta-se sobre o instinto de auto-conservação
e sobre o medo, isto é sobre uma dor que, pelo facto de ela não chegar
até à destruição efectiva das partes corporais, produz movimentos que
(…) são capazes de provocar sensações agradáveis, na verdade não um
prazer, mas uma espécie de calafrio comprazente, uma certa calma que é
mesclada com terror (…) uma morte, um desaparecimento progressivo por
deleite”(21). O abissal, o
sinistro, a experiência do horror, do apocalíptico e do infinitamente
grande aqui não na natureza, mas no descomunal mistério humano,
sobretudo no insondável corpo de uma mulher: “João, conta-me o que tem
de apocalíptico / o corpo de uma mulher / (…) Depois de ter visto / a
destruição da terra / a guerra dos elementos / as mais maravilhosas
catástrofes / as cenas que em qualquer homem causariam a sublimação do
pânico / tu, homem de fé, / viste uma mulher coroada de estrelas. // (…)
sol, lua mulher e monstro num mesmo céu / só souberam relatar trevas:
(…) / (22). A palavra
poética é aqui mais uma vez o agente transformador e transfigurador da
realidade, metamorfoseando a treva em claridade, o horror em linguagem,
enquanto também acto de superação. “O poema ensina a cair / em vários
solos” (23). ensina-nos Luiza Neto Jorge, e porque o drama individual se universaliza pela
transfiguração estética, este poema vai também tomar a forma de um
genuíno e estóico acto de força e resistência. E o leitor chega a esta
poesia simultaneamente pela sensibilidade e pela razão e sente
apoderar-se de si o verdadeiro apelo estético inteligível e carnal,
livre de quaisquer interesses ideológicos ou peias morais, que só a
grande obra de arte é capaz de proporcionar, porque na verdade também a
mim, leitor, “os extremos tocam-me”, como assinalava André Gide.
A
obra da autora de Espelho Negro assume-se como a minuciosa
reconstituição de um mundo partido, cindido; uma anti-epopeia de ruínas,
de fragmentos, de estilhaços, daí se erguendo o poema em seu nítido
perfil, em sua fria incandescência, no seu imaculado corpo exposto,
aberto à palavra e à sua inesgotável fonte de fascínio. Rastos e restos,
caos, cinza ou areia na clepsida da vida: “Cinza nas malas / gravilha e
areia / junto ao cimento húmido coração (24).
Em suas ambas faces de visibilidade e de invisibilidade o poema surge,
também ele, enquanto corpo desnudo, ontologicamente desnudo, com o ser à
flor da carne; trágica e radicalmente liberto.
E
tudo isto é expresso num estilo sóbrio, limpo, seco, leve, também ele
existencialista, quase falado, na tangente à literalidade, onde a máxima
expressividade é conseguida pela máxima economia de meios: a pequena
nuance de ritmos, a suave deslocação de sentido, a subtil colisão de
significantes, a demonstração da secreta beleza da palavra quotidiana
quando aberta à luz do verso, a demonstração tão poderosa como discreta
de uma profunda e imemorial sabedoria, também ela emanando das ocultas
origens do ser feminino, traduzida em asserções lapidares, em breves
sentenças de cariz epigramático, como se epitáfios inscritos numa urna
de sol. “Diluída no quotidiano / fujo tão lentamente que / parece que
fico" (25), “Entrou-me água
na memória e está a levar tudo" (26),
“Por dentro eu / sou como estas ruínas" (27),
“a terra ácida não come apenas os ossos" (28),
“Lastimo-me / És uma lástima" (29),
“anda homem / levanta-te de ti" (30).
A
poeta consciente da perenidade da sua arte feita desta explosiva mistura
de luz, terra e sangue afirma-o, profetiza-o: “luz e sangue viajam /
para além de mim / e me sobrevivem (31).
Sibila, esfinge, sob a frágil e sucessiva carapaça das “bonecas russas”
a dureza da pedra, a brancura do mármore helénico no canto trágico ou na
luminosidade e equilíbrio de estilo igualmente clássicos: “És tão fria
como esta pedra / és como esta pedra. / Eu não o sabia / não soube que
era dura e fria / como o mármore branco da mesa / até aquela noite / (…)
Cada vez sou mais dura (…) se encontrasses uma pedra / tão dura como eu
/ sangravam-te as mão / só de a olhar (32).
Em suma, em poucas poéticas nos é dado notar tão exuberantemente a
famosa máxima de Novalis de que o caos deve resplandecer no poema sob o
véu incondicional da ordem. E sobre este tópico convoco uma vez mais as
palavras de Pedro Sena Lino: “Miriam Reyes escreve a poesia do corte, de
todos eles, mesmo quando nascem no centro do corpo ou do coração negado,
e consegue-a num equilíbrio mortal, terrível, sem nenhum excesso nem
gratuitidade que não a voz da memória absoluta do eu, corpo" (33).
“O
que podemos contra o horror?” (34),
pergunta ainda Luís Quintais em Duelo, Miriam Reys responde a abrir
Desalojos, traduzir-se em palavras: “Extraña manera de estar viva / esta
necesidad de traduccirse / em palavras" (35). |