REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2010 | Número 05

 

 

“A origem da beleza está na ferida”: é com esta frase de Jean Genet que Pedro Sena-Lino termina o seu tão breve quão cintilante posfácio a Bela Adormecida, segundo livro de Miriam Reyes, traduzido para português igualmente pelo autor de Biofagia.

Na verdade a poesia de Miriam Reyes brota no indelével e ontológico espaço da perda e do impuro, que enclausura o ser numa feroz angústia existencial num mundo em ruínas que se esboroa enquanto corpo agressor sobre um corpo agredido. A sua fonte primeira é um silêncio essencial que se faz grito, tanto mais grito na justa medida em que a palavra nunca se eleva para além da linha da terra que a origina e lhe confere uma inamovível e trágica serenidade.

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Maria Estela Guedes  
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FERNANDO

DE CASTRO BRANCO

 

O meu Corpo Desnudo Está Aqui

Ensaio sobre Terra e Sangue,

de Miriam Reyes

FERNANDO DE CASTRO BRANCO

 
 
 
 
 
 
 

Também o ensaísta, perante Terra e Sangue, teme quebrar a delicada película da emoção, a intensa vibração do som e do sentido, e protesta seguir à risca um sussurro longínquo que nos ordena, como quem pede: “por favor, passem sem tocar, passem passem” (1), ou este fio de voz, ciciado, que embala um fantasma como se a um filho, ou talvez o cósmico silêncio das esferas: “Shhhh, shhhh… / é hora de mandar os fantasmas dormir” (2). Verso a verso, grito a grito, o mesmo é dizer sussurro a sussurro, se estabelece uma inextrincável correlação entre as palavras e o corpo de onde emanam – porque só do corpo pode nascer o espírito, como nos ensinam os pensadores da imanência e do sensível - e por isso ainda corpos, corpúsculos carregados da violenta emoção do mundo no ser, ou da ontológica condição da carne; sucessivas ondas de sentido que dissecam o sujeito de linguagem e o expõem nas suas vísceras mais recônditas, na sua obscuridade mais transparente, numa experiência estética do abissal de tipo existencialista. Estão aí todos os elementos que caracterizam a condição existencial do homem, como esta “tremenda solidão / de corpo completo / de ventre vazado” (3). Poesia da vida e da morte, de uma morte vital e de uma vida contaminada desde o início pela morte, porque se morre no justo momento em que se nasce, se é que se nasce, pois “a morte é tão rápida / que não dá tempo para nascer” (4), ou ainda, na vibrante alegoria biográfica traduzida no poema “Parto”, de Bela Adormecida, que começa assim: “a mamã e eu / na madrugada de 29 de Dezembro de 1974 / aproximámo-nos da morte. / Os meus ombros eram demasiado largos e o médico / viu-se forçado a empurrar a minha cabeça de volta ao útero” (5). Esta condição da vida e da morte simbolizada e inscrita na convocação da mãe e no acto da maternidade é aliás obsessivamente retomada sempre numa perspectiva de perda, de ausência, de vazio: “O meu ventre é o meu mundo interior. / o espaço vazio / de tudo o que fui deixando pelo caminho. // O melhor lugar onde me procurar” (6). Vida e morte, corpo que toca e que é tocado, aberto ou coberto por suas máscaras ou véus de terra, de carne e sangue, sustentáculo, em simultâneo, da “mão que fere e da mão que é ferida” (7). Fala que nasce da imanência, dos fluidos que circulam no interior do corpo, um eu sensível vivido como experiência interior enquanto alma imanente, de sentido kantiano, onde carne e espírito não são duas coisas distintas mas dois aspectos correlativos da mesma realidade. Funde-se nesta conformidade ideia e sensação, imanência e transcendência. Movimento dramático que funde e confunde cenário e encenador, actor e voz, onde a dor acontece e se faz palavra, circulada de sentidos como se de sangue: “na distância observo as minhas mãos a fazer / como quem observa as mãos de um actor” (8) ou também: “não sei para onde vão as minhas personagens / porque é que começam a falar / e logo se calam” (9). A claridade e o enigma radicam desde início nesse inquietante mundo sensível e um meticuloso sopro poético que nos diz em versos superiores a verdade expressa por Merleau-Ponty: “Como meu corpo, que é um dos visíveis, vê-se também a si mesmo e, por isso, torna-se luz natural abrindo para o visível o seu interior, a fim de que venha a ser paisagem minha, realizando (…) a miraculosa promoção do ser à ‘consciência’” (10). Essa dobra interior do corpo, esse limiar entre a visibilidade e a invisibilidade é sistematicamente convocada: “Ele tem a chave do quarto da foice e da gadanha. / Engendrou a morte utópica. / Pretende fazer do meu corpo um grande ataúde que a terra coma, / o forro que separa a luz da obscuridade" (11). Porque essa carne, como reitera o autor de O visível e o Invisível, não é matéria “consiste no enovelamento do visível sobre o corpo vidente, do tangível sobre o corpo tangente, atestado sobretudo quando o corpo se vê, se toca vendo e tocando as coisas” (12). Carne tão desprezada por uma longa tradição cultural e civilizacional dualista que cindiu o homem em dois pólos opostos e que teve os seus marcos assentes na tradição platónica e neo-platónica, pela moral predominante no interior do cristianismo, bem como pela valorização da lógica pura inscrita no pensamento de Descartes. “A carapaça do meu corpo é um planeta” (13),  afirma, no pólo oposto, a poeta em A bela Adormecida, colocando o corpo a ocupar um lugar central, agenciando o prazer e a dor, lugar do terreno e do reflexo divino, por isso a sua reafirmação e convocação são uma constante: “Amo a minha carne acima de todas as coisas. / Carne banhada pela saliva dos deuses / que viajam através do meu sangue” (14).  Para além do mais o corpo é um sujeito de fala e que fala, expressa-se na terrífica força da sua desarmante fragilidade. Também aqui, e continuando a seguir pelos caminhos do filósofo francês, não só o mundo permanece atrás do corpo como sobretudo atrás de uma essencial “fala operante”, através da qual o corpo se deixa falar (15). O corpo é pátria e exílio, espaço aberto e rasgado por linhas de fuga no labirinto do ser, lugar desterritorializado - para pedirmos de empréstimo a palavra bárbara cara a Gilles Deleuze e a Félix Guattari - nos sucessivos abandonos e perdas de territórios vitais onde e por onde o sujeito existe, na profunda verdade existencial e existencialista de que para ser é preciso antes de mais existir. Insistentemente se ergue no texto uma Geografia do desterro e do exílio: “Exilada? / Exilada seja aquela que algum dia teve terra. / Não tu / que não tens nem rasto de pó na tua memória / aniquilada (16). E existencialista também essa inominável angústia que alastra pelo espaço do poema, entranhada nos ritmos das sílabas e dos silêncios, mas ainda tantas outras marcas da condição existencial como o absurdo do mundo e da morte, a feroz e insuperável solidão do ser no mundo, a angústia, o abandono, o desespero, a condição trágica da vivência, repito, “desterritorializada” – desde logo ironicamente afirmada na biografia constante na badana do livro Bela Adormecida: “Miriam Reyes nasceu em Ourense em 1974 e em Caracas em 1983” - a revolta, unissonamente serena e dilacerada, o terror, o medo, o permanente horror, a visceral náusea, o vómito existencial: “eu, maravilhosa artesã, / faço do meu asco a minha melhor criação /” (17) ou ainda “apenas recordo o asco arrastando-se dedo a dedo (18). Neste ser de linguagem, neste corpo de sentidos, embate o mundo e as suas obscuridades: contradições, aberrações, alucinações, frustrações, crimes, e eles, dialéctica e antiteticamente, ecoam poema a poema enquanto luz e treva, amor e ódio, raiva e ternura, serenidade e exasperação, no agudo sentido de um ser-no-mundo que é simultaneamente um ser-na-morte e um ser-para-a-morte. Enclausurado no absurdo, retalhado pelas lâminas dos dias, pode o sujeito recorrer pela memória aos lugares míticos da infância que de aí nenhum alívio há-de vir, antes um eco atroz, que permanece e perdura. O dilema enunciado por Luís Quintais, noutro contexto, ganha aqui renovado sentido: “Como esquecer / como não esquecer? (19)”. A dialéctica entre a lembrança e o esquecimento requer uma longa e árdua aprendizagem: “Ainda não sei pôr-me à parte do que vivi. / dominar a memória, / cadela inexorável mais forte do que o porvir (20). A redenção só pode chegar pela palavra poética, que há-de servir-se dessa negra matéria-prima para a elaboração do soberbo edifício estético erguido de livro em livro. E nessa opaca e inquietante nascente, onde o corpo se faz agente primordial da subjectividade e da intersubjectividade, não será de todo alheio a presença insinuante desse sublime teorizado por Edmund Burke, citado inclusive pelo todo o poderoso Emmanuel Kant na sua Crítica da Faculdade do Juízo”: “O sentimento do sublime fundamenta-se sobre o instinto de auto-conservação e sobre o medo, isto é sobre uma dor que, pelo facto de ela não chegar até à destruição efectiva das partes corporais, produz movimentos que (…) são capazes de provocar sensações agradáveis, na verdade não um prazer, mas uma espécie de calafrio comprazente, uma certa calma que é mesclada com terror (…) uma morte, um desaparecimento progressivo por deleite”(21). O abissal, o sinistro, a experiência do horror, do apocalíptico e do infinitamente grande aqui não na natureza, mas no descomunal mistério humano, sobretudo no insondável corpo de uma mulher: “João, conta-me o que tem de apocalíptico / o corpo de uma mulher / (…) Depois de ter visto / a destruição da terra / a guerra dos elementos / as mais maravilhosas catástrofes / as cenas que em qualquer homem causariam a sublimação do pânico / tu, homem de fé, / viste uma mulher coroada de estrelas. // (…) sol, lua mulher e monstro num mesmo céu / só souberam relatar trevas: (…) / (22). A palavra poética é aqui mais uma vez o agente transformador e transfigurador da realidade, metamorfoseando a treva em claridade, o horror em linguagem, enquanto também acto de superação. “O poema ensina a cair / em vários solos” (23). ensina-nos Luiza Neto Jorge, e porque o drama individual se universaliza pela transfiguração estética, este poema vai também tomar a forma de um genuíno e estóico acto de força e resistência. E o leitor chega a esta poesia simultaneamente pela sensibilidade e pela razão e sente apoderar-se de si o verdadeiro apelo estético inteligível e carnal, livre de quaisquer interesses ideológicos ou peias morais, que só a grande obra de arte é capaz de proporcionar, porque na verdade também a mim, leitor, “os extremos tocam-me”, como assinalava André Gide.

A obra da autora de Espelho Negro assume-se como a minuciosa reconstituição de um mundo partido, cindido; uma anti-epopeia de ruínas, de fragmentos, de estilhaços, daí se erguendo o poema em seu nítido perfil, em sua fria incandescência, no seu imaculado corpo exposto, aberto à palavra e à sua inesgotável fonte de fascínio. Rastos e restos, caos, cinza ou areia na clepsida da vida: “Cinza nas malas / gravilha e areia / junto ao cimento húmido coração (24). Em suas ambas faces de visibilidade e de invisibilidade o poema surge, também ele, enquanto corpo desnudo, ontologicamente desnudo, com o ser à flor da carne; trágica e radicalmente liberto.  

E tudo isto é expresso num estilo sóbrio, limpo, seco, leve, também ele existencialista, quase falado, na tangente à literalidade, onde a máxima expressividade é conseguida pela máxima economia de meios: a pequena nuance de ritmos, a suave deslocação de sentido, a subtil colisão de significantes, a demonstração da secreta beleza da palavra quotidiana quando aberta à luz do verso, a demonstração tão poderosa como discreta de uma profunda e imemorial sabedoria, também ela emanando das ocultas origens do ser feminino, traduzida em asserções lapidares, em breves sentenças de cariz epigramático, como se epitáfios inscritos numa urna de sol. “Diluída no quotidiano / fujo tão lentamente que / parece que fico" (25), “Entrou-me água na memória e está a levar tudo" (26), “Por dentro eu / sou como estas ruínas" (27), “a terra ácida não come apenas os ossos" (28), “Lastimo-me / És uma lástima" (29), “anda homem / levanta-te de ti" (30).

 A poeta consciente da perenidade da sua arte feita desta explosiva mistura de luz, terra e sangue afirma-o, profetiza-o: “luz e sangue viajam / para além de mim / e me sobrevivem (31). Sibila, esfinge, sob a frágil e sucessiva carapaça das “bonecas russas” a dureza da pedra, a brancura do mármore helénico no canto trágico ou na luminosidade e equilíbrio de estilo igualmente clássicos: “És tão fria como esta pedra / és como esta pedra. / Eu não o sabia / não soube que era dura e fria / como o mármore branco da mesa / até aquela noite / (…) Cada vez sou mais dura (…) se encontrasses uma pedra / tão dura como eu / sangravam-te as mão / só de a olhar (32). Em suma, em poucas poéticas nos é dado notar tão exuberantemente a famosa máxima de Novalis de que o caos deve resplandecer no poema sob o véu incondicional da ordem. E sobre este tópico convoco uma vez mais as palavras de Pedro Sena Lino: “Miriam Reyes escreve a poesia do corte, de todos eles, mesmo quando nascem no centro do corpo ou do coração negado, e consegue-a num equilíbrio mortal, terrível, sem nenhum excesso nem gratuitidade que não a voz da memória absoluta do eu, corpo" (33).

 “O que podemos contra o horror?” (34), pergunta ainda Luís Quintais em Duelo, Miriam Reys responde a abrir Desalojos, traduzir-se em palavras: “Extraña manera de estar viva / esta necesidad de traduccirse / em palavras" (35).  

 

 

(1) Miriam Reyes, Terra e Sangue, Maia, Cosmorama Edições, p. 109.

(2) Idem, p. 175.

(3) Idem, p. 15.

(4) Idem, p. 37.

(5) Idem, p. 37.

(6) Idem, p. 121.

(7) Silvina Rodrigues Lopes, A Inocência do Devir, Viseu, Edições vendaval, 2003, p. 67.

(8) Terra e Sangue, p. 135.

(9) Idem, p. 157.

(10) Merleau-Ponty, O Visível e o Invisível, São Paulo, Editora Perspectiva, p. 116.

(11) Terra e Sangue, pág. 17.

(12) O Visível e o Invisível, p. 141.

(13) Terra e Sangue, p. 125.

(14) Ibidem.

(15) Cf, O visível e o Invisível, p. 117.

(16) Terra e Sangue, p. 63.

(17) Idem, p. 23.

(18) Idem, p. 109.

(19) Luís Quintais, Duelo, Lisboa, Cotovia, 2004, pp. 83/84.

(20) Terra e Sangue, p. 129.

(21) Edmund Burke citado po Immanuel Kant em Crítica da faculdade do Juízo, Lisboa, INCM, 1998, p. 177.

(22) Terra e Sangue, p. 13.

(23) Luiza Neto Jorge, Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 1993, p. 141.

(24) Idem, p. 179.

(25) Idem, p. 167.

(26) Idem, p. 161.

(27) Idem, p. 167.

(28) Idem, p. 69.

(29) Idem, p. 73.

(30) Idem, p. 79.

(31) Idem, p. 119.

(32) Idem, p. 111.

(33) Pedro Sena Lino, Posfácio a Bela Adormecida, Maia, Cosmorama Edições, 2006, p. 104.

(34) Luís Quintais, Duelo, Lisboa, Cotovia, 2004  p. 86.

(35) Miriam Reyes, Desalojos, Madrid, Ediciones Hiperión, 2008, p. 9.

 
 

 

Fernando de Castro Branco (Duas Igrejas, Portugal, 1959).
Mestre em Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea, pela FLUP. Publicou o ensaio Poética do Sensível em Albano Martins, e vários livros de poesia, nomeadamente O Nome dos Mortos, Biografia das Sombras, Estrelas Mínimas, Plantas Hidropónicas, Marcas de Verões Partidos e Arte do Espaço. Estes dois últimos títulos integrados no volume A Carvão – Poesia Reunida. Publicou também poemas e ensaios em revistas literárias portuguesas, espanholas e brasileiras. Está presente em múltiplas antologias temáticas.

 

 

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