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Todavia, a clarividência bem depressa se emaranhou no jogo duplo da
verdade, que ora se oculta ora se revela, consoante uma abertura
autêntica e epifânica ou uma dissolução errante e obscura.
Considere-se o seguinte texto de Chau Kim:
“No século III a.C., o rei Ts'ao mandou o seu filho, o príncipe Tai,
estudar para a escola do templo sob a direcção do grande mestre Pan Ku.
Como o príncipe Tai ia suceder a seu pai como rei, Pan Ku devia
ensinar-lhe os princípios para se tomar num bom soberano. Quando o
príncipe chegou ao templo, o mestre mandou-o ir sozinho para a floresta
Ming-li. Ao fim de um ano, o príncipe devia voltar ao templo e
descrever os sons da floresta.
Quando o príncipe Tai voltou, Pan Ku pediu-lhe para descrever tudo
aquilo que tinha ouvido.
- Mestre, respondeu o príncipe, eu ouvi os cucos a cantar, as folhas a
sussurrar, os beija-flores, os grilos a cantar, a erva a ondular, as
abelhas a zumbir e o vento a murmurar e a chamar. Quando o príncipe
terminou, o mestre disse-lhe para voltar para a floresta para escutar o
que mais conseguia ouvir. O príncipe ficou confuso com o pedido do
mestre. Será que ele não tinha distinguido já todos os sons?
Durante dias e noites sem fim, o príncipe esteve sentado sozinho na
floresta, à escuta. Mas não ouviu outros sons para além daqueles que já
tinha ouvido. Então, uma manhã, quando o príncipe se encontrava
silenciosamente sentado debaixo das árvores, começou a distinguir débeis
sons, diferentes de todos aqueles que já tinha ouvido. Quanto mais
intensamente escutava, mais perceptíveis os sons se iam tornando.
Sentiu-se invadido por um sentimento de clarividência.
- Devem ser estes os sons que o mestre queria que eu distinguisse,
reflectiu.
Quando o príncipe Tai voltou ao templo, o mestre perguntou-lhe o que
tinha ouvido de novo.
- Mestre, enquanto escutei com mais atenção, ouvi o inescutável - o som
das flores a abrirem, o som do Sol a aquecer a Terra e o som da relva a
beber o orvalho matinal.
O mestre acenou com a cabeça em sinal de aprovação:
- Ouvir o inescutável - disse Pan Ku - é uma disciplina necessária para
quem quer chegar à verdade.”
Este texto convoca para nós, os modernos, o insólito apelo de uma
experiência singular do espaço, o espaço da utopia, como é aqui evocado
na figura do templo, da escola e da floresta – o dispositivo do grande
jardim do conhecimento.
“As utopias são locais sem lugar real. São os locais que estabelecem
com o espaço real da sociedade uma relação geral de analogia directa ou
invertida”, como diz Foucault em “Des espaces autres” (1967)(1).
No texto de Pan Ku, a floresta é um espaço ideal de educação, um
paradigma de educação e de revelação da verdade que deve ser vivido
intensamente, como se a consciência fosse ao mesmo tempo um espelho
animado e um princípio de metamorfose das coisas. Na perspectiva de
uma integração absoluta do microcosmos humano e do macrocosmo da
natureza, a utopia, enquanto abertura para uma outra dimensão, não
reivindica apenas a possibilidade de uma mestria integral, mas evoca
também a ideia de educação como uma epifania absolutamente singular, uma
espécie de alumbramento.
É
por isso que a utopia é um instrumento fundamental da pedagogia e da
educação, como foi reconhecido desde há muito tempo por quase todos os
grandes educadores da humanidade, nomeadamente por Platão, com a sua
Alegoria da Caverna.
A
utopia permite a imagem e o seu dispositivo discursivo: ela situa-se na
própria linha da linguagem, na dimensão fundamental de um ensinamento
que implica discurso e imagem.
Como disse Foucault, no prefácio de As palavras e as coisas
(1966):
“As
utopias consolam, porque se não dispõem de um tempo real, disseminam-se,
no entanto, num espaço maravilhoso e liso, abrem cidades de vastas
avenidas, jardins bem cultivados, países fáceis, mesmo que o acesso a
eles seja quimérico.”
(2).
Mas
não somos confrontados somente com o espaço da utopia. Também vivemos
num espaço heterogéneo, em diferentes espaços, sob o signo da ruptura e
da diferença.
Considere-se, seguidamente, o espaço do labirinto, tal como é evocado no
Mito de Creta:
Minos, rei de Creta, fez um pacto com o deus Poseidon: se ele lhe desse
a soberania dos mares, dar-lhe-ia, como contrapartida, o mais belo
touro branco de seu rebanho. O deus aceitou o acordo e Creta prosperou.
Mas como Minos era muito avarento, na hora de entregar seu belo touro,
enganou o deus, oferecendo-lhe um outro que não era tão belo. Poseidon
pediu ajuda a Vénus para castigar Minos. A deusa do Amor insuflou a
esposa de Minos, Pasifae de um desejo incontrolável pelo touro branco. A
fim de satisfazer o seu desejo, Pasifae mandou então construir um touro
de madeira, onde ela pudesse unir-se ao touro em segredo. Dessa
paixão nasceu o Minotauro, um animal com corpo de homem e cabeça de
touro, que se alimentava de carne humana. Como o Minotauro representava
a vergonha de Minos, por ser o fruto do adultério da mulher, foi
enclausurado num labirinto, onde era alimentado com jovens raparigas
vindas de Atenas. Teseu, filho do rei de Atenas, resolveu matar o
Minotauro e com a ajuda de Ariane, filha do rei de Minos e do seu novelo
entrou no labirinto onde conseguiu acabar com o monstro.
Que
estranho espaço é este que a evocação do labirinto traz ao nosso
horizonte?
O
labirinto é uma heterotopia.
O
termo heterotopia é de Foucault e foi objecto da sua meditação nos anos
de 1966 e 1967. No prefácio de As palavras e as coisas (1966) e
numa conferência de 1967, intitulada “Des espaces autres”.
Se a
utopia pode ser considerada como um lugar ideal de consolação, a
heterotopia deve ser compreendida fundamentalmente como um lugar real
de inquietação.
“As heterotopias inquietam, sem dúvida, porque minam secretamente a
linguagem, porque impedem de nomear isto e aquilo, porque quebram os
nomes comuns ou os emaranham, porque de antemão arruínam a ‘sintaxe’, e
não apenas a que constrói as frases mas também a que, embora menos
manifesta, ‘faz manter em conjunto’ (ao lado e em frente umas das
outras) as palavras e as coisas.”
Retome-se a heterotopia do labirinto e veja-se de que modo é que ela é
ainda significativa do ponto de vista da clarificação da condição
humana.
Em
primeiro lugar, o labirinto convoca um lugar real, um lugar efectivo, um
lugar desenhado pela própria instituição social que o compreende e
justifica como um lugar poderoso de controle de poderes que de outro
modo poderiam disseminar-se perigosamente. É um lugar de exercício do
poder. Uma espécie de utopia efectivamente realizada. Parafraseando
Foucault, dir-se-á que no labirinto encontramos todos os outros lugares
reais que podem ser encontrados no interior da cultura que os gera, que
são, ao mesmo tempo, representados, contestados e invertidos, a ponto do
próprio monstro poder ser pensado como dominado e suprimido, tornando
possível a representação do próprio labirinto como prometedoramente
eficaz e realmente desnecessário.
Em
segundo lugar, a heterotopia do labirinto, sob o ponto de vista do
pensar moderno, é o espaço real do monstro, a caverna que a razão não
pode dispensar (o sonho da razão produz monstros, como dizia Goya).
Pode
dizer-se, do ponto de vista das nossas heterotopias, que antes da
heterotopia da monstruosidade (moral), há a heterotopia da ficção do
monstro. De acordo com Jorge Luis Borges, em Monstros e
Monstruosidades, um bom exemplo da longa história de invenção de
monstros é aquele que é revelado sob o signo da literatura: os gregos
engendraram a quimera, o monstro com cabeça de leão, com cabeça de
dragão, com cabeça de cabra; os teólogos do século II, a Trindade, na
qual inextrincavelmente se articulam o Pai, o Filho e o Espírito Santo;
os zoólogos chineses, o ti-yiang, o pássaro sobrenatural vermelho,
dotado de seis patas e quatro asas, mas sem cara nem olhos; os geómetras
do século XIX, o hipercubo, figura de quatro dimensões, que encerra um
número infinito de cubos e que está limitado por oito cubos e por vinte
e quatro quadrados. Hollywood não cessa de enriquecer esse inútil museu
teratológico com uma sucessão de filmes cada vez mais arrojados técnica
e conceptualmente.
O monstro está no labirinto como peixe na água. Segundo Jean
Chevalier, os monstros representam uma ameaça exterior e mostram também
um perigo interior, são como formas horríveis de um desejo pervertido.
Eles procedem de uma certa angústia, da qual são as imagens. Pois a
angústia é um determinado estado compulsivo, composto de duas atitudes
diametralmente opostas: a exaltação desejosa e a inibição amedrontada (3).
Etimologicamente, monstro origina-se de mostrar, apontar um
problema ou alguém diverso de si mesmo. A
palavra monstro deriva do verbo latino mostrare,
que significa mostrar, tornar evidente. Sendo assim, monstro é o que
mostra. Aquilo que mostra ou torna evidente, alguma coisa que chama a
atenção para uma diferença incontornável, que não pode ser suspensa ou
suprimida no seu mostrar-se e que, mediante um tal mostrar, ensina e
educa aqueles a quem se mostra.
O labirinto é um espaço real tal como a realidade do monstro,
como bem o mostra a a literatura portuguesa, nomeadamente Eça de Queirós
e Cesário Verde.
Em Cesário Verde (O Sentimento de um Ocidental):
“Nas nossas ruas ao anoitecer,/Há tal soturnidade, há tal
melancolia,/Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia/Despertam-me um
desejo absurdo de sofrer.”
Ou ainda:
“Descalças! Nas descargas de carvão,/Desde manhã à noite, a bordo
das fragatas;/E apinham-se num bairro onde miam gatas,/E e o peixe podre
gera os focos de infecção!”.
Em Eça de Queirós (A Cidade e as Serras):
“A densa corrente dos ónibus, calhambeques, carroças, parelhas de
luxo, rolava vivamente, com toda uma escura humanidade formigando entre
patas e rodas, numa pressa inquieta. (…) Imóveis, decerto, eram os altos
prédios hirtos, como e as hirtas ribas de pedra e cal, que continham,
disciplinavam, a torrente ofegante. Mas da rua aos telhados, em cada
varanda, por toda a fachada, eram tabuletas encimando tabuletas, que
outras tabuletas apertavam – e mais me cansava o perceber a incessância
do trabalho, a rija canseira do lucro, que arfava por trás das fachadas
decorosas e mudas. (…) Dois impulsos únicos, correspondendo a duas
funções únicas, parecia estarem vivos naquela multidão, - a do lucro, a
do gozo. (…) Aquele Boulevard já me ressumava um bafo mortal, exalado
dos milhões dos seus micróbios. De cada porta me parecia sair um ardil
para me roubar. Em cada avistada à portinhola de um fiacre, suspeitava
um bandido trabalhando; todas as mulheres me pareciam caiadas como
sepulcros, tendo só por dentro podridão.”
Ainda segundo Eça de Queirós, é no labirinto (cidade) que habita o
monstro dos monstros:
“…Porque o Homem pensa ter na Cidade a base de toda a sua grandeza
e só nela tem a fonte de toda a sua miséria. Vê Jacinto! Na Cidade
perdeu ele a força e a beleza harmoniosa do corpo, e se tornou esse ser
ressequido e escanifrado ou obeso e afogado em unto, de ossos moles como
trapos, de nervos trémulos como arames, com cangalhas, com chinós, com
dentaduras de chumbo, sem sangue, sem febra, sem viço, torto, corcunda.
(…) Na Cidade findou a sua liberdade moral: cada manhã ela lhe impõe uma
necessidade, e cada necessidade para uma dependência: pobre e
subalterno, a sua vida é um constante solicitar, adular, vergar,
rastejar, aturar: rico e superior como um Jacinto, a Sociedade logo o
enreda em tradições, preceitos, etiquetas, cerimónias, praxes, ritos,
serviços mais disciplinares que os de um cárcere ou de um quartel.”
Para nós, os modernos, para quem o gosto da clarividência não pode ser
dissociado do labirinto, a nossa morada mais autêntica, ou do monstro, o
nosso ser mais genuíno, a questão não pode ser senão esta: o que é que
há entre o Céu e a Terra? Na heterotopia, que é a nossa quase idealidade
realizada (materialidade), há ainda a verdade e o conhecimento do todo e
da heterogeneidade?
Como diz Nietzsche, em Acerca da verdade e da mentira no sentido
extramoral (1873), “existem forças terríveis" (4). Pode esperar-se que essas forças sejam as forças da Verdade e do
Conhecimento? O guardião desse templo é o filósofo, como desejava
Platão?
Todavia, para Nietzsche, o filósofo não pode aspirar a ser senão o fiel
servidor do columbário (heterotopia do mundo das ideias), na medida em
que ele tem o poder de fazer da “arte” a experiência da verdade como
não verdade.
Talvez entre o céu e a terra haja apenas o impulso da verdade, a arte do
labirinto e do alumbramento.
Mas o que é que significa aqui a expressão “arte”?
O que é que é há para admirar na clarividência do todo ou na
clarividência da utopia, se tal via não significa senão experiência da
verdade como não verdade?
De acordo com Nietzsche: “Se alguém esconde uma coisa por trás de um
arbusto, nesse exacto lugar a procura de novo e a encontra, nesse
procurar e encontrar não há muito que enaltecer: no entanto, é isso que
se passa com o procurar e encontrar da ‘verdade’ no interior da razão”
(5).
Havendo uma questão fundamental, ela não é senão a de saber como será
possível a heterotopia do labirinto e do monstro. Pode dispensar-se a
autoconfiança da verdade, da clarividência do conhecimento da verdade?
Diz Nietzsche: “No fundo, o homem vigil só tem a certeza de estar
desperto devido à teia dos conceitos sólida e regular, e precisamente
por isso cai às vezes na crença de que está a sonhar quando esta teia
de conceitos é ocasionalmente rasgada pela arte" (6).
Se o que se enuncia como sentido sonda e habita originariamente um tal
acto de rasgar a que chamamos arte, “para que trabalho poderão os
homens querer um filósofo?, interroga-se Nietszche em O livro do
filósofo, uma colectânea que reúne alguns dos textos fundamentais de
Nietzsche dos anos 1872-1875
(7).
O filósofo é o mestre da “aparência”. Não será para guardião do
“templo das ideias clarividentes” que o “filósofo” é requerido. Isto
porque a filosofia não deve ser entendida como “clarividência” ou
“conhecimento”. Dentro do labirinto, é preciso concebê-la como
“criação”, isto é, “arte”. A filosofia é o monstro do nosso labirinto.
E “só aquele que fosse capaz de considerar o mundo inteiro como
aparência estaria em estado de o perspectivar sem desejo e sem instinto:
o artista e o filósofo” (8).
Entre o Céu e a Terra há a arte que penetra o labirinto e interpela o
monstro. Estando nós aqui, respirando esse ar, bebendo dessa água,
regozijemo-nos, então, com a vinda paradoxal do “filósofo”, esse
velho renovador de utopias e de monstros. |