REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2010 | Número 05

 

 

No princípio, a origem da clarividência era o Todo. Aquém da simples possibilidade da dúvida ou da incerteza,   entre o Céu e a Terra não  havia senão a Verdade. De acordo com a fórmula de Hermes Trismegisto, o nome daquele que possuía as três partes  da sabedoria de todo o universo:

“O que está em baixo assemelha-se ao que está em cima, e o que está em cima ao que está em baixo, para realizar os prodígios do Uno. E como todas as coisas emanam do Uno, da meditação do Uno, assim também todas as coisas nasceram  desse Uno por adaptação. O Sol é o pai, a Lua a mãe; o Vento transportou-o  no seu ventre e a Terra é a sua ama. Ele é o pai de todas as maravilhas do mundo. É plena a sua força quando se converte em Terra. Separa a Terra do Fogo e o subtil do imperfeito, docemente, com grande engenho. Sobe da Terra ao Céu e daí regressa à Terra, e recebe a força das coisas superiores e inferiores. Assim obterás  toda a clarividência do mundo, e toda a obscuridade se afastará de ti. É a força de todas as forças, pois vence toda a subtileza e penetra toda a densidade.  Deste modo foi criado o Mundo. Assim serão operadas admiráveis variações e adaptações, para as quais é aqui dado o meio”.

DIRECÇÃO

 
Maria Estela Guedes  
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AMÍLCAR COELHO

 

Entre o Céu e a Terra

há a arte que penetra o labirinto

e interpela o monstro

IX COLÓQUIO INTERNACIONAL «DISCURSOS E PRÁTICAS ALQUÍMICAS»
Benedita (Portugal). 29-30 de Maio de 2010

 
 
 
 
 
 
 

Todavia, a clarividência bem depressa se emaranhou no  jogo  duplo da verdade, que ora se oculta ora se revela, consoante uma abertura  autêntica e epifânica ou uma dissolução errante e obscura.

Considere-se o  seguinte texto de Chau Kim:

“No século III a.C., o rei Ts'ao mandou o seu filho, o príncipe Tai, estudar para a escola do templo sob a direcção do grande mestre Pan Ku. Como o príncipe Tai ia suceder a seu pai como rei, Pan Ku devia ensinar-lhe os princípios para se tomar num bom soberano. Quando o príncipe chegou ao templo, o mestre mandou-o ir sozinho para a floresta Ming-li. Ao fim de um  ano, o príncipe devia voltar ao templo e descrever os sons da floresta.

Quando o príncipe Tai voltou, Pan Ku pediu-lhe para descrever tudo aquilo que tinha ouvido.

- Mestre, respondeu o príncipe, eu ouvi os cucos a cantar, as folhas a sussurrar, os beija-flores, os grilos a cantar, a erva a ondular, as abelhas a zumbir e o vento a murmurar e a chamar. Quando o príncipe terminou, o mestre disse-lhe para voltar para a floresta para escutar o que mais conseguia ouvir. O príncipe ficou confuso com o pedido do mestre. Será que ele não tinha distinguido já todos os sons?

Durante dias e noites sem fim, o príncipe esteve sentado sozinho na floresta, à escuta. Mas não ouviu outros sons para além daqueles que já tinha ouvido. Então, uma manhã, quando o príncipe se encontrava silenciosamente sentado debaixo das árvores, começou a distinguir débeis sons, diferentes de todos aqueles que já tinha ouvido. Quanto mais intensamente escutava, mais perceptíveis os sons se iam tornando. Sentiu-se invadido por um sentimento de clarividência.

- Devem ser estes os sons que o mestre queria que eu distinguisse, reflectiu.

Quando o príncipe Tai voltou ao templo, o mestre perguntou-lhe o que tinha ouvido de novo.

- Mestre, enquanto escutei com mais atenção, ouvi o inescutável - o som das flores a abrirem, o som do Sol a aquecer a Terra e o som da relva a beber o orvalho matinal.

O mestre acenou com a cabeça em sinal de aprovação:

- Ouvir o inescutável -  disse Pan Ku - é uma disciplina necessária para quem quer chegar à verdade.”

Este texto convoca para nós, os modernos, o insólito apelo de uma experiência singular do espaço, o  espaço da utopia, como é aqui evocado na figura do templo, da escola e da floresta – o dispositivo do grande jardim do conhecimento. 

“As utopias são locais sem lugar real. São os locais que estabelecem com o espaço real da sociedade uma relação geral de analogia directa ou invertida”, como diz  Foucault em “Des espaces autres” (1967)(1).

No texto de Pan Ku,  a floresta é um  espaço ideal de educação, um   paradigma de educação e de revelação da verdade que deve ser vivido intensamente, como se a consciência fosse ao mesmo tempo um espelho animado e  um  princípio de metamorfose das coisas. Na perspectiva de uma integração absoluta do microcosmos humano e do macrocosmo da natureza, a  utopia, enquanto abertura para uma outra dimensão, não reivindica apenas a possibilidade de uma mestria integral, mas evoca   também a ideia de educação como uma epifania absolutamente singular, uma espécie de alumbramento.

É por isso que a utopia é um instrumento fundamental da pedagogia e da educação, como foi reconhecido desde há muito tempo por quase todos os grandes educadores da humanidade, nomeadamente por Platão, com a sua Alegoria da Caverna. 

A utopia permite a imagem e o seu dispositivo discursivo: ela situa-se na própria linha da linguagem, na dimensão fundamental de um ensinamento que implica discurso e imagem.

Como disse Foucault, no prefácio de As palavras e as coisas (1966):

“As utopias consolam, porque se não dispõem de um tempo real, disseminam-se, no entanto, num espaço maravilhoso e liso, abrem cidades de vastas avenidas, jardins bem cultivados, países fáceis, mesmo que o acesso a eles seja quimérico.” (2).

Mas não somos confrontados somente com o  espaço da utopia. Também vivemos num espaço heterogéneo, em diferentes espaços, sob o signo da ruptura e da diferença.

Considere-se, seguidamente, o espaço do labirinto, tal como é evocado no Mito de Creta:

Minos, rei de Creta, fez um pacto com o deus Poseidon: se ele lhe desse a soberania dos mares, dar-lhe-ia,  como contrapartida,  o mais belo touro branco de seu rebanho. O deus aceitou o acordo e Creta prosperou. Mas como  Minos era muito avarento, na hora de entregar seu belo touro, enganou o deus, oferecendo-lhe um  outro que não era tão  belo. Poseidon pediu ajuda a  Vénus para castigar Minos.  A deusa do Amor insuflou a esposa de Minos, Pasifae de um desejo incontrolável pelo touro branco. A fim de satisfazer o seu desejo, Pasifae mandou então  construir um touro de madeira, onde ela pudesse  unir-se  ao touro em segredo. Dessa paixão nasceu o Minotauro, um animal com corpo de homem e cabeça de touro, que se alimentava de carne humana. Como o Minotauro representava a vergonha de Minos, por ser o fruto do adultério da mulher, foi enclausurado num labirinto, onde era alimentado com  jovens raparigas vindas de Atenas. Teseu, filho do rei de Atenas, resolveu matar o Minotauro e com a ajuda de Ariane, filha do rei de Minos e do seu novelo entrou no labirinto onde  conseguiu  acabar com  o monstro.

Que estranho espaço é este que a evocação  do  labirinto traz ao nosso horizonte?

O labirinto é uma heterotopia.

O termo heterotopia é de Foucault e foi objecto da sua meditação nos anos de 1966 e 1967. No prefácio de As palavras e as coisas (1966) e  numa conferência de 1967, intitulada “Des espaces autres”.

Se a utopia pode ser considerada como um lugar ideal de consolação, a heterotopia deve ser compreendida  fundamentalmente como um lugar real de inquietação.

“As heterotopias inquietam, sem dúvida, porque minam secretamente a linguagem, porque impedem de nomear isto e aquilo, porque quebram os nomes comuns ou os emaranham, porque de antemão arruínam a ‘sintaxe’, e não apenas a que constrói as frases mas também a que, embora menos manifesta, ‘faz manter em conjunto’ (ao lado e em frente umas das outras) as palavras e as coisas.” 

Retome-se a heterotopia do labirinto e veja-se de que modo é que ela é ainda significativa do ponto de vista da clarificação da condição humana.

Em primeiro lugar, o labirinto convoca um lugar real, um lugar efectivo, um lugar desenhado pela própria instituição social  que o compreende e justifica como um lugar poderoso de controle de poderes que de outro modo poderiam  disseminar-se perigosamente. É um lugar de exercício do poder. Uma espécie de utopia efectivamente realizada. Parafraseando Foucault, dir-se-á que  no labirinto encontramos todos os outros lugares reais que podem ser encontrados no interior da cultura que os gera, que são, ao mesmo tempo, representados, contestados e invertidos, a ponto do próprio monstro poder ser pensado como dominado e suprimido, tornando possível a representação do   próprio labirinto como prometedoramente  eficaz e realmente desnecessário.

Em segundo lugar, a heterotopia do labirinto, sob o ponto de vista do pensar moderno,   é o espaço real do monstro, a  caverna que a razão não pode dispensar  (o sonho da razão produz monstros, como dizia Goya).

Pode dizer-se, do ponto de vista das nossas heterotopias, que antes da heterotopia da monstruosidade (moral), há a heterotopia da ficção do monstro. De acordo com Jorge Luis Borges, em Monstros e Monstruosidades,  um bom exemplo da  longa história de invenção de monstros é aquele que é revelado sob o signo da literatura:  os gregos engendraram a quimera, o  monstro com cabeça de leão, com cabeça de dragão, com cabeça de cabra; os teólogos do século II, a Trindade, na qual inextrincavelmente se articulam o Pai, o Filho e o Espírito Santo; os zoólogos  chineses, o ti-yiang, o pássaro sobrenatural vermelho, dotado de seis patas e quatro asas, mas sem cara nem olhos; os geómetras do século XIX, o hipercubo, figura de quatro dimensões, que encerra um número infinito de cubos e que está limitado por oito cubos e por vinte e quatro quadrados. Hollywood não cessa de enriquecer esse inútil museu teratológico com uma sucessão de filmes cada vez mais arrojados técnica e conceptualmente.

O monstro está no labirinto como peixe na água. Segundo Jean Chevalier, os monstros representam uma ameaça exterior e mostram também um perigo interior, são como formas horríveis de um desejo pervertido. Eles procedem de uma certa angústia, da qual são as imagens. Pois a angústia é um determinado estado compulsivo, composto de duas atitudes diametralmente opostas: a exaltação desejosa e a inibição amedrontada (3).

Etimologicamente, monstro origina-se de mostrar, apontar um problema ou alguém diverso de si mesmo. A palavra monstro deriva do verbo latino mostrare, que significa mostrar, tornar evidente. Sendo assim, monstro é o que  mostra. Aquilo que  mostra ou torna evidente, alguma coisa  que chama a atenção para uma diferença incontornável, que não pode ser suspensa ou suprimida no seu mostrar-se e que, mediante um tal mostrar, ensina e educa aqueles a quem se mostra. 

O  labirinto é um espaço real tal como a  realidade do monstro, como bem o mostra a a literatura portuguesa, nomeadamente Eça de Queirós e Cesário Verde.

Em Cesário Verde (O Sentimento de um Ocidental):

“Nas nossas ruas ao anoitecer,/Há tal soturnidade, há tal melancolia,/Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia/Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.” 

Ou ainda:

“Descalças! Nas descargas de carvão,/Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;/E apinham-se num bairro onde miam gatas,/E e o peixe podre gera os focos de infecção!”.

Em Eça de Queirós (A Cidade e as Serras):

“A densa corrente dos ónibus, calhambeques, carroças, parelhas de luxo, rolava vivamente, com toda uma escura humanidade formigando entre patas e rodas, numa pressa inquieta. (…) Imóveis, decerto, eram os altos prédios hirtos, como e as hirtas ribas de pedra e cal, que continham, disciplinavam, a torrente ofegante. Mas da rua aos telhados, em cada varanda, por toda a fachada, eram tabuletas encimando tabuletas, que outras tabuletas apertavam – e mais me cansava o  perceber a incessância do trabalho, a rija canseira do lucro, que arfava por trás das fachadas decorosas e mudas. (…) Dois impulsos únicos, correspondendo a duas funções únicas, parecia estarem vivos naquela multidão, - a do lucro, a do gozo. (…) Aquele Boulevard já me ressumava um bafo mortal, exalado dos milhões dos seus micróbios. De cada porta me parecia sair um ardil para me roubar. Em cada avistada à portinhola de um fiacre, suspeitava um bandido trabalhando; todas as mulheres me pareciam  caiadas como sepulcros, tendo só por dentro podridão.”

Ainda segundo Eça de Queirós, é no labirinto (cidade) que habita o monstro dos monstros:

“…Porque o Homem pensa ter na Cidade a base de toda a sua grandeza e só nela tem a fonte de toda a sua miséria. Vê Jacinto! Na Cidade perdeu ele a força e a beleza harmoniosa do corpo, e se tornou esse ser ressequido e escanifrado ou obeso e afogado em unto, de ossos moles como trapos, de nervos trémulos como arames, com cangalhas, com chinós, com dentaduras de chumbo, sem sangue, sem febra, sem viço, torto, corcunda. (…) Na Cidade findou a sua liberdade moral: cada manhã ela lhe impõe uma necessidade, e cada necessidade para uma dependência: pobre e subalterno, a sua vida é um constante solicitar, adular, vergar, rastejar, aturar: rico e superior como um Jacinto, a Sociedade logo o enreda em tradições, preceitos, etiquetas, cerimónias, praxes, ritos, serviços mais disciplinares que os de um cárcere ou de um quartel.”

Para nós, os modernos, para quem o gosto da clarividência não pode ser dissociado do labirinto, a nossa morada mais autêntica, ou do monstro, o nosso ser mais genuíno, a questão não pode ser senão esta: o  que é que há entre o Céu e a Terra? Na heterotopia, que é a nossa quase idealidade realizada (materialidade), há ainda a verdade e o conhecimento do todo e da heterogeneidade?

Como diz Nietzsche, em Acerca da verdade e da mentira no sentido extramoral (1873), “existem forças terríveis" (4). Pode esperar-se que essas forças sejam as forças da Verdade e do Conhecimento? O guardião desse templo é o filósofo, como desejava Platão?

Todavia, para Nietzsche, o filósofo não pode aspirar a ser senão o fiel servidor do columbário (heterotopia do mundo das ideias), na medida em que ele tem o poder de fazer da  “arte”  a experiência da verdade como não verdade.

Talvez entre o céu e a terra haja apenas o impulso da verdade, a arte do  labirinto e do  alumbramento.

Mas o que é que significa aqui a expressão “arte”?

O que é que é há para admirar na clarividência do todo ou na clarividência da utopia, se tal via não significa senão  experiência da verdade como não verdade?

 De acordo com Nietzsche: “Se alguém esconde uma coisa por trás de um arbusto, nesse exacto lugar a procura de novo e a encontra, nesse procurar e encontrar não há muito que enaltecer: no entanto, é isso que se passa com o procurar  e encontrar da ‘verdade’ no interior da razão” (5).

Havendo uma questão fundamental, ela não é senão a de saber como será possível a heterotopia do labirinto e do monstro. Pode dispensar-se a autoconfiança da verdade, da clarividência do conhecimento da verdade?

Diz Nietzsche: “No fundo, o homem vigil só tem a certeza de estar desperto devido à teia dos conceitos sólida e regular, e precisamente por isso cai às vezes na crença de que está a sonhar  quando esta teia de conceitos é ocasionalmente rasgada pela arte" (6).

Se o que se enuncia como sentido sonda e habita originariamente um tal acto de rasgar a que chamamos arte,  “para que trabalho poderão os homens querer um filósofo?, interroga-se Nietszche em O livro do filósofo, uma colectânea que reúne alguns dos textos fundamentais de Nietzsche dos anos 1872-1875 (7).

O filósofo é o mestre da “aparência”. Não será para guardião do  “templo das ideias clarividentes”  que  o “filósofo” é requerido.  Isto porque a filosofia  não deve ser entendida como “clarividência” ou “conhecimento”. Dentro do labirinto, é preciso concebê-la como   “criação”, isto é, “arte”. A filosofia é o monstro do nosso labirinto. E  “só aquele que fosse capaz de considerar o mundo  inteiro como aparência estaria em estado de o perspectivar sem desejo e sem instinto: o artista e o filósofo” (8).

Entre o Céu e a Terra há a arte que penetra o labirinto e interpela o monstro. Estando nós aqui, respirando esse ar, bebendo dessa água, regozijemo-nos, então,  com a vinda paradoxal do “filósofo”, esse velho renovador  de utopias e de monstros. 

 

 

 

(1) FOUCAULT, M. (1967), « Des espaces autres » (conférence au Cercle d’études architecturales, 14 mars 1967), in Architecture, Mouvement, Continuité, nº 5, octobre 1984, pp. 46-49.

(2) FOUCAULT, M., [1966], (s/d.) – As palavras e as coisas, trad. Port. Ramos Rosa,  Lisboa, Portugália Editora (as páginas da tradução portuguesa são indicadas como se segue dentro do parêntesis recto)

(3) CHEVALIER, Jean. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro : José Olympio, 1998.

(4) Idem, p. 228.

(5) Idem, p. 224.

(6) Idem, p. 229.

(7) NIETZSCHE, [1872-1875], (s.d.) - O livro do filósofo (Das Philosophenbuch), Porto, Rés.

(8) Idem, III, 184,  p. 108

 

 

 

AMÍLCAR COELHO (PORTUGAL)
Doutorado em Filosofia e Director do CEFEA de Alcobaça e Nazaré

 

 

© Maria Estela Guedes
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