REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2010 | Número 05

 

 

Tenho o dever de me fechar em casa no meu espírito e trabalhar quanto possa e em tudo quanto possa, para o progresso da civilização e o alargamento da consciência da humanidade.

Fernando Pessoa
19 de Janeiro de 1915

 

Esta afirmação revela o objectivo de um poeta há quase um século atrás, mas poderá também definir o objectivo da poesia actual e até da ciência, pois uma e outra, de maneiras diferentes, contribuem para o progresso da civilização e o alargamento da consciência da humanidade.

DIREÇÃO

 
Maria Estela Guedes  
REVISTA TRIPLOV  
Página Principal  
Índice de Autores  
SÍTIOS ALIADOS  
TriploV  
TriploII - Blog do TriploV  
Agulha Hispânica  
O Contrário do Tempo  
Arditura  
O Bule  
Jornal de Poesia  
   

ALICE MACEDO CAMPOS

 

Poesia e Ciência

 

 

Conferência na Reitoria da Universidade do Porto  11 de Fevereiro de 2010

        Alice Macedo Campos

 
 
 
 
 
 
 

Se a ciência, por um lado, o faz de forma rigorosa, através do método científico, que é o conjunto de regras que permite desenvolver uma experiência a fim de produzir novo conhecimento, nomeadamente através de evidências observáveis, empíricas, mensuráveis e analisáveis com o uso da lógica, a poesia, pelo contrário, não dispõe de um método literário, se assim se poder dizer, que o poeta possa usar, a não ser o seu método próprio e individual, ou seja, o conjunto de elementos que interiormente o motivam e levam a fechar-se sobre si próprio.  

(escrever serve para explicar as coisas do mundo
com as duas mãos)

 No meu entender, a poesia é a tradução de uma memória. Neste contexto, a tradução consiste em explicar, através das palavras, uma emoção, uma imagem, uma situação, ou alguém, individual ou colectivamente.  

O conjunto de emoções, imagens, situações e pessoas que interessam ao poeta, encontra-se na memória, que é a "capacidade de adquirir, armazenar e recuperar (evocar) informações disponíveis".  

No entanto, a permanência dessas emoções e o modo como elas afectam a sua vida, a nitidez dessas imagens e o poder criativo que possam exercer sobre ele, as características de cada uma dessas situações e a forma como são apreendidas por ele, e a importância dessa ou dessas pessoas, assume um carácter pessoal e único para o poeta.  

Cada autor escreverá nos seus poemas sobre as emoções que mais o inquietam ou perturbam, as imagens que mais o seduzem ou provocam, as situações que mais o preocupam ou lhe agradam, e a pessoa ou pessoas que possam interessar-lhe de forma particular.  

A poesia é, portanto, uma emoção, uma imagem, uma situação, ou uma pessoa, traduzida em palavras.  

Lida por todos ou por aqueles a quem fascina, a poesia não é escrita por muitos. Descrever uma emoção, uma imagem, uma situação, ou uma pessoa, através da narrativa e de outros recursos linguísticos, está acessível a todos nós. Mas a poesia é a recriação de uma realidade ou a projecção de uma ficção.
Através de palavras, fonemas e construções frásicas, o autor escreve o que pensa e sente e sobretudo o que quer fazer pensar e sentir.  

A narração não faz pensar ou sentir da mesma forma que a poesia pode fazer, porque a mera leitura da descrição de factos desperta quase automaticamente as imagens que os representam.  

Por outro lado, a incompreensão que possa advir da leitura de um poema, não é a mesma que advém da leitura de uma narrativa.

Ao depararmo-nos com uma dúvida, por exemplo, na escrita ou no significado de uma palavra, podemos consultar um dicionário, mas, na poesia, satisfeitas todas as dúvidas de carácter linguístico, podem surgir outras de cariz literário. O entendimento de um poema dependerá da emoção, imagem, situação, ou pessoa, nele traduzidas.  

Mais importante, contudo, e porque escritas daquela maneira em particular, é o efeito sensorial que podem ter sob o leitor. É desejável que um poema atinja os seus cinco sentidos e desperte por essa via uma actividade neuronal que de outro modo permaneceria intacta. A poesia é mais do que a descrição factual e o tamanho desse "mais" é o que o autor quiser. 

Ainda a propósito de memória, gostaria de citar António Damásio, um dos neurocientistas mais respeitados da actualidade, de 65 anos, que lecciona na Universidade do Sul da Califórnia (Los Angeles), que considera que "Não existe memória sem emoção". A emoção modula constantemente a forma como os dados e os acontecimentos são armazenados na memória. Isto acontece, principalmente em relação à memória para pessoas e para as suas qualidades ou características.  

A grande força motora da Criatividade é a imaginação (manipulação de imagens: visuais, auditivas, tácteis ou olfactivas), que depende das imagens captadas por um sujeito em determinado momento, assim como das informações que foram gravadas nos circuitos nervosos, onde, com ajuda da emoção, foram organizadas com determinadas categorias. Um grande artista ou inventor é alguém que consegue usar a emoção para manipular essas imagens visuais, auditivas, tácteis ou olfactivas de modo muito rico. 

A ciência prova alterações na Memória: Pesquisadores da Universidade da Califórnia verificaram como a destruição e produção de proteínas no interior das células nervosas cria novas lembranças e modifica as já existentes. 

A poesia é uma arte pela qual a linguagem humana é utilizada com fins estéticos.

A poesia compreende aspectos metafísicos (no sentido de sua imaterialidade) e da possibilidade desses elementos transcenderem ao mundo fático. Esse é o terreno que compete verdadeiramente ao poeta.  

A poesia aparece também identificada com a própria arte, o que tem razão de ser já que qualquer arte é, também, uma forma de linguagem. Predominantemente oral - mesmo quando aparece escrita, a oralidade aparece sempre como referência quase obrigatória, aproximando muitas vezes esta arte da música.  

Poesia é diferente de poema. O Poema é a forma como está escrito e a poesia é o que dá a emoção ao texto.  

A poesia pode fazer uso da chamada licença poética, que é a permissão para extrapolar o uso da norma culta da língua, tomando a liberdade necessária para recorrer a recursos como o uso de palavras de baixo-calão, desvios da norma ortográfica que se aproximam mais da linguagem falada ou a utilização de figuras de estilo como a hipérbole ou outras que assumem o carácter "fingidor" da poesia, de acordo com a conhecida fórmula de Fernando Pessoa ("O poeta é um fingidor"). 

A matéria-prima do poeta é portanto a palavra e, assim como o escultor extrai a forma de um bloco, o escritor tem liberdade para manipular as palavras, mesmo que isso implique romper com as normas tradicionais da gramática.  
Importa, por isso, fazer a devida conotação entre poesia e literatura: 
Literatura significa uma instrução ou um conjunto de saberes ou habilidades de escrever e ler bem, e se relaciona com as artes da gramática, da retórica e da poética. Por extensão, se refere especificamente à arte ou ofício de escrever de forma artística.  

Mais produtivo do que tentar definir Literatura talvez seja encontrar um caminho para decidir o que torna um texto, em sentido lato, literário. A definição de literatura está comummente associada à ideia de estética, ou melhor, da ocorrência de algum procedimento estético. Um texto é literário, portanto, quando consegue produzir um efeito estético e quando proporciona uma emoção no receptor.  

Vamos opor o texto científico ao texto artístico: o texto científico emprega as palavras sem preocupação com o efeito emocional. No texto artístico, ao contrário, essa será a maior preocupação do artista. É óbvio que também o escritor busca instruir, e perpassar ao leitor uma determinada ideia; mas, diferentemente do texto científico, o texto literário une essa instrução à necessidade estética que toda obra de arte exige.  

O texto científico emprega as palavras no seu sentido dicionarizado, denotativamente, enquanto o texto artístico busca empregar as palavras com liberdade, preferindo o seu sentido conotativo, figurado. O texto literário é, portanto, aquele que pretende emocionar e que, para isso, emprega a língua com liberdade e beleza, utilizando-se, muitas vezes, do sentido metafórico das palavras. 

É no pensamento que começa a poesia, é no pensamento que começa a ciência. O principal veículo do processo de conscientização é o pensamento. A actividade de pensar confere ao homem "asas" para mover-se no mundo e "raízes" para aprofundar-se na realidade.
 
Segundo Descartes (1596-1650), filósofo de grande importância na história do pensamento, "a essência do homem é pensar". Por isso dizia: "Sou uma coisa que pensa, isto é, que duvida, que afirma, que ignora muitas, que ama, que odeia, que quer e não quer, que também imagina e que sente".

 

 

Alice Macedo Campos (Penafiel, Portugal, 1978).
É licenciada em Gestão de Recursos Humanos e Psicologia do Trabalho pelo Instituto Superior de Línguas e Administração. Começou a publicar através da internet, em 2004, tendo participado pela primeira vez numa antologia em 2007. Publicou o seu primeiro livro, O Ciclo Menstrual da Noite, em Maio de 2008. No mesmo ano, participou num Concurso Literário promovido por uma editora de São Paulo, tendo alcançado o primeiro lugar com o poema Ensaio sobre a Ruína, o qual foi publicado numa antologia luso-brasileira com o título Folhas ao Vento. Em 2009, participou na Antologia das Noites de Poesia de Vermoim e na Antologia de Poesia Contemporânea, Entre o Sono e o Sonho. Em Fevereiro de 2010, participou numa Conferência subordinada ao tema Poesia e Ciência, inserida no Ciclo de Conferências Diálogos com a Ciência, promovido pela Reitoria da Universidade do Porto. A apresentação do seu segundo livro Um Cão em Cada Dedo, realizou-se em Abril deste ano, na Casa da Cultura de Vieira do Minho. Tem mais duas sessões de apresentação preparadas para Maio, na Faculdade de Letras do Porto e na Associação Cultural de Espinho. Participou na Bienal de Poesia de Silves.
http://alicemacedocampos.blogspot.com

 

© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
Rua Direita, 131
5100-344 Britiande
PORTUGAL