REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número especial
Homenagem a Ana Luísa Janeira

 

Ana Luísa Janeira
Foto de José M. Rodrigues

Combate

à Insensibilidade Cultural

 

Luisa M. Abrantes

CQB, Departamento de Química e Bioquímica, Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, Campo Grande, 1749-016 Lisboa, Portugal

 
EDITOR | TRIPLOV  
ISSN 2182-147X  
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Maria Estela Guedes  
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As actuais Sociedades do Mundo desenvolvido atigiram um estádio de conforto, bem estar, qualidade de vida e acesso à Educação, sem precedentes na História da Humanidade, consequência dos notáveis avanços da Ciência e sua acelerada aplicação tecnológica. Neste quadro, seria desejável que a denominada Cultura Intangível – Linguagem, Crenças, Valores, Normas Comportamentais – evoluísse a um ritmo comparável ao registado na vertente Civilizacional (Cultura Material). É bem conhecido que a existência de um fosso entre as referidas vertentes culturais é geradora de Angústia e consequentes problemas societais. Porém, desde a década de 80 do século passado, com o advento da Globalização e disponibilidade de recursos tecnicamente sofisticados, os poderosos meios de Comunicação e uma activa Indústria Cultural potenciaram a manifestação da Cultura no sentido do consumo fácil e compulsivo de bens e sensações (quanto mais exóticas, mais apreciadas). Neste contexto pós-moderno, o efémero, o descartável são incensados, seja por razões económicas, seja por obsolescência funcional.

 
 
 
   
   
   
   
   
   
   
   
   
 
 

Esta transitoriedade implica, a nível individual, a perda do referencial cronológico, numa vivência de imediatismo permanente e, como disse A. Giddens [1] “Apathy towards the past, renounciation of the future and a determination to live each one day”.  

 

A Ana Luísa Janeira combateu seguramente, de várias formas, esta apatia. Uma que acompanhei de perto e testemunha essa preocupação foi a iniciativa que no começo deste século, deu lugar à “Agenda ‘os nossos avós’ ”, cuja capa a figura recorda.

Tal como escrito na introdução, “O século XXI vai trazer novidades, exigindo metamorfoses ou rupturas. Uma das formas possíveis de nos prepararmos para muitas das diferenças passará pelo reconhecimento de que noutros tempos, outros foram os problemas, as ideias, os sonhos”.

 

A Agenda contém inúmeras menções a aspectos do passado que são referências essenciais.

Assiste-se hoje a uma Trivialização da Cultura, reduzida a fonte de entretenimento e diversão, com as eventuais necessidades intelectuais e do espírito a serem alimentadas por informação processada, essencialmente através das tecnologias contemporâneas. Devemos perguntarmo-nos, tal como o poeta T. S. Eliot [2], prémio Nobel da literatura de 1948: “Where is the wisdom we have lost in knowledge?

Where is the knowledge we have lost in information?”

Esta nova cultura de informação indiscriminada, prazer e autonomia, obtida por meios tecnológicos actualmente disponíveis e potenciada pela sua crescente interligação, é compulsivamente apelativa para a Juventude, tornando-se a substância da sua vivência diária, centrada numa Realidade Virtual e  com profundos reflexos no processo de Socialização.         Neste domínio, a Escola tem papel relevante. Além do objectivo evidente do Desenvolvimento pessoal, compete-lhe contribuir para a inserção das novas gerações na vida comunitária. Aliás, terá sido esta a função principal que lhe foi confiada, quando o sistema formal de educação foi estabelecido. A Sociedade delegou-lhe então, de forma institucional, a Transmissão do Saber, a Preservação e Criação Cultural. Neste contexto, disciplinas em que a Ana Luísa participou durante muitos anos, História da Ciências, Filosofia das Ciências, Sociologia das Ciências, não só cumpriram aquela função da Escola, como contribuíram para a formação de muitos grupos de alunos.

Com o evoluir da dimensão e complexidade das diversas áreas curriculares, a necessidade de fornecer o Conhecimento e Informação específicos foi ocupando os meios e o tempo de ensino, reduzindo drasticamente, ou mesmo eliminando, a outra competência outorgada. Este desajustamento entre as duas missões, é, muito provavelmente, uma importante causa da acentuada degradação cultural que se testemunha, nomeadamente de valores e convicções e no nascer de sub-culturas ou mesmo contra-culturas preocupantes.

No topo da pirâmide do sistema de Ensino Formal, compete à Universidade ponderar seriamente um correcto balanceamento entre a formação Técnica e Humanística, valorizando o “Fazer” sem esquecer o “Ser” e ter um papel impulsionador na adopção de medidas adequadas para os outros níveis de escolaridade. Uma Educação estética desde os primeiros anos de escolaridade contribuirá, decisivamente, para apreciar valores ao longo da vida, assim como uma formação Filosófica, desde os últimos anos do Secundário (e prolongável ao Superior) seria um factor de harmonização entre as principais componentes culturais.

De algum modo, estas preocupações estão vertidas no Manifesto produzido pelos embaixadores do Ano Europeu da Criatividade e Inovação (2009), personalidades nomeadas de reputado mérito nas áreas da Cultura, Ciência, Economia, Educação e Design: “...Progredir com sabedoria implica o respeito pela história e pelo património cultural. Todo o novo saber  assenta  no conhecimento do passado e, na sua maioria, as  inovações são combinações de  elementos  já  existentes.  Plena de respeito pela memória  colectiva  e  individual, a cultura é importante  para  não  perder  o  rumo  neste  mundo  em constante  mutação. ...”. Manifesto que contribuirá para enformar a estratégia comunitária nesse domínio até 2020.

Embora com algumas condescendências para o clima civizacional hodierno, registe-se o notável progresso face aos postulados do que ficou conhecido por estratégia de Lisboa que basicamente concebia a Educação como um “serviço” e o Conhecimento como um vago amontoado de “competências” para um desempenho competitivo, ao fim e ao cabo, em prol dum pragmatismo criador de “cidadãos operacionais” para o mercado de trabalho. Curiosamente, a “produção” já excede as necessidades de procura, com as dramáticas implicações no desemprego, precariedade laboral e ocupação de posições que não requereriam as qualificações adquiridas.

No preâmbulo dos recentes Estatutos da FCUL (2009) pode ler-se “A Faculdade assume como missões principais o ensino, a investigação e a transferência do conhecimento e da inovação nas áreas das ciências exactas e naturais e das tecnociências, bem como a produção, a difusão e a partilha de culturas, estimulando a abertura permanente à sociedade civil, através da disseminação de conhecimentos e da interligação com os agentes sociais e económicos”. No que se refere à 1ª missão, é seguramente importante estimular a Sensibilidade da Sociedade, que a Escola integra, para os assuntos de índole científica, de modo a criar na cidadania uma correcta compreensão da necessidade da actividade nessa área, combatendo o declínio no interesse das novas gerações a abraçar profissões e carreiras no universo científico. Com efeito, após décadas em que a Ciência se constituíu como paradigma cultural e a sua aprendizagem era motivo de orgulho, a imponderada e incorrecta aplicação política dos frutos da utilização da Ciência, que designamos por Tecnologia, conduziu a um gradual afastamento dos cursos científicos, com particular incidência na área da Química.

A missão “a produção, a difusão e a partilha de culturas” refere-se à Cultura Científica. Embora seja difícil definir Cultura Cientìfica, poderá, no entanto, entender-se como um conjunto específico de Valores, Normas e Práticas que norteia a comunidade da Ciência. (O conceito deve também incluir todos os mecanismos através dos quais os indíviduos e a Sociedade se “apropriam” da Ciência e Tecnologia). A Prática mais amplamente reconhecida é o Método.

O Método Científico, só por si, não é suficiente para estabelecer as nossas convicções e apreciar os valores de outros domínios culturais. Não se compreende uma grande obra literária atravès da Observação e Experimentação; não se usufrui de uma magnífca sinfonia musical por meio de uma investigação acústica; não há o sentimento de maravilha com uma escultura ou um quadro notáveis, fazendo a análise do bronze (mármore) ou tintas empregues na sua manufactura.

Mesmo no que respeita à difusão,  deve enfatizar-se a abissal diferença entre Cultura e Popularização Científica. Esta é muitas vezes transmitida de forma reprovável, por mistificadora e sensasionalista.  Felizmente, cada vez são mais os actores do mundo científico que combatem esses perigos, dedicando tempo e esforço para uma divulgação de qualidade junto do grande público, contribuindo para um grau de aculturação superior, eliminando a confusão pseudo-científica (que é quase sempre componente essencial da Popularização). De notar que todas as formas de Criatividade têm as mesmas raízes humanas: Curiosidade, Imaginação, Sentido do Belo, Memória e capacidade para sonhar. Assim, as pontes de ligação entre Ciência e Cultura (Artes e Humanidades) são efectivas. Longe vai a controvérsia das duas Culturas.

As interações entre Ciência e Cultura assumem várias expressões: Artistas sempre colaboraram na ilustração de obras científicas; Escritores produzem biografias de eminentes Cientistas; temas científicos são fonte de inspiração para cuidadas novelas, peças de teatro, interessantes quadros e esculturas; personalidades da área científica revelam apreciável qualidade no campo literário (poesia, romance, por ex); a Ciência disponibiliza meios e técnicas para caracterizar, datar e autenticar os frutos da criação artística; as Neurociências estão a dedicar significativo esforço de investigação aos processos cerebrais de percepção, cognição e criação de Arte; têm aumentado os eventos (Simpósios, Exposições) e as publicações conectando as Humanidades e as Ciências. Um relevante exemplo é Science and the Artist's Book, uma exposição que explora as ligações entre a criatividade científica e artística através do formato de livro. Resultado da iniciativa conjunta das Smithsonian Institution Libraries e do Washington Project for the Arts (WPA) que, em 1993, convidaram um grupo de reconhecidos artistas de livros para criar novos trabalhos de arte baseados em volumes clássicos da colecção da Heráldica da Ciênciais da Dibner Library of the History of Science and Technology, (parte da Smithsonian Institution Libraries' Special Collections). Os livros dos artistas, cada qual inspirado por um assunto, teoria ou ilustração dos marcos dos trabalhos da ciência, com os quais se comparam, oferecem  visões divertidas, imaginativas ou mesmo emotivas do lado criativo da Ciência. O conteúdo cobre muitas áreas, por exemplo para a teoria dos sons, pode ver-se a marca heráldica e o fantástico resultado de fotografar padrões de ondas sonoras usando areia, corda de violino e pratos metálicos, muitas vezes sobreponível aos diagramas originais concebidos 200 anos antes. Também na área da Química, o celebrado trabalho de Volta, origina um modelo para as interacções sociais analogo à troca de electrões que ocorre numa bateria (usando as palavras  “given-dado” e “gained-ganho”, “set-colocado” e “sought-pretendido”).

Outros exemplos das fortes interações da arte com a ciência, incluem a pintura- como no caso de capas de números da Nature (2003), que mostram famosos trabalhos de Julie Newdoll, artista junta “ vida, ciência e cultura, mitos e moléculas” nos seus quadros, tendo a obra designada como “brush with Science”- e também a literatura, existindo diversas publicações periódicas e textos escritos por artistas plásticos que relacionam a linguagem visual com aspectos cientificos. Um trabalho conhecido e bem  aceite é o do pintor australiano Wayne Roberts [3], que inspirado na música e nas suas escalas, desenvolveu uma interessante teoria que involve profundos conceitos de matemática e geometria. Incluo neste domínio as inúmeras obras que a Ana Luísa Janeira tem publicado. Permito-me destacar uma das mais recentes, da coleccção “marcas das Ciências e das Técnicas”, que dedica 2 volumes aos “eixos e configurações de Lisboa”, designadamente “A Configuração de Santana e o Eixo do Rato ao Chiado” e “Alcântara, Ajuda e Santa Maria de Belém”.

Não obstante estes muitos sinais de interacção, não encontramos completa correspondência na estrutura curricular do Ensino Superior. No panorama vigente, hoje mais restrito pelo processo de Bolonha, é uma mais valia para a FCUL a existência da Secção Autónoma de História e Filosofia das Ciências e de cursos e disciplinas ministrados pelos docentes que a integram, entre eles a Ana Luísa Janeira (responsável pelas unidades curriculares (1º ciclo) “A Ciência e as Cidades” e “Conhecimento Científico e Técnico em Portugal”.

Durante muitos anos a Ana Luísa Janeira pertenceu ao Departamento de Química e Bioquímica, e desse tempo recordo outro seu envolvimento. Nos anos 80 foi criada a licenciatura em Química Tecnológica. As preocupações da Ética da Ciência e Tecnologia entraram em fase crescente, como testemunha a existência da “Division of Ethics of Science and Technology” da UNESCO. Pretendendo incutir nos estudantes que o Avanço da Ciência e Tecnologia deve ser feito num enquadramento de respeito pela dignidade e direitos humanos, solicitei a preciosa colaboração da Ana Luísa para introduzir na nova licenciatura uma componente de humanidades, que balanceasse a exclusiva carga de disciplinas de âmbito científico. Com a generosidade e o entusiasmo que lhe reconhecemos, a nossa Colega propôs e leccionou vários anos a disciplina de “Ética das Ciências e das Técnicas”. Nos textos da época, relacionados com a disciplina, podemos encontrar frases como  “Quando relacionados com as ciências e técnicas, o bem e o mal, os valores e as normas requerem uma inteligibilidade que não pode desculpar fugas à realidade envolvente”  ou “A pergunta sobre o desenvolvimento que queremos, porque não é qualquer um que nos convém, implica perguntas sobre a dialética entre sociedade, ciências e valores” que  ilustram como foi possível integrar a Ética, a História, a Filosofia e o Impacto cultural da Ciência. A disciplina durou até ser engolida na voragem de reformas e re-estruturações, mas deu frutos – alguns alunos de então realizam hoje trabalho de investigação em campos afins. Estou segura que a Ana Luísa Janeira nunca se arrependeu do trabalho dispendido e estaria sempre disponível para travar os mesmos combates contra a insensibilidade ou indiferença gerada por um Cientificismo acrítico. Na minha opinião, a Ética e a responsabilidade da Ciência deve(ria) ser parte integral da educação e treino de todos os cientistas.

Esta citação [4] parece-me a mais adequada para agradecer e felicitar a Colega e Amiga de tantos anos: “Uma Academia de Ciências é a consciência do mundo científico, e mais ainda, é a consciência científica do mundo”.

  Referências
 

1-A. Giddens, Modernity and Self-Identity. Self and Society in the Late Modern Age. Cambridge: Polity, 1991.  

2-T. S. Eliot, The Rock, London:Faber & Faber, 1934

3- W. Roberts, Principles of Nature, towards a new visual language, W.A. Roberts Pty Ltd, 2004

4-P. Germain, Cultural Values of Science, Pontificiæ Academiæ Scientiarum, Scripta Varia 105, Aedibus Academicis in Civitate Vaticana, 2003

 

 

 

Luisa Maria Álvares Duarte de Almeida Abrantes
N. 1946, Lisboa Portugal. Professor Catedrático do Departamento de Química e Bioquímica da FCUL, Investigador do Centro de Química e Bioquímica (CQB) da FCUL.
Membro  (eleito) do Conselho Científico da FCUL desde Maio 2009;  Vice-Presidente da FCUL, 1995-2002 e 2004 a Março de 2005.
Coordenadora Científica do CQB
(2006 and 2007) do CQB.

Professora convidada na Universiade de Uberlândia (Brasil) 2009/2010,  Universidade  de Paris 7-Denis Diderot, 2007/2008 e 2001/2002; Universidade da Madeira, 1999 e de 1992 to 1995. Professora visitante na Universidade de Alicante, 2009. Investigadora visitante no Laboratoire d'Electrochimie Interfacial - CNRS, Meudon, 1990 and 1991,  Universidade de of Utah (USA), 1988 e Universidade de Southampton, 1980 a 1987. Mais de 80 lições e Seminários convidados em Conferências, Universidades e Instituições Nacionais e Internacionais. Mais de 120 publicações em revistas internacionais .

 

 

© Maria Estela Guedes
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