REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número especial
Homenagem a Ana Luísa Janeira

 

Ana Luísa Janeira
Foto de José M. Rodrigues

PORQUE «UMA LÍNGUA É O LUGAR DONDE SE VÊ O MUNDO» - CONSIDERAÇÕES SOBRE A FORMA DE VER A ÁRVORE

 

Luís Silva Dias & Alexandra Soveral Dias

 
DIREÇÃO  
Maria Estela Guedes  
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Conforme um dia afirmou Vergílio Ferreira, «Uma língua é o lugar donde se vê o mundo e de ser nela pensamento e sensibilidade» [1]. Nessa medida, a palavra usada para designar uma entidade natural tão importante como é a árvore e em particular a árvore de fruto, não pode deixar de ser importante. Da mesma forma, o género da palavra usada para «árvore» é particularmente significativo no âmbito da representação e leitura humana da Natureza, profundamente alicerçada na linguagem, e neste aspecto, o português distingue-se curiosa e intrigantemente da generalidade das línguas latinas [2].

 
 
 
   
   
   
   
   
   
   
   
   
 
  A palavra «árvore»
 

            «Árvore» é a única palavra usada no português moderno para designar uma planta lenhosa, de porte muito variável [3] cujo caule ou tronco só ramifica na parte superior [4].

            A árvore é também uma das palavras mais carregadas de simbologia, fortemente associada à vida e à morte, à fertilidade e à longevidade mas também ao conhecimento [5] e muito por analogia morfológica, a árvore pode ser encontrada na filosofia (a árvore de Porfírio), na biologia (árvores filogenéticas, árvores genealógicas, a árvore da vida) ou na marinharia (navegar em árvore seca). A árvore é também uma entidade que fornece a sombra, o abrigo e é a mais ou uma das mais imponentes entidades capazes de gerar frutos e providenciar alimento.

  O género da «árvore»
 

             Em português «árvore» é um substantivo feminino tal como no latim «arbor», de que deriva.

            «Arbor», «arbŏris» é a raiz latina de quase todas as palavras que designam «árvore» nas línguas latinas. No entanto, na esmagadora maioria destas «árvore» é actualmente masculino.

            Em italiano «albero» é masculino, tal como é «árbol» em espanhol, «árbol» e «árbor» em asturiano, «arbole» em leonês, «árbu» em barranquenho, «arbre» em francês, catalão, valenciano e occitano, «arbore» em romeno, «àrbulu», «àrbiru», «àrburu» e «àrvulu» em siciliano, e muito provavelmente também «àrburu» em sardo campidanesi e «àrbure» e «àrvure» em sardo lugoduresi.

            Excepções a esta predominância do masculino são, além do português, o mirandês («arble»), em que a geografia terá funcionado a favor do género usado em português. Pelo contrário, no barranquenho a geografia terá funcionado a favor do espanhol [6]. Excepção é também o galego, ainda que só parcialmente, onde a par das formas masculinas «arbre» (essencialmente literária [7]) e «albre» surge o feminino «árbore» [8,9].

  O género da «árvore» em português
 

            Na mais antiga referência escrita que conhecemos, de 984, «árvore» surge no feminino: «Rationem iam dictatum cum suas casas e suas aruores» [10].

            Em 1179 encontramos nos Costumes de Santarém, Do corregimento de paãos ou darvores «e se lhy arvor talhar, ou arrancar, ou britar, develhy dar outra tal na sa herdade» [11].

            Em 1209 encontramos nos Costumes e Foros de Castel-Rodrigo, Qui tallar uinna ó aruol XVI: «Tod ome que entrare uiña ó aruol ó a tallare que estê em prado defesado ó em era a foro peyte I morabitino por qualquer aruol ó que leue fructo e depoys peyte II morabitinos, e assi de todas aruoles.» [11].

            Do mesmo ano, encontramos nos Costumes e Foros de Castello-Melhor, Libro Primeiro uma disposição praticamente igual, até no valor das peitas, mas em que «aruol» e «aruoles» surgem escritas «arbol» e «arboles» [11].

            No fim do século XIII encontramos numa tradução galego-portuguesa das Leis de Partida, começadas por Afonso X em 1256, no Livro I, título XX, Dos dízimos que hã-de dar os cristãos à santa Igreja «A primeyra e aquella que chaman en latim predicial que e dos fruytos que collen das terras, et das arbores» [12].

            Também nos fins do século XIII, Airas Nunes, clérigo compostelano, talvez jogral ou eclesiástico na corte castelhana e contemporâneo e colaborador de Afonso X nas Cantigas de Santa Maria escreve «Quand’eu passo per algũas ribeiras, / so bõas arvores, per bõos prados / se cantam i prados namorados» [13].

            Em 1310, numa carta datada de 13 de Julho, D. Dinis escreve sobre o corte de árvores no Campo de Ourique «que sse alguum cortasse alguma aruor no campo dourique ou talhasse Rama ou çeruasse que leuassedes deles quinhentos soldos» e mais adiante «metede cada vila e cada logar Alguuns homens jurados que guardem a terra que se nom faça dano nos soueraes nem nas outras aruores e que aqueles que hy acharem que talharem Aruor per pee que leuem dele por cada Aruor Noue libras» [11].

            Em 1361, numa carta de 29 de Maio, Dom Pedro escreve que: «talhom os freixeiros e seiseiros das ribeiras e as outras arvores» [11].

            Em 1500, na sua carta ao rei D. Manuel datada de 1 de Maio, Pêro Vaz de Caminha escreve na página 18, linhas 31-33 «en quanto andauamos neesa mata acor / tar lenha atrauesauam alguũs papa / gayos per esas aruores deles verdes». Mais adiante, na página 21 da carta, linhas 16 e 17, «disse ocapitã que serja boo hirmos dereitos aacruz q / estaua emcostada ahuũa aruore junto com orrio» e logo a seguir na página 22, linhas 11 e 12 «desa semente e frutos que atera e as aruores de sy / lançam.» [14].

            Em 1510, no Auto da Fé de Gil Vicente, a Fé responde a uma pergunta de Benito «Aquella he a arvore da vida.» [15].

            Em 1554, na primeira edição da Menina e Moça de Bernardim Ribeiro pode ler-se na folha 73 verso que Avalor «vio ao pee de hũa antigua arvore estar cõ as mãos atadas hũa donzella» [16].

            Em 1572, Camões usa nos Lusíadas «árvore»/«árvores» em nove ocasiões. Destas, é possível identificar claramente o género em sete [17]. Canto I, estrofe 7, verso 2 («De hũa aruore de Christo mais amada»), VI, 12, 2 («De verdes eruas & aruores floridas,»), VI, 79, 3 («Quantas aruores velhas arrancarão»), IX, 57, 1 («As aruores agrestes, que os outeiros»), IX, 59, 5 («E vis se na vossa aruore fecunda»), X, 132, 5 («As aruores veras do Crauo ardente,») e X, 133, 7 («Das aruores, que Cânfora he chamado,). Sempre no feminino.

            Em 1622 Frei Isidoro de Barreira escreve que «A aruore he figura do homem, & próprio significado seu: porque nella diz Santo Ambrósio, que ha viver, & morrer: crecer & decrecer, como no homem.» [18].

            Na primeira metade do século XVII, provavelmente entre 1624 e 1627 em obra atribuída a Frei Cristóvão de Lisboa [19], na secção dedicada às plantas são feitas quarenta e uma referências a «árvore»/«árvores». O manuscrito apresenta quatro grafias diferentes para a palavra. Nas primeiras treze vezes em que surge é como «aruere» ou «arueres» (dez vezes), uma como «arueris», outra como «haruerea»; nas últimas vinte e oito vezes é sempre «aruore». Nos dezanove casos em que a atribuição de género é possível, «aruere», «arueres», «haruerea» e «aruores» são femininas.

            Em 1778 encontramos no dicionário de termos técnicos de Domingos Vandelli «Truncus - O tronco das árvores» [20].

            Em 1883 Jaime Batalha Reis escreve a propósito de uma excursão dos alunos dos cursos de Agronomia e Silvicultura do Instituto Geral de Agricultura aos arredores de Leiria realizada entre 11 e 19 de Agosto de 1882, que «entre os Quercus, o carvalho portuguez ou Quercus lusitanica, Lam., é a árvore dominante de toda esta região.» [21].

            Em 1887, na portaria que regula os serviços agronómicos, datada de 18 de Janeiro, em relação aos olivais determina-se a obrigação de, entre outras características, anotar no caderno de campo a «Distancia entre as arvores e o numero médio por hectare.» [22].

            Em 1891, num livro que o autor, lente do Instituto de Agronomia e Veterinária, «A nada mais aspira do que a ser um livro de vulgarisação destinado a prestar um serviço aos principiantes.» encontramos que o grande desenvolvimento da cortiça no sobreiro dá «a esta arvore um alto valor económico.» [23].

            Também em 1891 encontramos no soneto Solemnia Verba de Martins do Soveral «deixai-me repousar á sombra qu’rida / das arvores agrestes;» [24].

            Em 1897, na introdução à Crónica dos Reis de Bisnaga, a que voltaremos mais tarde, David Lopes escreve a propósito da monarquia brâmane e aos impérios muçulmanos, «Germina depressa a semente, ainda mais a ramagem da arvore, mas precisa logo de enxertia, senão cahe ao menor bafo da desfortuna.» [25].

            Ainda que não exaustivo, o levantamento que apresentamos evidencia não só a precocidade no português do género feminino para «árvore» como, ainda que com grafias diferentes, a sua manutenção até hoje.

  «O árvore» em português
 

            Apesar desta antiguidade e constância, em 1950 no Grande Dicionário da Língua Portuguesa de António de Morais Silva alertava-se para «árvore» também se usar no género masculino dando como exemplo a écloga Crisfal de Cristóvão Falcão [26] e em 1977 José Machado alertava no verbete «árvore» do seu dicionário etimológico [27] para o uso deste vocábulo no masculino dando como exemplo a sua utilização na Crónica dos Reis de Bisnaga. 

            Sobre a autoria da écloga de Crisfal ou trovas de Crisfal (Cristóvão Falcão ou Bernardim Ribeiro?) muito se escreveu durante o século passado [28]. Naturalmente que não se trata aqui de retomar essa discussão mas sim de examinar a sua utilização de «árvore» no masculino, aspecto relativamente ao qual as trovas de Crisfal também não são muito claras.

            Parece ser ponto assente que às primeira, segunda e quarta edições correspondem as três principais variantes desta écloga [29]. A primeira é a edição anónima que circulava na forma de folha volante. O único exemplar conhecido está na Biblioteca Nacional de Portugal. e poderá ter sido impressa por Germão Galharde entre 1543 e 1547 admitindo-se que o original possa ter sido escrito entre 1536 e 1541 [30]. Além da reprodução fac-similar de Guilherme de Oliveira Santos [30], a versão da folha volante é livremente acessível como fac-símile em http://purl.pt/6959. A segunda edição foi impressa em Ferrara com a marca dos Usque em 1554 juntamente com obras de Bernardim Ribeiro, entre as quais se destaca a Menina e Moça [31] que atrás referimos. A quarta foi impressa em Lisboa em 1619 por António Álvares estando o único exemplar conhecido na Biblioteca Nacional.

            Na primeira edição, no verso seis e sete da estrofe trinta e três encontramos «Cõ hũa frauta tangendo / ao pe de hũa aruore estaua», ou seja, «árvore» no feminino tal como na quarta edição, a de António Alves de 1619 e numa edição impressa por Costa Carvalho em 1721 [30]. Na segunda edição, de Ferrara, em vez de «ao pe de hũa aruore estaua» aparece «ao pee de hum aruore estaua», «árvore» no masculino tal como na terceira edição, impressa em Colónia em 1559 [29,30,32]. Na quarta edição, de António Alves em 1619, como já vimos «árvore» vem no feminino.

            A questão é qual das três principais edições é mais fiável, mesmo ortograficamente? A do folheto volante e de António Alves, ambas de Lisboa, ambas com «árvore» no feminino, ou a da casa Usque impressa em Ferrara onde «árvore» era masculino? Dos autores que consultámos, a maioria favorece a edição do folheto (naturalmente que por outros motivos que não o género de «árvore»). É o caso de Costa Marques [28], António José Saraiva [29], Guilherme de Oliveira Santos [30] e Rip Cohen [33]. Pela edição de Ferrara pugna Rodrigues Lapa que apesar de admitir que «árvore» podia ser masculino, admite também que podia tratar-se da elisão do «a» do artigo [32], eventualmente facilitando a leitura heptassilábica, que reconhecidamente corresponde à estrutura do poema [33]. A ser assim a questão da mudança de género estaria resolvida. 

            Se a excepção à utilização de «árvore» no feminino exemplificada pelas Trovas de Crisfal é algo complexa quando esmiuçada, a excepção exemplificada pela Crónica dos Reis de Bisnaga [25] não o é menos.

            Referimos atrás que na introdução David Lopes escreve «árvore» no feminino. Na Crónica propriamente dita, «árvore»/«árvores» aparece cinco vezes, três no masculino, duas no feminino. Na página 18 «hũu arvore», na página 30 «omde não ha arvores, se não muy poucas», na 81 «e outros arvores», na mesma página mas duas linhas abaixo «hũ arvore», na 96 «e outras arvores».

            Nestes excertos ressalta de imediato que o autor ou autores da Crónica também não eram excessivamente rigorosos quanto à uniformidade da grafia a avaliar pelas diferenças apresentadas pelo artigo «um»: «hũu» na página 18, «hũ» na página 96 [34].

            O que nos leva a três questões. A primeira é como foi feita a fixação do texto em 1897? Sobre isso David Lopes nada diz só referindo a obra por que se guiou no processo de transcrições [35] e que naturalmente também nada esclarece.

            As duas restantes, intimamente relacionadas entre si, são quem é o autor e qual a história da Crónica dos Reis de Bisnaga? Na realidade, não há um mas dois autores já que a Crónica editada por David Lopes corresponde a dois manuscritos existentes na Biblioteca Nacional em Paris que terão sido enviados de Goa para Lisboa acompanhados por uma carta. Um dos sumários (como é designado na carta) foi escrito por Domingo Paes cerca de 1520. O outro em 1536 ou 1537 por Fernão Nunes que esteve durante três anos em Bisnaga «com cavallos de que foy mal paguo» [36]. Em Lisboa os manuscritos de Domingo Paes e Fernão Nunes foram copiados por alguém. Tendo em conta que os documentos ainda existentes foram escritos pela mesma mão e os originais foram escritos por duas pessoas diferentes é fora de dúvida que o que existe não são os originais, que tudo indica terem desaparecido. Em Lisboa sabe-se que os sumários de Domingo Paes e Fernão Nunes foram usados por João de Barros pelo menos na terceira Década [37].

            Em resumo, alguém copiou (em Goa? em Lisboa?) os manuscritos de Domingo Paes e Fernão Nunes antes de 1563 (data de impressão da terceira Década) e na cópia escreveu «árvore»/«árvores» umas vezes no masculino outras no feminino. 

            Além destes dois exemplos de utilização de «árvore» no masculino para que fomos alertados pelos dicionários de António de Morais Silva e de José Machado detectámos um terceiro.

            Os Colóquios dos Simples e Drogas da Índia de Garcia da Orta [38] terminados de imprimir em Goa a 10 de Abril de 1563 em que, «árvore» aparece repetidamente no masculino como em «Que he este arvore que tão bem cheira des que se põe o sol até que sae? Me dizey si se usa delle em mézinha alguma ou em comer, porque para mim não quero cheiro mais cordial, em especial quando de súbito entro onde está este arvore.» (na primeira fala de Ruano no colóquio sexto, «do arvore triste) mas aparece também no feminino e quase imediatamente a seguir no masculino, como em «(...) fallaremos na feiçam da arvore, e folhas e flores, e doutras cousas medicinaes que do mesmo arvore se fazem.» (na primeira fala de Ruano no colóquio trigésimo segundo, «da maça e noz»). 

            Em resumo, parece-nos claro que «árvore» em português foi desde muito cedo uma palavra escrita no feminino embora durante um período relativamente curto tenha havido quem escrevesse indiferentemente no masculino e no feminino. Provisoriamente delimitamos esse período no mínimo entre 1554 e 1563, datas da impressão da edição de Ferrara das trovas de Crisfal e da impressão em Goa dos Colóquios ou, se a cópia do sumário de Fernando Paes tiver sido fiel ao original, o que não é minimamente seguro e muito menos verificável, entre no máximo cerca de 1520 e 1563.

            Curiosamente, em dois dos três casos de utilização de «árvore» no masculino que apresentámos, estão envolvidos judeus nascidos em Portugal, filhos de judeus espanhóis fugidos ou expulsos de Espanha. No primeiro caso trata-se de Abraão Usque, o tipógrafo impressor das trovas de Crisfal em Ferrara (embora no mesmo volume, na Menina e Moça, «árvore» esteja no feminino) onde chegou, fugido de Portugal com a família, garantidamente antes de 1552 ou 1553 data em que a Consolação às Tribulações de Israel da autoria de Samuel Usque foi por ele impressa. No segundo caso, o envolvido é Garcia da Orta, nascido no início do século XVI em Castelo de Vide e que estudou aproximadamente entre 1515 e 1523 em Alcalá e Salamanca [39]. Seria tentador juntar a estes dois intervenientes o tipógrafo João de Endem em cuja tipografia foram impressos os Colóquios que não tendo, que saibamos ascendência em Espanha, era alemão e em alemão «árvore» («baum») é actualmente, tal como em espanhol, do género masculino. Devemos no entanto deixar João de Endem de fora já que este teria estado ausente durante a composição dos Colóquios que foi executada por alguém com pouca experiência e saber [40], o que ajuda a explicar a fraca qualidade com que esta foi feita.

            Dada a origem espanhola quer de Abraão Usque quer de Garcia da Orta é de assinalar que pelo menos até 1490 «árvore» é escrita em espanhol no masculino ou no feminino [41]. Por exemplo, o título III do livro VIII do Fuero Juzgo que data de 1241, é «De los damnos de los árboles», no masculino, e duas linhas abaixo, no índice desse título surge no ponto I «De la emienda de las árboles taiadas», no feminino [42].

  O GÉNERO nas árvores de fruto e nos frutos das árvores
 

            Em português, contrastando com a generalidade das línguas latinas e com excepção de um curto período de não mais de 43 anos, todas as referências escritas que encontramos à árvore são no feminino.

            Não sendo raro ouvir-se que em português o nome das árvores de fruto e o nome dos frutos tende a ser feminino, observação que também pode ser encontrada em pelo menos uma gramática relativamente recente [43], considerou-se pertinente tentar quantificar essa alardeada tendência do português e verificar o que sucede noutras línguas latinas.

            Assim elaborámos uma lista de nomes portugueses de árvores fruteiras comuns e dos seus frutos reunindo 43 nomes de que foi possível identificar total ou parcialmente o género em asturiano, barranquenho, catalão, espanhol, francês, galego, italiano, mirandês, occitano, romanche e romeno além, naturalmente, do latim [9].

            Em todas estas línguas incluindo o português, «fruto» é sempre masculino tal como «fructus» em latim. A única excepção é o romeno onde «fruto» («fruct») é neutro.

            Antes de adiantarmos convirá examinar o que se passa em latim. Dos 33 nomes de árvores de fruto que conseguimos obter, 29 (87.9%) são femininos, 3 são masculinos e 1 é neutro. Dos 39 nomes de frutos que conseguimos obter, 12 (30.8%) são femininos, 3 são masculinos e 24 (61.5%) são neutros.

            Tendo em conta que o género neutro desapareceu completamente nas línguas latinas que examinámos, com excepção do romeno onde ainda se mantém, coloca-se a questão de saber qual seria a evolução a esperar no género das palavras neutras.

            Em latim com muita frequência o neutro coincidia com a forma do masculino com o radical em «-o» [44] não sendo surpreendente que a tendência geral tenha sido a substituição do neutro no latim pelo masculino nas línguas latinas, saindo este quase sempre vencedor [45].

            No entanto, não muito depois de Petrónio (?-65 d.C.) quando o neutro já estava a desaparecer do latim vulgar, os plurais neutros de sentido colectivo com a terminação em «-a» são tomados como femininos singulares (por exemplo «folia» de «folium») em textos vulgares do fim do Império e os seus descendentes virão a ser femininos, caso de folha (português), hoja (espanhol), fulla (catalão), feuille (francês), foglia (italiano, mas só no sentido botânico; de papel é «foglio», masculino).

            Poderá ter ocorrido o mesmo processo no caso dos frutos dada a elevada frequência em latim de nomes de frutos neutros com terminações «-um» no singular («-a» no plural).

            Em latim como vimos 69.2% dos nomes de frutos que encontrámos são neutros ou masculinos. Nas línguas latinas que examinámos a percentagem de nomes de frutos com género masculino varia entre 11.8% em romeno (de facto são neutros) e 55.6% em asturiano, este imediatamente seguido pelo galego (47.6%) e pelo espanhol (41.3%). Em português o valor que encontrámos foi 36.6%.

            De forma simétrica, os nomes de árvores de fruto femininos no latim em 87.9% dos casos, têm nas línguas latinas tendência para deixarem de ter nomes femininos. Em romeno nenhum dos nomes de fruteiras que obtivemos era feminino, sendo o máximo de nomes no feminino obtido em português (61.4%) seguido pelo mirandês (58.1%) e Barranquenho (54.8%).

            Representando graficamente a distribuição de frequências do género feminino em árvores de fruto e em frutos (Figura 1) torna-se mais claro o que acabámos de descrever.

            Mas torna-se também evidente que a masculinização dos nomes de árvores de fruto e a feminização dos nomes dos frutos se manifesta de forma gradual e inversa. Quanto maior a frequência de árvores de fruto no masculino maior a frequência de frutos no feminino. Uma análise de correlação linear revela-o claramente com um coeficiente de correlação r = -0.823 estatisticamente significativo (P=0.0005, n=13).

            Curiosamente o português, sendo a única língua latina que só diz «árvore» no feminino, é também a língua latina mais próxima do latim no que diz respeito à opção feminina para o género dos nomes de árvores de fruto.

            É também o português a segunda língua mais próxima do latim quando se considera simultaneamente a incidência do género feminino no nome de árvores de fruto e no nome de frutos (mais perto só o asturiano).

 

 

Figura 1. Biplot da percentagem de nomes de frutos do género feminino e de nomes de árvores de frutos do género feminino em latim e em línguas latinas. As setas indicam o sentido do aumento da percentagem do género feminino. AST asturiano, BAR barranquenho, CAT catalão, ESP espanhol, FRA francês, GAL galego, ITA italiano, LAT latim, MIR mirandês, OCI occitano, POR português, rom romanche, ROM romeno.

 

          O exame da figura 1 sugere ainda que o português, mirandês e barranquenho estão algo desviados da recta na qual todas as restantes línguas, latim incluído, parecem repousar. Nova análise de correlação linear confirma-o na medida em que não considerando as três línguas faladas em Portugal emerge uma variação inversa ainda mais forte entre a masculinização dos nomes das árvores de fruto e a feminização dos nomes dos frutos (r = -0.939, P=0.0001, n=10) com o romeno a ser o quase exacto oposto ao latim de onde deriva [46].

            Ou seja, ainda que parcialmente, o português afasta-se dessa tendência, sendo a língua latina em que claramente o feminino domina nos nomes atribuídos às árvores de fruto, entidades geradoras de alimento. 

            «Uma língua é o lugar donde se vê o mundo» e nesse sentido, da árvore, e da árvore que alimenta, o português vê o mundo no feminino.
 

NOTAS

 

[1] Vergílio Ferreira no discurso de aceitação do Prémio Literário Europália das Comunidades Europeias de 1991.

[2] Por comodidade usaremos línguas em sentido largo não distinguindo entre línguas e dialectos. Também por comodidade usaremos línguas latinas e não línguas romance para referir línguas derivadas do latim.

[3] A. Houaiss, M.S. Villar e F.M.M. Franco. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Lisboa, Círculo de Leitores, 2002.

[4] J.M. Casteleiro (coordenador). Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências. Sem local, Verbo, 2001.

[5] J.E. Cirlot. Dicionário de Símbolos. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2000.

[6] Para a influência e relação do espanhol com o barranquenho J.L. Vasconcelos. Filologia Barranquenha. Apontamentos para o seu Estudo. Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1981 (edição fac-similar da edição de 1955).

[7] M.C.N. Campos, X.M.G. Clemente e P.B. Jareño (coordenadores). Diccionario de Sinónimos de la Lingua Galega. Vigo, Editorial Galaxia, S.A., 1997.

[8] Igualmente derivado do latim, mas com significado diferente, em servo-croata «árvore» («jârbol», mastro de navio) é igualmente masculino. Em contrapartida, em romanche «árvore» diz-se «planta» e é feminino, mas é claramente não derivada de «arbor» enquanto que em romeno, além de «arbore» pode ainda dizer-se «copac» e «pom», neutro e masculino respectivamente.

[9] Fontes:

Asturiano: X.X.S. Vicente. Diccionariu Asturianu-Castellanu, Castellanu-Asturianu. Uviéu, Trebe, Lda., 1996.

Barranquenho: Luís Rodrigues.

Catalão: M.S.V. Devi. Diccionari Portuguès-Català. Barcelona, Enciclopèdia Catalana, S.A., 1985.

Espanhol: J.M. Almoyna. Dicionário de Português-Espanhol. Porto, Porto Editora, Lda., 2006; A.I. Sanromán (coordenador). Dicionário de Espanhol-Português. Porto, Porto Editora, Lda., 2008.

Francês: Dicionário de Português-Francês. Porto, Porto Editora, Lda., 1999.

Galego: X.G.F. Cid, X.M.E. Rodríguez, R.R. Gómez e C.P. Fernández. Diccionario da Lingua Galega. Vigo, IR Indo Ediciones, S.A., 1986; H.N. Ricoi e C. Silvar. Guía das Árbores de Galicia. 2.ª Edición. Sem local de edição, Baía Ediciones, 2001.

Italiano: M. Giuseppe. Dicionário de Português-Italiano. Porto, Porto Editora, Lda., 1999.

Latim: A.G. Ferreira. Dicionário de Português-Latim. Porto, Porto Editora, Lda., 1989; A.G. Ferreira. Dicionário de Latim-Português. Porto, Porto Editora, Lda., 1997.

Leonês: Palabreru Llïones recopilado por Amadeu Nuñez. Associación Cultural Esllabón Lleonesista. http://users.servicios.retecal.es/amnue/dicllion/dicciona/aqueda. htm (consultado em 28 de Abril de 2010).

Mirandês: Amadeu Ferreira.

Occitano: http://www.lexilogos.com/occitan_langue_dictionnaires.htm (consultado em 4 de Outubro de 2010).

Romanche: Lia Rumantscha.

Romeno: Anna Vrajitoru (Departamento de Linguística Geral e Românica, Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa).

Sardo, servo-croata e siciliano: http://en.wiktionary.org/wiki/Arbor (consultado em 4 de Outubro de 2010).

Valenciano: V. Pascual. Diccionari Tabarca: Valencià-Castellà, Castellà-Valenciá. València, Tabarca Llibres, D.L., 2005.

[10] Portugalia Monumenta Historica (Diplomata et Chartae) citado por J.P. Machado. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. 3.ª edição. Lisboa, Livros Horizonte, 1977.

[11] A.G. Ramalho. Legislação Agricola ou Colecção de Leis, Decretos, Cartas e Outros Documentos Oficiais de Interesse Agrícola Promulgados desde a Fundação da Monarchia até 1820. Volume I, 1139 a 1385. Lisboa, Imprensa Nacional, 1905.

[12] C.M. Vasconcelos. Lições de Filologia Portuguesa segundo as prelecções feitas aos cursos de 1911/12 e de 1912/13 seguidas das Lições Práticas de Português Arcaico. Lisboa, Dinalivro, Lda., sem data.

[13] N. Correia. Cantares dos Trovadores Galego-Portugueses. Lisboa, Editorial Estampa, 1978 para o excerto que apresentamos, ainda que com reserva já que na obra consultada houve claramente alguma actualização ortográfica; M.E.T. Ferreira. Poesia e Prosa Medievais, 2.ª edição. Lisboa, Editora Ulisseia, 1988 para a nota biográfica de Airas Nunes.

[14] A Carta de Pêro Vaz de Caminha. Lisboa, Comissão Executiva das Comemorações do V Centenário do Nascimento de Pedro Álvares Cabral, 1968 (edição fac-similar e transcrição anónima).

[15] Obras de Gil Vicente. Porto, Lello & Irmão Editores, 1965. Apresentamos este excerto com alguma reserva já que na obra consultada houve claramente alguma actualização ortográfica.

[16] Transcrição nossa da edição de Ferrara de 1554 da Menina e Moça de Bernardim Ribeiro a partir do fac-símile disponível em http://purl.pt/81. Nas obras completas de Bernardim Ribeiro, volume I, Menina e Moça com prefácio e notas de Aquilino Ribeiro e M. Marques Braga, 4.ª edição, Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1982 este excerto pode ser lido na página 161. Curiosamente, na página 162 desta edição (baseada na de Évora de 1557) volta a surgir «árvore» onde no original de Ferrara se escreve «aruoredo».

[17] Os Lusíadas de Luís de Camoẽs. Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Letras, 1972 (edição fac-similar do exemplar da edição princeps de 1572); para a localização de «árvore»/«árvores» Os Lusíadas de Luís de Camões. Vida e Obra de Camões e Vocabulário dos Lusíadas por Arnaldo de Mariz Rozeira. Lisboa, Guimarães Editores, 2001.

[18] Frei Isidoro de Barreira. Tractado das Significacoens das Plantas Flores e Frvctos que se Referem na Sagrada Escriptura. Lisboa, 1622.

[19] Frei Christovão de Lisboa. História dos Animaes, e Arvores do Maranhão. Lisboa, Arquivo Histórico Ultramarino e Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1967 (edição fac-similar do manuscrito com estudo e notas do dr. Jaime Walter).

[20] D. Vandelli. Diccionario dos Termos Téchnicos de Historia Natural. Coimbra, Real officina da Universidade, 1788.

[21] J.B. Reyes. Relatorio do Instituto Geral de Agricultura no Anno de 1883. Lisboa, Imprensa Nacional, 1883.

[22] Carta Agricola e Estatística Agricola Geral. Organização e Instrucções. Ministério das Obras Públicas, Commercio e Industria. Lisboa, Imprensa Nacional, 1894.

[23] F.E.A. Figueiredo. Tratado Elementar de Botânica. Morphologia Histologia e Anatomia. Lisboa, Typographia Castro Irmão, 1891.

[24] M. Soveral. Expressões Poéticas. Lisboa, Adolpho, Modesto & C.ª, 1891.

[25] Chronica dos Reis de Bisnaga. Manuscripto Inédito do Século XVI publicado por David Lopes. Lisboa, Imprensa Nacional, 1897 (fac-símile, sem a última página, acessível em http://openlibrary.org/books/OL6954048M/Chronica_dos_reis_de_ Bisnaga).

[26] A.M. Silva. Grande Dicionário da Língua Portuguesa. 10.ª edição revista, corrigida e muito aumentada e actualizada segundo as regras do acordo ortográfico Luso-brasileiro de 10 de Agosto de 1945 por Augusto Moreno, Cardoso Júnior e José Pedro Machado. Lisboa, Editorial Conferência, 1950.

[27] J.P. Machado. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. 3.ª edição. Lisboa, Livros Horizonte, 1977.

[28] Um resumo do debate e dos argumentos pode ser encontrado em Crisfal. Notícia Histórica e Literária, e Texto Fixado e Anotado por F. Costa Marques, professor do Liceu Normal do Porto. Coimbra, Atlântida, 1978.

[29] Egloga de Crisfal. Texto Fixado, Anotado e Explicado por António José Saraiva. Lisboa, Livraria Popular, 1939.

[30] Trovas de Crisfal. Reprodução Fac-Simile da Primeira Edição. Estudo, Variantes e Notas por Guilherme G. de Oliveira Santos. Lisboa, Livraria Portugal, 1965.

[31] Existe um exemplar na Biblioteca Nacional de Portugal. Também existe um exemplar, mas da edição de Colónia de 1559 que é dito ser praticamente um decalque da de Ferrara, na Biblioteca Pública de Évora (com fac-símile acessível em http://www.bdalentejo.net/BDAObra/BDADigital/Obra.aspx?id=331).

[32] C. Falcão. Crisfal com prefácio e notas de Rodrigues Lapa. 3.ª edição. Lisboa, Livraria Sá da Costa Editora, 1978.

[33] R. Cohen. A estrutura formal das Trovas de Chrisfal: epistemologia do sonho ou cantiga de is-ão? Colóquio Letras, n.º 135/136, p. 71-82, 1995 (disponível em http://coloquio.gulbenkian.pt/bib/sirius.exe/issueContentDisplay?n=135&p=0&o=r).

[34] Outros exemplos ainda mais próximos podem ser encontrados; por exemplo, na página 7, «ermitão» aparece grafado nas linhas 25-26 como «ermytõo» e na linha 30 como «yrmytão». Situação semelhante já tinha sido encontrada na História das árvores e animais do Maranhão [19] em que «árvore» aparece com três grafias diferentes: «aruere»/«arueres», «haruerea» e «aruores».

[35] D. Lopes. Textos em Aljamia Portuguesa. Estudo filológico e histórico. Nova edição inteiramente refundida. Lisboa, Imprensa Nacional, 1940.

[36] Extraído da carta que acompanhava os sumários, transcrita na página 80 da Crónica dos Reis de Bisnaga editada por David Lopes [25] e que separa a parte escrita por Fernão Nunes da escrita por Domingo Paes.

[37] R. Sewell. A Forgotten Empire: Vijayanagar. A Contribution to the History of India. London, Allen & Unwin, Ld., 1901 (acessível em http://manybooks.net/titles/ sewellroetext02fevch10.html infelizmente sem os fac-símile do fim do sumário de Fernão Nunes, da carta e do início do sumário de Domingo Paes).

[38] G. Orta. Colóquios dos Simples e Drogas da Índia, cópia fac-similar de edição de 1891 dirigida e anotada pelo Conde de Ficalho. Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1987.

[39] Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. Lisboa e Rio de Janeiro, Editorial Enciclopédia, sem data. Volume 19 para Garcia da Orta, volume 34 para Abraão Usque (no verbete Usque, Samuel).

[40] Garcia de Orta e os seus divulgadores (1505? - 1568). Em http://www.arlindo-correia.com/100207.html (consultado em 22 de Fevereiro de 2011).

[41] J. Corominas e J.A. Pascual. Diccionario Crítico Etimológico Castellano e Hispánico. Madrid, Editorial Gredos, 1987.

[42] Edição fac-similar do Fuero Juzgo en Latín y Castellano, Madrid, Real Academia Española, 1971 (disponível em http://www.cervantesvirtual.com/obra-visor/fuero-juzgo -en-latin-y-castellano--0/html/).

[43] P.V. Cuesta e M.A.M. Luz. Gramática da Língua Portuguesa. Lisboa, Edições 70, 1971.

[44] J. Herman. Le Latin Vulgaire. 3ème édition revue et corrigée. Paris, Presses Universitaires de France, 1975.

[45] S.S. Neto. História do Latim Vulgar. Rio de Janeiro, Ao Livro Técnico S/A, 1977; G. Lapenda. O Substantivo Italiano/IV. http://pt.wikisource.org/wiki/O_substantivo _italiano/IV (consultado em 23 de Abril de 2010).

[46] Curiosamente a actual Roménia foi a última a ser colonizada por Roma [44] e, segundo A.J. Saraiva e O. Lopes. História da Literatura Portuguesa. 17.ª edição corrigida e aumentada. Porto, Porto Editora, 1996, o romeno terá sido a última língua latina a ter fixação escrita.

 

 

 

Luís Silva Dias & Alexandra Soveral Dias
Departamento de Biologia, Universidade de Évora

 

 

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