REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número especial
Homenagem a Ana Luísa Janeira

 

Ana Luísa Janeira
Foto de José M. Rodrigues

CATARINA OLIVEIRA

Marcas de Ana Luísa Janeira na MARCA

Cruzar disciplinas, pessoas, gerações e geografias

 

 
DIREÇÃO  
Maria Estela Guedes  
Índice de Autores  
Série Anterior  
Nova Série | Página Principal  
SÍTIOS ALIADOS  
TriploII - Blog do TriploV  
TriploV  
Agulha Hispânica  
Filo-cafés  
Bule, O  
Contrário do Tempo, O  
Domador de Sonhos  
Jornal de Poesia  
   

Cal, terra, barro, pedra, ferro, cortiça, … Matérias para a construção em tempos ido, foram também em Montemor-o-Novo, pela mão da Ana Luísa Janeira, matérias para a construção de uma reserva de conhecimentos em torno dos saberes e técnicas ligados à sua produção e transformação. 

Nómada, como afirma ser, sempre em viagem pelo mundo e pelo conhecimento, Ana Luísa chegou a Montemor-o-Novo em 1999.

 
 
 
   
   
 
 

 

 

Ana Luísa Janeira envolvida nas actividades do projecto
“De que eram feitas as casas dos nossos avós?”

 

Estou certa que o monte onde habitou, com as suas várias unidades funcionais, as largas paredes de taipa, os grossos contrafortes e as grandes chaminés; bem como a sua primeira visita ao Telheiro da Encosta do Castelo, onde viu o mestre e os seus “aprendizes” em formação, pisando o barro no barreiro, enformando tijoleiras e tijolo burro, alimentando os fornos horas a fio, terão sido pontos de partida para as muitas questões que orientaram os projectos que, desde então, desenvolveu com MARCA-ADL. 

Era a MARCA, na altura, uma associação que procurava caminhos alternativos para o desenvolvimento local. A partir de alguns dos valores culturais e ambientais do território, ainda identificado com práticas e valores do mundo rural, buscava criar novas dinâmicas, reflectindo sobre a possível revitalização social e económica de actividades tradicionais e produtos locais, conferindo-lhes novas valências. Um telheiro - unidade tradicional de produção de materiais cerâmicos para a construção, na génese da constituição da associação; os brinquedos populares que haviam marcado a infância das gerações mais velhas e em torno dos quais se constituíram colecções, desenvolveram estudos e dinâmicas pedagógicas; os usos antigos das plantas na medicina popular e alimentação, a partir da figura de um mestre detentor ainda de valiosos saberes; e a riquíssima paisagem rural, cuja interpretação se oferecia como um desafio constante para a sua identificação e descodificação, começaram por ser as matérias-primas a partir das quais, ao longo dos anos que se seguiram, a MARCA construiu o seu percurso. A sua intervenção ía procurando um diálogo permanente, de valores e sistemas identitários, entre a tradição e a modernidade, na definição de um modelo de desenvolvimento local qualificado e inovador.  

Os saberes e técnicas ligados à construção tradicional e as formas de habitar o território, pelas inúmeras questões associadas, foram certamente uma das áreas mais marcantes da reflexão e intervenção da Ana Luísa na MARCA. Questões mais abrangentes, de filósofa habituada a questionar o mundo distante e a realidade próxima: Como se habita um espaço, como se cria um lugar, como nos ligamos ao território, às matérias disponíveis e ao ciclo natural das estações? Porquê o apelo ao local, aos saberes, às raízes, num mundo global dominado pelo conhecimento científico e tecnológico? Como se caracteriza a transmissão de saberes-fazeres numa relação social mestre-aprendiz – articulando saber acumulado, observação, experiência – e qual o seu valor no contexto das novas formas de aprendizagem e transmissão de conhecimentos nas nossas escolas e universidades?

Mas também questões concretas, que decorreram da observação de um projecto: a reactivação da produção num telheiro abandonado. Reactivado a partir de 1995, o telheiro, situado na Encosta do Castelo de Montemor-o-Novo, é uma unidade de produção de materiais cerâmicos para construção (tijolo burro e tijoleira), actividade que se encontrava já extinta no concelho, onde se preservam as técnicas artesanais e se utilizam as terras argilosas da região. Gerido pela MARCA desde 1997, funciona na área da produção de materiais de construção tradicionais que podem ser utilizados na recuperação de edifícios antigos e em novas propostas na arquitectura contemporânea. Vertente entretanto enriquecida com a produção de materiais cerâmicos decorativos com vidrados e engobes para pavimentação e revestimento, inspirados em padrões e motivos do património artístico da região. No sentido de assegurar a continuidade da actividade, organizaram-se cursos de formação profissional para jovens, procurando contribuir assim também para a integração social e promoção de emprego. O projecto associa ainda uma terceira vertente na área das artes plásticas ligando as técnicas e materiais tradicionais à produção artística contemporânea. Projecto em construção carregado de sonhos e vontades – ligados à valorização dos saberes-fazeres tradicionais, à sua adequação às necessidades actuais, à preservação das paisagens rurais e urbanas –, mas não isento de dificuldades e contradições: motivar os mais jovens para uma actividade socialmente desvalorizada e associada a contextos de pobreza e trabalho duro; tornar uma actividade sazonal viável ao longo de todo o ano; preservar os modos de fazer tradicionais recorrendo a alguma tecnologia mais actual que garanta sustentabilidade económica da actividade e o alívio da carga para os trabalhadores; conciliar a dimensão da produção tradicional com a inovação, a criação artística e a desejável dimensão pedagógica e museológica.

Levantadas as questões, muitas já nas cabeças dos que quotidianamente intervinham na MARCA, começaram a constituir-se projectos, ligados entre si, que procuravam pensar sobre muitas destas questões. Inconformada com um ensino desligado do real, da sociedade, Ana Luísa apressou-se a envolver os seus alunos da disciplina de Sociologia das Ciências da Licenciatura de Ensino/Química e Bioquímica que ministrava da Universidade de Ciências da Universidade de Lisboa, neste questionar da realidade. O projecto “Formas de Viver - Formas de Pensar - Formas de Habitar. Ciências técnicas e saberes” iniciado em 2000 trouxe assim a Montemor-o-Novo mais de uma dezena alunos, que no contacto directo com mestres na área do tijolo, da cal, da pedra, do ferro e o azulejo, procuraram compreender antigas formas de transmissão saberes-fazeres.

Com o projecto “Formas de Viver – Formas de Fazer – Formas de Saber. Fazeres com Saberes”, estudante e professores portugueses e brasileiros, de diferentes graus de ensino (básico, médio e superior), bem como docentes e consultores de diferentes áreas disciplinares, procuraram compreender, através de actividades de ensino-investigação marcadamente interdisciplinares, como saberes e ciências se foram articulando com as vivências existenciais e matérias-primas associadas à terra, olaria e respectivas técnicas construtivas, desde os romanos até nós. Na universidade, no âmbito do sub-projecto “Saberes tradicionais e conhecimentos científicos modernos”, Ana Luísa orientou os seus alunos da disciplina de Ciências e Saberes, convidando-os a fazer uma análise reflexiva e crítica a partir de uma entrevista a um mestre do saber tradicional e de registos científicos sobre o tema.

Todos estes trabalhos de alunos, docentes, investigadores, entretanto disponibilizados nos sites www.saberes.no.sapo.pt e www.fazeres.no.sapo.pt, resultaram num kit pedagógico que serviu de suporte à dinamização da acção educativa dirigida ao 1º ciclo “Como eram feitas as casas dos nossos avós?”. Professora universitária, habituada à relação académica com alunos do ensino superior, Ana Luísa entrou nas salas cheias de crianças de algumas das escolas do primeiro ciclo, motivou-as, levantando questões ligada às formas de habitar e construir no tempo dos nossos avós; calcorreou com elas antigos caminhos de terra em busca de antigos montes. Entraram pelas casas a dentro, desenharam, fotografaram, falaram com os seus habitantes; no telheiro meteram todos as mãos na massa e aprenderam com o mestre as antigas técnicas de produção de tijolos e tijoleiras; e finalmente no pátio da escola, ergueram todos uma casa de tijolo-burro como no tempo dos avós. (ver resultados a partir de http://saberfazer.no.sapo.pt/). No outro lado do Atlântico, no Brasil, outras tantas crianças numa escola em Vassouras, acompanhavam os nossos trabalhos e envolviam-se em actividades norteadas pelas mesmas questões.

Em 2007, o Encontro/Laboratório Habitar Sustentado/Sustentável - Tradição e Inovação na Arquitectura e Construção, organizado pela MARCA-ADL, em Montemor-o-Novo, representou o culminar do envolvimento da Ana Luísa, peça fundamental na sua organização. Com uma vertente marcadamente teórica e prática, pretendeu-se, em torno do telheiro da Encosta do Castelo, reunir especialistas (arquitectos, engenheiros, historiadores, filósofos) num espaço de aprendizagem, reflexão e sensibilização para as questões da arquitectura sustentada/sustentável. A reflexão em torno dos conceitos de sustentado e sustentável, de paisagem cultural e sua valorização, da noção de monumento à de património cultural, e a apresentação de experiências no Alentejo, no Algarve, em Moçambique e no Brasil, foram ponto de partida para um workshop participado onde se discutiram muitas das questões que vinham sendo levantadas há vários anos: Como adequar a reactivação da produção de materiais de construção tradicionais às novas lógicas de mercado, à nova legislação e à falta de mão-de-obra especializada ligada à desvalorização da actividade; ou que utilizações para estes materiais e técnicas, na reabilitação do património em zonas históricas, em novas propostas de arquitectura sustentável e na criação de novos materiais para aplicações decorativas? Questões que se levantam a partir deste lugar e deste projecto, mas que não deixam de ser comuns a muitas das experiências de desenlvolvimento local. 

Marcas da Ana Luísa na MARCA: diversos textos de reflexão entretanto publicados; sites na internet com divulgação das produções associadas aos projectos; KIT pedagógico: De que Era Feita a Casa dos Nossos Avós (com textos produzidos por alunos de História, Filosofia e Sociologia das Ciências da FCUL), constituindo-se no seu todo como uma reserva de conhecimento para futuras aproximações e reflexões aqui e em qualquer lugar. Porque em comum, têm o permanente questionar das realidades a partir de conceitos e de ideias, que a todos, hoje, inquietam: tradição e inovação; memória versus mudança; sustentado versus sustentável; global-local; mestre-aprendiz / professor-aluno,…

Interrogar a realidade, as práticas, reflectir sobre o que a rodeia e a partir daí intervir pensando e pensar agindo. Criar e envolver. Criar projectos, processos de aprendizagem, de reflexão. E envolver, cruzar disciplinas, pessoas, gerações, geografias. Talvez duas das mais relevantes marcas que identificam a Ana Luísa Janeira e que deveriam marcar qualquer processo de desenvolvimento. 

 

Catarina Oliveira
Presidente da Direcção da MARCA-ADL entre 2002 e 2005

 

 

 

Catarina Oliveira (Lisboa, 1972, Portugal)
Licenciada em Historia Variante de Arqueologia (1994) e Mestre em História Regional e Local (1999) pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. É técnica Superior de Património Cultural em autarquias locais desde 1998, sendo actualmente responsável pelo Centro de Investigação e Informação do Património de Cacela na Câmara Municipal de Vila Real de Santo António onde desenvolve trabalho nas áreas da investigação científica; comunicação, interpretação, valorização e usufruto do património e das paisagens culturais; bem como na área da educação para o património. Tem concebido, coordenado e implementado projectos de desenvolvimento local enquanto dirigente de uma ADL no Alentejo, e integra actualmente a direcção da AGECAL – Associação de Gestores Culturais do Algarve. Enquanto investigadora tem desenvolvido e colaborado em diversos projectos na área do património cultural, história e arqueologia, tendo sido recentemente bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian (2006-2007). Publicou livros e diversos artigos e roteiros sobre arqueologia, história e etnografia.

 

 

© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
PORTUGAL