16º episódio - Cordão alado desce da Lua
Ao assobio dos tucanos e ao grasnar das araras junta-se o tagarelar dos papagaios, de todos os tipos, que vão chegando. Primeiro os grandes ajurus bocas de gente, palradores, gordões, todos verdes, penas pretas orlando o pescoço. Em seguida, os ageruetés, papagaios verdadeiros, que se levam a Portugal, verdes, encontros das asas vermelhos, toucado da cabeça amarelo, ainda mais faladores que os ajurus. Depois, as pequenas curicas do mangue, fedelhos de papagaio, futriqueiras e azucrinantes, primas do curau, pequeno pássaro maldizente. Em seguida, os verdíssimos periquitos, pingos de pássaro, arremedos de papagaio, serelepes, irrequietos e barulhentos. Por último, os maracanãs, cabeças toucadas de amarelo, bico grosso, rabo comprido e vermelho, gritadores, imitando o chocalho dos maracás. Reunidos, os papagaios sobrevoam a aldeia. No centro do terreiro, Guaratinga-açu, Nhaêpepô-oaçu, Itajibá e os outros chefes não atinam um motivo para o comportamento dos pássaros. “É o Deus do peró (português) que está zangado pelo que lhe fizemos”, vaticina o pajé, levando Guaratinga-açu, para frustração dos curumins, a suspender a caçada aos passarinhos. Temerosas, todas as mulheres, até mesmo as velhas gulosas, recolhem-se nas cabanas. Só os homens e alguns curumins mais atrevidos, como Piracanjuba, continuam olhando, do pátio da aldeia, o escuro cordão de pássaros que desce da Lua. “A Lua é filha da Terra; um dia estiveram ligadas assim”, diz Potira. E acabam de chegar os tuins, de bicos brancos, muito pequenos, revoltos para baixo, agitados e tagarelas, girando em círculo e jamais parando de voar; de tão minúsculos, só se tornam visíveis ao cruzarem o disco amarelo da Lua. Rolas descem do Céu, de várias espécies: picaçus bravas, pairatis meigas, jurutis saborosas, nambus formosas, picuepebas pequenas. Macucagoás de pernas compridas, cheias de escamas, com feição de galinha, pousam ao longo do chão e correm de um canto para outro, bicando qualquer um que se lhes barre o caminho. Chegam os mutuns de pernas longas e pretas e se põem a correr pelo chão, no que são imitados pelos jacus de bico preto e tuiuiús de papo vermelho. Grandes e saborosos, noutras ocasiões os índios poriam cães a cosso contra esses pássaros ou os matariam a flechadas, mas agora, aparvalhados, não sabem o que fazer. Os cães rosnam e latem, mas não se atrevem a deixar as cinzas das fogueiras, onde se enroscam. Um ou outro que desafia o medo, logo as bicadas o convencem a retroceder. Os formosos pássaros de água doce chegam. Primeiro as uratingas, as garças brancas, de pernas longas, macérrimas, bico mui comprido, pés amarelos e um molho de plumas entre os encontros das asas, que lhes chegam à ponta do rabo. As upecas chegam a seguir, com sua natureza de pato, pondo-se a bater água no porto, juntando-se a elas as piaçocas que moram no “aguapé” (folha chata, redonda e espessa que cobre lagoas e margens dos rios), e não param de saltar. Martim-pescadores, arirambas, jacuaçus e outros comedores de peixes também pousam n’água, atentos ao movimento das outras aves. E chegam as aves do mar: carabuçus, carapirás, jaborus, urateons, atis, matuins, matuimirins, batuíras, maçaricos, socós, maguis. Barulhentos e hostis, apoderam-se da praia, transformando as canoas em poleiro. Alguns tapuios, ciumentos de suas montarias, tentam espantá-los, mas as bicadas os fazem recuar, terminando um deles com o olho vazado. Recolhidos nas cabanas, as portas bem fechadas pelos “japás” (tecidos de palha), nenhum tapuio se arrisca a sair. Pelas frestas da parede, limitam-se a espionar os pássaros lá fora. Mas até isso já não conseguem, pois, como que esgotada de parir tanto pássaro, a Lua vai perdendo quase por completo o seu brilho. “Iaci tapuia puxuêra reté” (a Lua está morena e feia), diz Alkindar-miri, ao lado de Potira. Potira não responde, mas sei o que ela pensa. Potira está triste. “Potira i aruru. Mbae resepe?” (Potira está tristonha. Por quê?), pergunta Alkindar-miri. “Xa çaciara xa icó mahárecé xa canhimo nhahã xa çaiçú reté uahá” (estou triste porque perdi o que mais amava), responde a rapariga. “Sori nde pia, peró ndomanoi” (alegra-te, o português não morreu), diz Alkindar-miri. “Não morri, mas perdi meu corpo”, penso, lembrando que vivo agora em um passarinho. Milhares de pássaros já desceram da Lua, o cordão está curto e fino, mas parece infindável: uranhengatás, tiepirangas, aiaiás, jaçanãs, tupianas, saiubuís, sanhaçus, tesourinhas, macacicas, pipiras, tiejubas e beija-flores chegam. Estes últimos, conhecidos por guainambis, antes de se misturarem na multidão de pássaros, vêm ter com Potira, como se a conhecessem. Giram em torno dela e, um de cada vez, tocam o biquinho comprido no rosto da cunhantã. Fraco é o luar, mas enxergo bem os beija-flores, os mais finos pássaros que se pode imaginar, com o barrete sobre a cabeça, cuja cor é impossível definir, porque, de qualquer parte que se olhe, mostra-se vermelho, verde, preto e de todas as outras cores. “Em vez de sabiá, por que a minha cabeça não se transformou em beija-flor?”, lamento-me. Os sete bichinhos fazem piruetas rapidíssimas em volta da cunhantã e somem num piscar de olhos, deixando para trás apenas um estrondo parecido ao vôo das abelhas. “Iueré curi! Uainambi!” (adeus! beija-flores!), despede-se Potira, adocicando a voz. Adivinhando meu ciúme, a rapariga acaricia-me a cabeça, mas não me alivia a tristeza, que só aumenta com a chegada das corujas. Urucureans, jucurutus, ubujaús, oitibós, bacuraus de olhos grandes e três listras pardas, e outros pássaros soturnos, pousam nos galhos secos das árvores próximas e aí ficam chorando seus nomes. Depois vêm os morcegos brancos, negros, grandes, pequenos, de todos os tamanhos; andirás pavorosos que, nesta noite, em vez de buscarem o calor dos corpos onde há sangue, aquietam-se nas palhas das cabanas. E mais pássaros vão chegando: suiriris, urandis, pexaroréns, querejuás, pardais, muepererus, nhapupés, saracuras, orus, anus, maguaris, aracuãa, atiaçus, timunas, uanandis, uapicus, toatós, uraoaçus, caracará, acauãs, bem-te-vis. “Iaci-tatá” (o luar) volta a clarear a noite, já se vendo a outra ponta do cordão a pouca altura do Céu, mas pássaros ainda chegam. Urubus de faro apurado, cegonhas desengonçadas e caburé-açus majestosos pousam na árvore mais alta que há perto da aldeia. Eis que chegam meus amigos sabiás, primeiro os sabiás-pitangas, pardos que nem eu, rezando seu eterno “bu, bu, bu”; depois os sabiás-pocas, aleonados e de canto estalante; por último, os sabiás-unas, negros como diz o nome. Muitos pássaros ainda pousam, até descerem os tangarás. Ao vê-los, os outros pássaros abrem-lhes espaço. Do tamanho dos pardais, todos pretos, cabeças de um amarelo alaranjado muito fino, os tangarás não cantam, mas fazem um baile gracioso: um deles finge-se de morto, e os outros o cercam ao redor, saltando e fazendo um cantar de gritos estranhos que se ouve muito longe. Ao fim do baile, o que se passa por morto grita e dança, e se levanta, dando um grande assobio. |