17º episódio - Sonhar é tua sina O CORDÃO negro terminara de descer, o ponto escuro transferira-se todo para a Terra, a Lua-cheia voltara a brilhar. Pelas frestas das choças, os tapuios assistem à dança dos tangarás; ninguém se atreve a enfrentar os pássaros que recobrem todos os pontos da aldeia, como um espesso tapete escuro, morno, pulsante e ameaçador. Em vão as mães tentam abafar o pranto dos curumins, que, em seus colos, ou nos puçás, choram espantados com o estrondo ruidoso que as aves fazem sobre as palhas das cabanas. Guaratinga-açu e os outros guerreiros devem estar na grande cabana, de cócoras, em torno de um tição quase apagado, murmurando seus temores, sem atinar o que fazer, pois eles sabem que nada podem contra a noite, porque a noite é sagrada e traz os sonhos, que seta alguma pode ferir. O curare peçonhento, que torna mortal o vôo das flechas, foi extraído da mandíbula da serpente, quando ela ainda tinha asas e falava. Picado pela víbora, a mente do homem abriu-se para o bem e para o mal, para o claro e o escuro, o certo e o errado. E a luz infiltrou-se por todos os lugares, entrou em todos os desvãos, em todas as brechas, em todas as nervuras, em todos os poros, dissipando as coisas ocultas. Luz tão intensa, ofuscante, que acabou por cegá-lo, desaprendendo ele a distinguir o bem do mal, o certo do errado, o amor do ódio, a compaixão da ternura. Teme a noite mas volta-se contra o dia, que o faz enxergar seu corpo nu, mirrado, costelas magras, boca desdentada, bochecha encovada, escrotos pelancudos e olhos empapuçados pela repetição dos dias. Animal degenerado, o único que, sem fome, sem necessidade, devora seu semelhante. Imaginas-te superior, mas não cantas como os rouxinóis nem bailas como os tangarás; diante do olhar vítreo da águia e do pio agourento da coruja encolhes-te, e o grasnar desagradável das gralhas e o monótono “bu, bu, bu” dos sabiás levam-te à loucura. Da lama vieste, em lama vives e na lama permanecerás pela eternidade. Na hora extrema da tua insignificância vociferas contra tudo o que não lograste. Róis tuas próprias entranhas, mortificam-te os remorsos, mas desejas tua mãe e deitas-te com tuas filhas. Constróis ocas, malocas, vilas e cidades, e no centro delas ergues, derrubas e reergues monumentos. Nos portais dos palácios que mandas construir gravas teu nome, enquanto se ouvem os gritos dos que sucumbem sob as pedras. Como uma besta, uma pulga ou um cavalo, também morres, mas te queres eterno. Sem saber o que já foste e desconhecendo o teu instante derradeiro, rebelas-te contra o destino. Com a alma conturbada, corres atrás do vento, desperdiças teus dias. Exausto e vazio, voltas para casa com a cabeça pesada e a memória enlouquecida; as noites te agoniam. Refugias-te então na imaginação. Contas histórias em torno da fogueira, depois da cansativa caçada, vanglorias-te do sangue derramado, mordes o fêmur da presa abatida e a teus filhos e aos cães ofereces as tripas. Temeroso de tua própria sombra, já não dormes; dias e noites misturam-se em tua vigília; mesmo assim, sonhas, pois sonhar é tua sina, mas os sonhos escapam-te pela manhã, fazendo voltar-te contra os pássaros que sobrevoam tua casa e pousam em teus pensamentos. Gostarias de prendê-los, mas te faltam gaiolas para todos eles. “Iueré curi, sabiá!” (até breve, sabiá!), diz Potira, impulsionando-me para o ar do terreiro. Ainda volto a pousar em seu ombro. “Vai-timbora, passarinho, os pássaros só tão te esperando, um dia a gente se encontra”, ordena a cunhantã, com voz chorosa. Sei que não posso ficar com Potira, pertencemos à mesma natureza, mas vivemos em mundos diferentes. “Iueré curi, catureté!” (até breve, querida), assobio para ela, e saio esvoaçando para o terreiro. No chão, nas estacas da caiçara, na cobertura das cabanas, nas canoas do porto e nas árvores próximas à aldeia não há um só ponto desocupado. Bato asas à meia altura e logo recebo a companhia dos meus camaradas sabiás, os quais, como que me adivinhando a pouca habilidade para voar, circulam à minha volta, avançando e recuando, encorajando-me com seu desenxabido “bu, bu, bu”. Pressentindo a agitação da passarada, sobrevoamos a aldeia algumas vezes, até que, de uma só vez, em estrondosa revoada, o tapete escuro e espesso se desgruda do chão vibrando a noite prateada. Meto-me no meio dos sete companheiros, sentindo em meu peito de sabiá o coração bem pequenino. “Bu, bu, bu” (não tenhas medo, viemos todos te salvar), gritam-me os sabiás, um ventinho frio zunindo em meus ouvidos. “Mas tomas cuidado com os gaviões e as corujas”, completam, enquanto a grande massa pulsante de pernas, pescoços, pés, rabos, cabeças, cristas, costas, bicos e asas, como um só corpo, avança no espaço, ora fechando-se ora expandindo-se. No meio do turbilhão, deixo-me levar, sem saber para onde estamos indo; pressinto apenas que estamos subindo. Na multidão de pássaros que se movimenta é muito arriscado arredar-se para a esquerda ou direita, e um pequeno retardo pode ser fatal. Mas, depois de algum tempo, sinto-me seguro, perfeitamente inserido no ritmo do grande organismo, que a todos comanda e por todos pensa. Não sinto mais o bater de minhas asas, nem o latejar do sangue em meu corpo, deslizo sem nenhum esforço, num farfalhar de penas ora ruidoso ora suave como a voz da brisa; aprendo, pouco a pouco, a distinguir os sons dos ruídos, conhecer a sua procedência e até mesmo a intenção com que são produzidos. De algum ponto chegam-me, nítidas e compassadas, as batidas de asas das araras; uma entre elas destoa, talvez machucada pelos curumins. Os papagaios não estão muito longe, ouço-lhes o nervoso compasso do vôo misturado ao seu inconfundível tagarelar. À esquerda, os ajurus palradores, gordos e pesadões, não podem voar no centro. Os ageruetés, sim, ágeis e ainda mais faladores, seguem no meio. Onde vão as pequenas e futriqueiras curicas? Escuto seu azucrinante alarido em todos os lugares, misturado ao ti-ti-ti dos irrequietos, barulhentos e serelepes periquitos. Na retaguarda, vêm os maracanãs, ouço-lhes os gritos imitando o chocalho dos maracás. Minúsculos e agitados, sempre girando em círculo, os tuins de vez em quando passam perto de nós, nunca se sabendo onde exatamente estão. Mas do “flu, flu, flu” compassado das rolas, nalgum lugar, sobressaem as batidas mais pesadas das nambus. Os grandes macucagoás, os mutuns e os jacus, péssimos voadores, viajam, por precaução, embaixo de todos. E as macérrimas garças brancas? Impossível saber onde estão, pois voam suaves e em silêncio. Mas pressinto as upecas, acostumadas a bater asas n’água, assim como as piaçocas do mangue, e os martim-pescadores, arirambas, jacuaçus e outros comedores de peixes, como os carabuçus, carapirás, jaborus, urateons, atis, matuins, matuimirins, batuíras, maçaricos, socós e maguis, barulhentos e hostis, escandalosos no voar. Já voamos muito alto, o calor dos corpos em movimento não é suficiente para aquecer o ar, rarefeito e frio. Perco energia e tenho dificuldade para acompanhar o ritmo frenético dos sabiás. “Bu, bu, bu” (força, camarada! um pouquinho mais e chegamos à Lua), encorajam-me eles. “Pra Lua?!...”. “Sim, pra Lua, que é teu lugar”. “Então nunca mais verei Potira”, penso, cada vez mais confuso. “Potira te espera lá; nunca pertenceu à Terra”, estimulam-me os sabiás, mas falta-me o ar e meu juízo de passarinho rodopia. Na vertigem, no interior da massa escura que se movimenta, enxergo claro como se fosse dia. Uma jaçanã viaja nas costas de uma cegonha, a qual, acostumada a entregar crianças a longas distâncias, empresta suas forças com alegria. Um urubu carniceiro carrega de bom grado entre as asas um pequeno anu-preto, seu primo, sem apresentar para este nenhum perigo, pelo menos enquanto o anu estiver vivo. As gralhas nem notam, mas os beija-flores, talvez mais por preguiça do que por cansaço, viajam em seus dorsos. Nenhum passarinho, por mais esgotado, arrisca-se a pedir favor às corujas, exímias voadoras. Elas até se oferecem, mas todos desconfiam dos bons propósitos das predadoras noturnas. Ninguém também cede as costas aos morcegos, por mais cansados que estes se finjam, ainda mais que é de noite que eles chupam sangue. Vendo-me exausto, um “caburé-açu” (grande morador do mato), corpo pardo, asas pretas, bico revolto, pernas compridas, garras enormes como as da águia de Portugal, aproxima-se de nós e oferece-me o seu dorso. Hesito. “Cuidado com os gaviões e as corujas!”, não me alertaram os sabiás? Mas tão meigo, quase humano, é o lampejo que vejo nos grandes olhos negros do caburé-açu que, irremediavelmente atraído, esqueço-me do conselho dos meus companheiros e pouso nas costas da águia, de onde enxergo o movimento vigoroso mas suave de suas asas, que atingem uma envergadura de dois metros. O dorso da águia é só meu, nenhum outro pássaro confiara entregar-se aos cuidados do predador, de tão terrível fama. Eu mesmo conheço histórias macabras sobre o caburé-açu. Dizem que certo homem, viajando a cavalo em estrada solitária, nos arredores de Belém, ouviu pelas costas um rumor estranho. Sem distinguir do que se tratava, virou-se. Foi o tempo apenas de sacar do trabuco e desfechar dois tiros numa ave monstruosa, cujas garras iam quase a tocá-lo. O animal enorme, imponente, no ar, com as asas distendidas, o bico mui grande e adunco, escancarado sobre a presa iminente, e as garras encurvadas e possantes, capazes de abraçar um corpo volumoso e nele se enterrarem, aos tiros caiu, fragorosamente, porém não morto ainda, acabando o homem por matá-lo a pau, no meio da estrada. Conta-se também que, no mesmo lugar, há muitos anos, um pássaro gigantesco arrebatara, do terreiro de uma casa, uma criancinha que brincava, a qual, infelizmente, quando socorrida, já era cadáver. Por muito tempo a ave não deu sossego às criações e serviu de espantalho às pessoas, até que, depois de paciente trabalho, os caboclos construíram armadilhas de laço e apanharam vivo o raríssimo exemplar de caburé-açu, que foi transportado para um museu na Bahia, segundo me disse um estudioso brasileiro. Acho que, naquela hora, lembrei destas coisas, pois senti grande medo. Penso então em voar para perto dos meus amigos sabiás, mas não consigo, tolhe-me indescritível pavor.
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