15º episódio - Lua tisnada de sangue





Guaratinga-açu, saindo de sua choça, vem ao encontro de Potira. “O que tens aí enrolado nas folhas de bananeira?”, pergunta à filha, “e de onde vens?”. Potira responde: “Por causa do medo que o português sentia da morte, levei-o comigo à floresta, a fim de que ele deixasse de ser medroso, e com ele dormi na mata. De noite, a sua cabeça fugiu, pois estava com sede. Quando voltou, depois de ter bebido, e aproximou-se de mim, na escuridão, assustei-me, soprei e abanei o fogo, fazendo subir as chamas. O português então transformou-se em pássaro. Não quis abandonar o corpo dele na floresta, onde seria devorado pelos urubus, por isso trouxe-o até aqui”. Talvez pensando que, se me capturasse, ainda poderia fazer a cabeça retornar ao corpo, Guaratinga-açu pergunta em que espécie de pássaro minha cabeça havia se transformado. “Não sei, pai”, responde Potira. “Nem que ela soubesse, uma cabeça viva não pode viver num corpo já assado”, raciocina o meu miolo de passarinho.

Muito zangado com Potira, Guaratinga-açu chama os curumins e ordena-lhes que capturem todos os pássaros que encontrarem dentro ou próximo da aldeia. Aos homens, que rodeiam o corpo no chão, ordena que o levem de volta à cabana, onde Potira e Alkindar-miri devem guardá-lo das investidas das velhas gulosas. Comandados por Piracanjuba, o curumim mais danado da tribo, uma chusma de miúdos inicia a caçada a todo ser que bata asas, voe ou não. Com cestas de tala de palmeira, cordas de envira com laço nas pontas e arapucas armadas em lugares estratégicos da aldeia, empregando toda sorte de engodos e assobios para atrair os passarinhos, os curumins lançam-se com afinco na tarefa. Aproveitando de um instante em que Alkindar-miri deixa a cabana, saio de trás do caibro, onde assistia a tudo encolhido, e venho pousar no ombro de Potira, tentando, com todas as inflexões possíveis ao meu tosco “bu, bu, bu”, dizer a ela quem eu sou. “Vai-te embora, sabiá, senão os curumins te pegam!”, ralha a cunhantã, enxotando-me do seu ombro. Bato asas pela cabana e volto a pousar em seu ombro. "Bu, bu, bu”, é só o que sai do meu bico. “É estranho este passarinho; sabe que corre perigo mas não quer ir simbora!”, escuto minha amiga murmurar. Bico-lhe carinhosamente os cabelos e a face, segurando-me para não soltar o meu irritante “bu, bu, bu”, sem o qual um sabiá até pode passar por pássaro bonito. De pé no ombro da rapariga, meus olhos de sabiá estão bem próximos dos olhos de Potira, que faíscam agora com uma inteligência nova. “Iuri Iké, guaraporanga!” (vem cá, pássaro bonito!), chama-me ela, oferecendo-me o dedo indicador, no qual pouso sem receio. Em seguida, leva-me até bem pertinho dos seus lábios e acaricia-me com a pontinha da língua. O amigo será capaz de imaginar o que é sentir-se passarinho nos dedos de sua amada? “Aipotar nde iababa coer” (quero que fujas agora), sussurra-me Potira. “Tupãna irúmo, guairai!” (adeus, meu passarinho, vai-timbora!), ordena a cunhantã, forçando-me esvoaçar e bater asas pela choça, mas volto a pousar em seu ombro. “Então Opitá!” (tá bem, fica!”), rende-se Potira, escondendo-me entre as palmas de suas mãos, para que Alkindar-miri, que acaba de voltar à cabana, não me descubra. Lá fora, no terreiro da aldeia, os pajés da tribo, convocados por Guaratinga-açu, agitando seus maracás e fumando cigarros de tauari, invocam os espíritos do fundo, a fim de identificar em qual passarinho, entre os capturados pelos curumins, esconde-se a cabeça do prisioneiro. Empenhado pessoalmente na busca, Nhaêpepô-oaçu invade a cabana e põe-se a vasculhar, sem dirigir palavra à irmã. Quando o tapuio vai meter a mão no buraco onde estou encolhido, Potira interpõe-se entre ele e a parede, gritando: “Iucasara! Iucasara! Moxy!” (matador de gente! maldito!”). Surpreso com o atrevimento da cunhantã, Nhaêpepô-oaçu hesita, mas, um instante depois, aplica, com as costas da mão, uma bofetada no rosto de Potira. “Esiquiié umem, iuri iké, guairai!” (não tenhas medo, vem cá, meu passarinho!), murmura a minha protetora, retirando-me do esconderijo, depois que o irmão se fora. “Alkindar-miri guairai mim?” (Alkindar-miri me ajuda esconder o passarinho?), pergunta Potira a Alkindar-miri, produzindo um ar de estupefação na carranca do tapuio. Em seguida, notando que eu estava com sede, pede para Alkindar-miri buscar água. Alkindar-miri sai da cabana com uma cabaça na mão. “Fala comigo agora, fala!”, diz Potira, depois que bebi da água trazida por Alkindar-miri. “Bu, bu, bu”, é tudo o que consigo dizer. “O medo te prende a língua”, observa Potira, “não tenhas medo, pois, quando o Sol for se pondo, muitos passarinhos, tantos quanto as estrelas no céu, vão vir te buscar”. “Tu vais comigo?”, pergunto-lhe com outro “bu, bu, bu”. Potira se espanta: “Oh, agora entendo o que dizes! Não, não vou contigo, porque, se eu virar passarinho, quem vai fazer a gente voltar ao nosso corpo? Vais sozinho”. Digo-lhe: “A gente podia ser sempre passarinho”. “Não era certo, nascemos pra ser homem e mulher”, diz Potira. “E daí? As árvores, a areia, os bichos, o Sol, a Lua e as estrelas também não são gente? A gente pode ser gente sendo passarinho”, retruco-lhe. “Não! Nasci pra ser mulher, não quero ser outra coisa!”, grunhe a rapariga. “Muitos passarinhos vão aparecer no Céu, quero que fujas com eles; um dia a gente se encontra e te faço de novo homem”.

Potira tem de esconder-me outras vezes dos curumins, e também de Nhaêpepô-oaçu, o qual, designado por Guaratinga-açu para lascar-me o crânio no ritual, não se conforma com o sumiço da minha cabeça. Alkindar-miri, por sua vez, tem muito trabalho para conter as velhas gulosas, que a toda hora ameaçam avançar sobre o corpo que jaze assado e sem cabeça, a um canto da choça. Quando alguém entra na cabana, encolho-me nas mãos de Potira, de onde só saio com sua autorização. De vez em quando, desço pra beber água na cabaça e aproveito para esticar as asas, voltando sempre para junto de Potira. Dentro da cabana, pouco a pouco, as sombras vão se transformando em escuridão. “Oar pituna” (cai a noite), diz Potira. “Pituna i roine” (a noite será fria), responde Alkindar-miri, que continua guardando a entrada da choça. Colocando-me no punho da rede, Potira levanta-se e vai até a porta. Suave claridade, que vem do terreiro, traça-lhe a silhueta. “Iaciçuaçu poranga reté!” (como a Lua-cheia está bonita!), exclama a rapariga. E completa: “Reçarú xinga ixé, uiráchué” (volto já, meu pássaro chorão). Ouço os passos da rapariga afastando-se na areia. De uma fresta da parede vejo-a olhando para o rio, de cujas águas profundas uma Lua enorme, escarlate, como que tisnada de sangue, vai se levantando. “I aisó jaci!” (formosa é a Lua!), pensa o meu miolo de sabiá. “Ende-te, Potira, Tupã nde moaiasóete i xuí!” (mas a ti, Potira, Deus fez mais formosa que ela!), conclui o pássaro apaixonado. Imóvel, Potira mira fixamente a Lua. Não enxergo seus lábios, mas sei que palavras mágicas por eles estão saindo, pois um pontinho negro vai se formando dentro do disco da Lua. Não escuto as palavras, mas devem ser mui poderosas, pois o ponto negro vai aumentando, aumentando, até se transformar numa grande mancha que se projeta sobre a terra. “Iaciçuaçu puxuêra reté!” (Lua-cheia ficou feia!), espanta-se Alkindar-miri, que, da porta da choça, acompanha os movimentos de Potira. “Nda Iaci, Alkindar-miri; guairai” (não é a Lua, Alkindar-miri, mas a sombra dos pássaros que saem de dentro dela!), diz Potira, já de volta à cabana. “Iuri Iké, guairai!” (vem cá, meu passarinho!), ela me chama. Pouso em seu ombro e da porta da cabana ficamos assistindo.