14º episódio - Num túnel escuro e profundo

A viagem de volta continua. Ao contrário da vinda, os remadores vão calados, muitos deles já engolidos pelo disco escarlate do Sol, que, na linha do horizonte, vai se afundando nas águas. Grande melancolia se apossa de mim, ao lembrar-me de que, a cada remada dos homens, mais se aproximava o meu fim. Por que há de ser assim? “Deus, quero crer em ti! Permite-me a epifania! Cega-me como cegaste Saulo na estrada de Damasco, para que eu veja de noite o que não enxergo nem mesmo de dia! Deus, por que tenho de morrer agora que encontrei Potira?”. Mal acabo de clamar, um vento forte encapela as águas da grande baía que estamos a atravessar, emborcando várias canoas. Irados, os índios gritam: “Aipó mair angaipaba ibitú guasu omou”, isto é: o homem mau, o santo, foi quem mandou o vento, pois durante o dia olhou ele nas “peles do trovão”, aludindo ao meu livro. Eu, que já não cria em Deus, depois dessa, fiquei mais ímpio. “Se Ele não quer me salvar, pelo menos não me estrague o pouco tempo de vida que ainda tenho!”, blasfemo. Embora nenhum índio tenha morrido, lufadas de pavor mantiveram-me encolhido no fundo da canoa pelo resto da viagem. Vendo-me assim, Potira me diz, baixinho, de modo que Alkindar-miri não a escute: “Não tenhas medo, ninguém vai te pegar, pois vou te transformar num passarinho”. “Não! Isso não! Outro pesadelo?!”, penso. Mas Potira falara-me com tanta firmeza que, por um instante, acreditei que não era sonho. “E como farás isso?”, pergunto-lhe. “Verás”, é só o que ela diz, mas procura reanimar-me tocando-me com suas mãos pequeninas.

De volta à cabana, exausto, deito na rede e despenco num túnel escuro e profundo. Potira desce comigo. Não sei por quanto tempo caímos, as últimas palavras de Nhaêpepô-oaçu ainda repercutindo nas paredes do túnel: “Iandé poru!” (nós te comeremos!). Tenho medo. “Xande, não temas, pois vou te transformar num passarinho”, torna a dizer Potira. “De que modo?”, pergunto. “Não sei explicar, só sei que deves primeiro perder o medo”, responde ela. “Mas como perder o medo?”, pergunto. “Eu vou te ensinar. Fecha os olhos!”, ordena. “Para quê, se já não enxergamos nada aqui dentro?”, pergunto, sem entender-lhe o propósito. “Não discute! Fecha os olhos!”. Eu obedeço. E continuamos descendo. Ou subindo? Apenas sinto que estamos muito longe, mas não sei definir quanto, pois as distâncias já não se medem em quilômetros. As palavras de Nhaêpepô-oaçu cessaram de repercutir. Eu e Potira vagamos no nada. Ou no tudo? “O que estás sentindo?”, pergunta ela. “Uma grande paz”, digo-lhe. “Quando eu mandar tu abrires teus olhos sentirás medo”, adverte. “Por que, se é o escuro que tememos?”, pergunto. “Porque estávamos num mundo invertido; lá, pra onde vamos, tem sol, mas enxerga-se melhor sob o luar, o dia cega, vive-se no silêncio. É bom o silêncio, não é?”. “Sim”, respondo-lhe em pensamento.

“Pronto, chegamos; abre teus olhos!”, ordena Potira. Eu obedeço. “O que sentes?”, pergunta. “Medo, muito medo”, digo. “Muito medo é ruim, transforma o homem em coisa, mas um pouco de medo é bom, previne-o de troço ruim”, diz Potira. O túnel desembocara num lugar bonito e silencioso, um arvoredo iluminado por um luar translúcido, onde deslizamos. Nenhuma gente anda pelos caminhos, apenas pássaros noturnos plangem ali seus cantos agourentos, deixando-me arrepiado. “Por que não se vê ninguém?”, pergunto. “Eles estão escondidos em suas casas, pois temem as coisas da noite”, responde Potira. “Quais são essas coisas da noite?”, torno a perguntar. “Da noite são o escorpião, que morde, a aranha, a grande formiga branca e as cobras; além disso, há muitos seres e coisas que são da noite”. “O que faremos agora?”, indago. “Andemos bem devagar, sem nos envolver com as coisas que são da noite, que ficam escondidas debaixo das folhas murchas, secas, caídas no chão”, explica Potira. Era-me difícil crer que no tapete macio de musgos e vegetais morassem seres traiçoeiros. “Nos tempos antigos, eles também desconheciam os segredos da noite, ignoravam o escorpião e as outras coisas peçonhentas, eram como crianças que andam por aí sem medo e por isso morriam facilmente”, diz a minha companheira. Andamos devagar, cuidando dos passos. “Não se envolva com as coisas da noite, senão vão sofrer desgraça”, advertiu-os o homem que primeiro descobriu o perigo. “Tu só queres nos enganar, estás mentindo!”, zombou um dos companheiros. “Já que pensas saber tanta coisa, então vai mexer nos segredos da noite para ver o que acontece”, dirigiu-se o homem ao de fala tão impertinente, mas este não se intimidou: “Ainda esta noite vou pisar com meus pés as folhas secas que jazem no chão”, disse. “De noite, todos os habitantes da aldeia dormiram, menos o homem teimoso, pois os homens bons dormem de noite, só os maus andam na escuridão”, vai contando Potira. O homem mau caminhava à noite e o animal criado e domesticado pela noite, o escorpião, mordeu-o. Também a grande formiga, a cobra e a aranha o picaram. Aí, na calada da noite, ele gritou e chorou, acordando a todos. Primeiro, o homem que falara aos outros sobre os segredos da noite perguntou-lhe: “O que aconteceu contigo? Por que estás gritando tanto assim?”. O outro gemeu: “Fui mordido pelo escorpião e pela aranha, pela cobra e pela formiga grande também”. E então confessou: “É verdade, as coisas da noite são más e bravas”. “És um homem mau, que anda por aí, durante a noite, por isso foste atacado pelos seres da noite”, disse o primeiro. O homem ferido continuou chorando e gritando. “Onde sentes dor?”, indagou o outro. O indagado mostrou seus ferimentos e chorou. “Estão doendo, horrivelmente!”. E como não parava de chorar, o outro tornou a perguntar: “Será que a dor não pára?”. “Não pára, não”, gemeu a vítima. “Por que foste passear à noite, quando estão soltos os seres que nos mordem? Agora pára de gemer, senão te pego e te atiro no mato!”, ralhou. “Não faças isso não!”, implorou o homem ruim, “quero ficar aqui!”, e continuou chorando e gemendo. Então o outro pegou no braço dele, arrastou-o consigo e atirou-o no mato. O homem ruim gritou e chorou ainda mais forte; seu choro era um gua, gua, gua, gua melancólico. E assim ele continuou chorando e chorando até transformar-se em bacurau, espécie de coruja, pequena e maldizente, que chora da mesma forma. “Não vais me transformar em coruja, não é?”, protesto. “Não. Eu gosto da noite, a noite é dos pássaros, mas não gosto da coruja, pássaro agourento. Escolhes o pássaro que tu queres ser”, diz Potira. “Posso escolher?”. “Pode!”. “Então quero ser um uainambi (beija-flor)”. “Por que um uainambi?”, pergunta Potira, sorrindo. “Para poder vir beijar-te enquanto dormes”. “Não vais me machucar com teu bico de passarinho?”. “Não, jamais farei qualquer coisa que te entristeça”, prometo-lhe. “Por que prometes o que não podes cumprir? Antes do amanhecer haverás de deixar-me”. “Então que esta noite nunca se acabe”, digo-lhe, encostando os lábios sobre os olhinhos tristes da cunhantã. “Voando irás para bem longe, onde mal algum poderá alcançar-te, e Potira ficará aqui, sozinha, nem te lembrarás dela”, lamenta-se a minha amiga. “Xande Potira resé i maenduarine” (Alexandre vai lembrar-se de Potira), consolo-a. E bendigo àquele que trouxe a noite para a terra, livrando os homens do dia eterno, aliviando-os da luta tenaz contra a natureza, da áspera rotina diária, das caçadas e das guerras. Protegidos pelo casto manto da escuridão, eu e Potira nos unimos debaixo de uma grande árvore. Quando terminamos, sinto-me cansado e sedento. “Aqui não há água?”, pergunto. “Deve haver; espera que vou procurar”, diz Potira, já desaparecendo por trás do tronco de uma árvore. A sede aumenta. Potira demora. Volta-me o medo, verdadeiro pavor. Decido ir atrás de Potira, mas não consigo, faltam-me as pernas. Aterroriza-me pensar que, se Potira não regressar, ficarei para sempre naquele mundo esquisito, sozinho, debaixo daquele luar, cercado de seres e coisas da noite, que me espreitam com mil olhos, de todos os lugares, e só esperam que eu durma para virem me devorar. De longe, muito longe, chega-me o coaxar de rãs e sapos, prenunciando-me a existência de água. “Potira tem de andar muito para chegar até lá, por isso está demorando”, procuro, em vão, tranqüilizar-me. É quando um vulto de mulher, com vestes brancas, compridas até os pés, e cabelos longos surge de trás de um tronco. Quem será? Não é Potira, pois a cunhantã vive nua. A mulher vem devagar, na minha direção, de vez em quando desaparecendo atrás de alguma árvore, para reaparecer mais próxima, até que a reconheço. Mas, não é possível! Ela é uma das minhas primas, a Mariquinha, que se afogou com quinze anos, da primeira vez que se banhou no mar, e ficou insepulta, pois seu corpo nunca foi encontrado. “Como vais, Mariquinha?”, pergunto-lhe. “Assim, assim”, responde, com uma voz que não era dela, parecendo ter envelhecido depois de morta – coisa inconcebível, convenha o amigo, no mundo dos vivos. “Como vai a titia?”, ela pergunta. “Morreu não sei há quantos anos”, respondo-lhe. “Eu sei, ela mandou me avisar”, murmura. “E tu, como andas?”, torna a perguntar. “Como vês, não muito bem”, digo-lhe. “Amanhã, de um modo ou de outro, estarás melhor”, fala a mulher, de um jeito enigmático. “Como sabes?”, pergunto-lhe. “Dá pra ver nos frisos do teu rosto”. Baixo um instante a vista e, quando volto a erguê-la, a seja lá quem fosse havia sumido. “Conversavas com alguém?”, pergunta-me Potira, que reaparecera sem nenhum aviso. “Não”, respondo. A mulher que está agora diante de mim é pequena, pele cor de mate, está nua e tem a vergonha sem pêlo, exatamente como Potira, mas fico desconfiado, pois a sua voz é a mesma da outra que desaparecera. “Quem és?”, pergunto. “Sou Potira, quem mais pode ser?”, ela responde. “Demoraste”, digo. “Andei muito atrás de água, mas não encontrei”, explica-se. “Mas há pouco escutei o coaxar de sapos naquela direção”, aponto com o beiço. “Sim, há sapos e rãs, mas o córrego está seco”, explica a mulher, que, entretanto, traz os lábios umedecidos e os cabelos molhados. Apesar da sede que vai me levando à loucura, alivia-me pensar que é Potira e não um fantasma que tenho ao meu lado. “O jeito é deitar embaixo duma árvore e esperar o dia nascer, então acharemos água”, diz Potira. “Não vou conseguir dormir, a sede está me matando”, digo. “O que te mata não é a sede, mas o medo que te faz fugir do que não queres ver”, retruca a cunhantã, “enquanto sentires medo, não posso transformar-te em pássaro”. Sei que Potira me engana, há água por perto, sapos e rãs continuam coaxando, mas aceito o que ela diz, pois sábias são suas palavras. Dentro de uma “sapopema” (grande raiz), a cunhantã faz pequeno fogo e uma cama de folhas, onde nos deitamos. Sem protestos, acomodo-me ao seu lado. Potira dá-me as costas, como se não se importasse com a minha tortura. Meus lábios, a boca, a garganta, ardem ressecados; uma sede lancinante atormenta-me e meus pensamentos giram apenas em torno de água, água, água. Não consigo dormir. Enquanto Potira dorme sono profundo, minha cabeça desprende-se do corpo, ficando este deitado ao lado da rapariga, para que ela nada perceba. Vou rolando e pulando – isto é, a minha cabeça – em busca de água, acabando por encontrá-la lá onde os sapos e as rãs grasnam. Rodo até o fio de água e bebo e bebo e bebo... até matar a sede. Em seguida, volto. Ao aproximar-me da sapopema, rolando e pulando, faço sussurrarem as folhas secas, caídas no chão. Aí, Potira acorda, assustada, talvez pensando tratar-se de uma fera, um espírito, ou um ser inimigo que quisesse assaltá-la. Ao seu modo, assopra o fogo até as chamas subirem e a fumaça soltar, assustando-me com isso a cabeça, que, de medo, vai-se embora, pulando, enquanto meu corpo continua deitado, inerte, ao lado da rapariga. Mas minha cabeça quer voltar ao seu corpo e, por isso, logo mais retorna para perto de Potira. Todavia, ao aproximar-me, causo novamente o crepitar das folhas secas no chão, deixando a minha companheira sobressaltada. Ela torna a soprar o fogo, fazendo subirem as chamas e a fumaça. Assustada, a minha cabeça foge, pulando, saltando e rolando para longe. E dessa vez não volta mais. Quando o dia clareia, a cabeça transforma-se num pássaro que grita “bu, bu, bu”. Ah! Então tudo não passou de artimanha da cunhantã para que me transformasse em pássaro? Algo, todavia, saiu errado, pois, em vez do beija-flor no qual Potira me prometeu transformar, vejo-me agora no corpo do pássaro sabiá, que, não sendo coruja, gosta de voar à noite como as corujas. O seu vôo irrequieto e nervoso sempre me intrigou. Antes de cair prisioneiro dos tupinambás, cheguei a passar horas observando o comportamento irritante desses pequenos seres alados, mas nunca imaginei que um dia eu seria um deles. Eu, que muitas vezes na vida desejei ter asas para voar, agora sei, meu amigo, que não é nada agradável ser pássaro. Ir pousando e voando de cá para lá e de lá para cá, como se procurasse algo, tal qual há pouco a minha cabeça, sofrendo sede terrível, primeiro foi em busca de água, para depois, ansiando por seu corpo, procurar em vão reintegrar-se ao mesmo. Ou, por vezes, levantar vôo, como se estivesse assustado com alguma coisa, igual à cabeça que ficou apavorada quando Potira soprou a fogueira, fazendo subir as chamas e a fumaça. Meu grito é um lamento lúgubre: “bu, bu, bu”, de tom triste, como infeliz é o meu destino sob a forma de pássaro, pois ainda não me sinto preparado para esse mundo em que todas as coisas são gente. Com meu grito enfadonho “bu, bu, bu” digo “Potira, sou eu!”, já pousando no ombro da cunhantã, mas esta, que pensara ter-me transformado em beija-flor, não me reconhece no corpo de sabiá, pois até ela, que sabe ver o invisível, engana-se por vezes com as aparências. “Sai, ibijau-nema!” (deixa-me, pássaro fedorento!”), repele-me com a mão, enquanto, com os olhos, procura um beija-flor pelos galhos das árvores, já clareados pela primeira luz da manhã. Triste por não me encontrar, lamentando-se por ter errado o feitiço, Potira volta-se para o meu corpo sem cabeça que jaze aos seus pés. Choramingando e fungando, descabelada como uma possessa, a cunhantã reúne todas as pedras que encontra em volta da grande raiz e monta com elas um forno, dentro do qual acende o fogo e coloca sobre ele o meu corpo, embrulhado em folhas de bananeira, torrando-o sobre as pedras em brasa. Vejo-a arrastar-me para fora da cabana, o que me fez pensar, com minha mente de passarinho, que havíamos retornado à realidade e que tudo não passara de um sonho, ou pior, de um pesadelo. A sensação de alívio, todavia, logo se desvanece ao notar que continuo sabiá, apenas tendo mudado de poleiro: em vez do galho de árvore do bosque para onde o túnel nos levara, observo agora o mundo a partir de um dos caibros da maloca.