13º episódio - Anta não sabe rir Quando Alkindar-miri se despediu da cunhantã com quem passara a noite e, puxando-me de leve pela mussurana, disse-me “Iuri Iké!” (vamos embora!”), Tata-miri já corria em todos os sentidos, dentro de sua cabana, e seus irmãos e primos percorriam a aldeia gritando o novo nome que o matador escolhera, a fim de fugir da perseguição do espírito do falecido. Segundo o ritual, durante quatro dias, como se estivesse doente, Tata-miri ficaria de resguardo em sua rede, em completo jejum, sem poder saborear o cauim do morto, nem alimentar-se, durante um mês, de caça ou pesca. Enquanto descíamos ao porto, senti uma energia desconhecida e um calor estranho percorrerem-me o corpo; muitas cunhantãs, como que atraídas, cercaram-me com lânguidos meneios e úmidos olhares, provocando ciúmes em seus homens e deixando-me bem preocupado. Já notara a cobiça em mais de uma cunhã, mas a atração parecia haver redobrado. “Elas te viram comendo carne de gente; agora és um jaguarete (onça)”, cochichou-me Potira, arreganhando os dentes para as cunhantãs, as quais, todavia, só me deixaram porque não cabiam em nossa canoa. Não sei se por causa da carne humana que eu ingerira, ou se foi o terror-pânico de saber-me voltando ao lugar onde em breve eu seria trucidado e comido, o certo é que, durante o retorno à aldeia de Guaratinga-açu, indo eu deitado no fundo da igara, tontura e enjôo atacaram-me, fazendo-me dobrar mais de uma vez sobre a borda da canoa e vomitar o que havia e o que não havia no estômago, até que despenquei, quase desfalecido, num sono profundo. Todavia, mesmo dormindo, não tive alívio. Sendo eu bem proporcionado e possuindo um rosto razoável, as mulheres da aldeia, até mesmo as velhas, queriam deitar-se comigo. Numa das poucas ausências de Potira, caí na besteira de franquear o meu “puçá” (rede) a uma tapuia. Daí em diante, o sonho virou pesadelo. O marido da tapuia veio por trás da choça e descobriu-nos no sigiloso colóquio. Índio é hospitaleiro, dá mulher a forasteiro, mas nem por isso gosta de ser traído. O marido correu à casa onde os homens, em volta da fogueira, reuniam-se, e contou o que havia visto: “Lá na choça, o português seduz todas as nossas mulheres”, finalizou o relato. “Queremos ver isto, com nossos próprios olhos”, gritaram os homens, levantando-se rapidamente e seguindo o relator até minha choça. Escondidos pelas sombras da noite, espionaram, convencendo-se de que o homem falara a verdade. Voltando à casa dos homens, perguntaram: “O que devemos fazer agora? Todas as mulheres estão enamoradas do peró (português) e só pensam nele, nada mais lhes interessa; esqueceram-se dos seus deveres; nossos filhos estão abandonados, passam fome e choram”. “Matemos o português!”, sugeriram alguns. “Está bem, mas, como fazer para que as mulheres não desconfiem de nós, para que não fiquem com raiva e sede de vingança e a coisa não nos acabe ficando ainda pior?”. Um dos homens velhos e experientes, cuja palavra era respeitada por todos, falou: “Arranjemos uma grande caçada e mandemos as mulheres para a roça; depois, transformaremos o português em tapir (anta); ele será nossa caça e, desta vez, nossa presa”. Os homens gostaram da idéia. Então o mesmo ancião proferiu um grande discurso na praça da aldeia e anunciou as tarefas do dia seguinte. De madrugada, os homens partiram para a grande caçada. Pouco depois, Céu ainda escuro, as mulheres, carregando seus filhos menores em “tipóias” (faixas amarradas às costas), tomaram a picada estreita da aldeia para as suas roças; as crianças maiores, curumins e cunhantãs, correndo atrás delas. Algumas levaram pedaços de madeira fumegantes, que, vez por outra, agitavam no ar, fazendo-os arder em chamas fortes, pois o fogo deveria permanecer aceso durante todo o dia. Potira, a contragosto, teve de acompanhar as mulheres. Depois de buscarem-me em minha choça, os homens partiram como se fossem para uma grande caçada. Desconfiado, acompanhei-os, ouvindo os gritos dos homens se misturando ao latir dos cães caçadores. Sendo costume os jovens seguirem na retaguarda, estranhei que os mandassem à frente. Espantei-me também quando vi os jovens reaparecerem com grandes folhas de palmeira nos braços. Logo, porém, minha expectativa dissipou-se, porquanto, assim que os moços voltaram com as folhas, os homens caíram sobre mim, seguraram-me bem firme e cobriram-me todo com as folhas de palmeira. Usando cipós e enviras, ataram as folhas ao redor do meu corpo, de meus membros e de minha cabeça. Então, um dos velhos, o pajé, aproximou-se e, colocando-me os galhos da palmeira em volta dos braços e das pernas, transformou-os em patas de tapir. De um feixe de folhas formou-me a cabeça grossa de tapir e moldou o meu rosto em focinho. Do montão de galhos e folhas amarradas à volta do meu corpo esguio, o pajé modelou o corpo pesado do animal. Vendo-me assim transformado, tomado pelo medo procurei fugir, mas os homens, cercando-me, atiçaram os cachorros contra mim e perseguiram-me sem trégua até me acertarem com uma chuva de flechas, em uma clareira, perto da aldeia. O pajé mandou que os homens montassem uma grelha. Da floresta, os homens trouxeram madeira e colocaram pedras sobre galhos e ramos amontoados; acenderam um grande fogo. Quando as pedras ficaram em brasa, apagaram o fogo e nelas colocaram-me isto é, ao tapir abatido, envolto em folhas, e jogaram terra em cima, assando-me desta maneira nas pedras quentes. Depois de assado, o pajé falou: “Vocês não devem comer deste assado, que é só das mulheres. Elas devem comê-lo sozinhas. No entanto, nada falem a elas, para que não saibam que, na realidade, estão comendo o português”. Os homens retalharam o tapir assado e cada um mandou um pedaço de carne para sua mulher, na aldeia. Todavia, um dos homens embrulhou a carne em folhas de bananeira, a fim de conservá-la fresca e quente, e chamou o filho, ao qual entregou o pacote, dizendo: “Leve isto correndo para casa e entregue-o à sua mãe. Não lhe fale uma só palavra daquilo que você sabe a respeito do assado. Somente depois de ela tê-lo comido todo é que você diz: comeu seu amante!”. O curumim fez conforme o pai lhe mandara. Entregou à mãe o pedaço de carne. Esta gostou do assado e comeu-o todo. Depois de comer, ela ficou bem humorada e falou ao garoto: “Venha cá, você não está bem pintado. Vou refazer sua pintura”. Ela estendeu uma esteira no chão e sentou-se. O garoto deitou-se no chão e colocou a cabeça no colo da mãe, para que ela pintasse o seu rosto. Enquanto estava deitado assim e a mãe segurava o pincel com a tinta de urucu, pintando com traços finos, cuidadosos, o rosto do filho ao redor dos olhos, na parte inferior da testa, formando-lhe faixas bonitas de vermelho bem vivo através das faces, o curumim falou de repente: “Mãe, sabe o que acabou de comer? Foi seu amante!”. Ao ouvir essas palavras, a mulher, apavorada, mandou o filho contar tudo o que sabia. Enraivecida com o que ouviu, pegou o filho e atirou-o para o ar, transformando-se o curumim no pássaro joão-de-barro. “Pelo resto da vida farás casas para outros morarem!”, praguejou ela, correndo, em seguida, para a aldeia, onde contou às outras mulheres como foram cruelmente enganadas pelos maridos. Exprimindo as saudades do amante perdido e sua insaciável sede de vingança, as mulheres, com uma dor tão grande quanto sua fúria, choraram e gritaram estrondosamente por longo tempo, até que, aos poucos, os gritos transformaram-se em pranto, e este, em soluços. Afora alguns velhos que já não conseguiam andar, todos os homens, na manhã seguinte, partiram novamente para a caça, enquanto as mulheres reuniram-se no pátio da aldeia. Um só velho, sentado diante de sua choça e trabalhando flechas, observava-as. Depois de muito discutirem, deliberaram vingar-se dos maridos. “Vamos todas embora, jogar-nos nas águas e transformar-nos em peixes!”, disseram. Entoando um canto mágico, elas correram para o rio e pularam na água. O velho que as observava, tendo-as seguido às escondidas, ainda tentou pegar uma delas, visando impedi-la de se jogar no rio, mas foi imediatamente contido pelas outras mulheres, as quais, batendo com as mãos nos seus corpos, transformaram o velho numa árvore, na qual o pássaro joão-de-barro veio pousar. Uma mulher, com o filho pequeno no braço, saltou n’água, gritando: “Quero transformar-me em surubim” e, no mesmo instante, ficou sendo surubim. Outra, ao pular, gritou: “Quero transformar-me em trairão!”. As demais também jogaram-se n’água, chamando os nomes dos peixes nos quais queriam transformar-se: piranha-preta, bacu de seringa, bacu-branco, momaré, peixe-sabão, piau cabeça gorda, cadela, acará-tinga, pirapitinga, matrinchã, piraíba, piramutaba e bisora, e assim por diante; cada uma delas transformou-se no peixe cujo nome pronunciara. Sozinhas, na beira do rio, abandonadas, as crianças choravam e aguardavam a volta dos seus pais. Quando estes voltaram da caçada, cuidaram, antes de tudo, dos pimpolhos; depois lançaram seus anzóis na água, a fim de pescarem as esposas e trazê-las de volta para si. Poucos, bem poucos o conseguiram, ficando a aldeia carente de mulheres por muito tempo. “Tendo sido transformado em tapir e comido pelas mulheres, como sabe de tudo isso?”, deve estar se perguntando o leitor. Ora, amigo, tudo é possível no sonho, por isso os tiranos temem os sonhadores e detestam os bons contadores de histórias, porque estes, em geral, são muito mentirosos (quantos “fatos” da História, afinal, não foram inventados?). No meu caso, fui transformado em tapir, mas as mulheres não me comeram, como acreditaram os maridos, cujas flechas, na caçada, acertaram outro tapir, meu sósia, de modos que, escondido na capoeira, a tudo assisti, não digo rindo-me porque anta não sabe rir, apenas aperreado com o meu corpanzil de tapir. Procurava acalmar-me dizendo a mim mesmo que aquilo era só um pesadelo, tudo ia passar, e eu, quando acordasse, voltaria a ter meu corpo de homem. Mal escapei, todavia, de uma enrascada, caí noutra. É que uma das mulheres pescadas pelos maridos reconheceu-me no corpo do tapir e tanto se ofereceu que acabou fazendo de mim seu amante. Certo dia, fui ao encontro dela nos campos, enquanto o marido caçava. Para despistar, ela disse que iria catar frutos de buriti, mas o filho, ainda curumim, sem que ela o percebesse, seguiu suas pegadas e viu a mãe deitada no capim, sururucando comigo. Fantástica “rapypy” (xoxota) tinha a rapariga! Só ela já compensou o pesadelo, mesmo com o que me aconteceu a seguir. O menino pegou um dos frutos de buriti, espalhados pelo capim, e o atirou com toda força na minha cabeça. Ao levantar-me, em dores, pisei, sem querer, com a minha pata traseira no abdômen da mulher, que, momentaneamente, perdeu os sentidos e ficou como morta. Ao ressuscitar, pulou de pé, cheia de raiva, e pegou um punhado de capim-lanceta, de gumes cortantes, com o qual bateu no curumim, empurrando-o depois para dentro de uma barreira de capim e vegetação espinhosa. Quando o menino recuperou-se, saiu de lá com o rosto e o corpo inchados, a cabeça ardendo e pesada, tão pesada que mal conseguia agüentá-la. Gemendo e encolhido, o curumim arrastou-se até em casa, enquanto a mãe, enfurecida, pintou o rosto com carvão, do mesmo modo como se pintam os homens quando vão à guerra ou querem matar uma onça, e ficou sentada no chão da cabana, matutando vingança. Vi o menino sair às escondidas da aldeia e ir ao encontro do pai. Ao ver o deplorável estado do filho, este exclamou: “O que você fez? Como é que você está?”. “Foi minha mãe quem me bateu e me deixou assim”, balbuciou o curumim, “ela fez isso por que a surpreendi, lá, no campo, sururucando com o tapir”. Gemendo de dor, o filho contou suas mágoas ao pai. “Então que seja”, falou o pai, e, dirigindo-se ao menino, disse: “Agora vamos para casa”. Escondido no mato, ressabiado, eu acompanhava os movimentos da aldeia. Vi o pai preparando flechas. Passou um dia inteiro provendo-as com as penas certas e afiando as pontas, para não errarem o alvo. Na manhã seguinte, todos os homens partiram para uma grande caçada de tapir. Entre eles o esposo traído, que levou consigo o filho, para que este me identificasse. Embora eu fosse o tapir mais inteligente que já existiu, pois pensava como gente, de nada adiantou minha astúcia. Reconhecido pelo curumim, acabei reunido à manada e perseguido sem tréguas pelo marido, que, sem compaixão, traspassou-me com certeira flechada. O Sol já estava alto no Céu, quando a caçada terminou. Os homens juntaram numa clareira toda a caça abatida e aí acamparam. Antes do véu da noite cair sobre a mata, eu seria retalhado e assado sobre pedras em brasa. Acordei no exato momento em que o marido da tapuia, como vingança, cortava o meu “che racuaim” (saco) a fim de oferecê-lo à mulher, embrulhado em folhas de bananeira. Mesmo a minha “che anguéra” (alma) de gente já tendo saído do corpo do tapir, uma dor fina ainda me repercutia nos escrotos, mas o enjôo e a tontura passaram. Ao abrir os olhos, tenho a cabeça sobre as coxas de Potira, que velara meu conturbado sono. Vendo-me acordar, a cunhantã faz cafuné nos meus cabelos e diz: “Xande quera porang” (Alexandre sabe dormir bonito). Com o nariz a um palmo do xiri de Potira, respondo-lhe: “Rapypy Potira çaquenaçaua catu” (xiri de Potira tem perfume de flor). Potira responde com um sorriso. |