10º episódio - Homens e bois giram sob a noite
O vozerio de repente ficou muito longe, um frio arrepiou-me as entranhas e um suorzinho danado senti entre as pernas. Adivinhando-me o cagaço, Alkindar-miri disse-me: “Esiquiié umem” (não tenhas medo). Justiça seja feita, a não ser pela cacetada que o tapuio me aplicou quando os tupinambás me capturaram, Alkindar-miri sempre se mostrara mui compassivo, o que, certamente, não eliminava do seu mais profundo íntimo o atávico desejo de devorar-me, de preferência vivo pois o cordeiro sempre será cordeiro, o leão será sempre leão, e o homem, na selva do Grão-Pará ou numa praça de Lisboa, nu ou vestido, com penacho ou coroa, jamais deixará de ser homem, o único animal que come seu semelhante sem estar com fome. A comitiva de centenas de pirogas, em infernal alarido, com os homens revezando-se ao remo, avançou velozmente pelos canais e lagamares do grande arquipélago de Joannes, só diminuindo o ritmo quando o sol já se ia afundando nos manguezais. Ao contrário de Alkindar-miri e dos outros remadores da nossa canoa, que comeram caça assada, beberam cauim e arrotaram durante toda a viagem, eu nada ingeri, no que fui censurado por Potira. Desse jeito disse-me ela eu emagreceria demais e poderia até adoecer. Mas era isso mesmo que eu queria! É que, embora Alkindar-miri e Potira garantissem-me que ainda não chegara o meu fatídico dia, temia que uma gordurazinha qualquer em meu corpo despertasse o apetite dos comensais. Para suportar a monotonia da viagem e resistir aos apelos do estômago vazio, distraí-me lendo pela milésima vez a história de Hans, o náufrago alemão que, duzentos anos antes de mim, também caiu prisioneiro dos tupinambás e só com muita sorte não virou estrume de bananeira. Espero encontrar na leitura a chave capaz de abrir a porta do meu cativeiro. Pois tantas coisas absurdas aconteceram ultimamente perto de mim que o fantasioso livro já não apenas divertia como também me orientava. Por isso, não me surpreendi com a multidão de canoas que, juntamente com as nossas, chegavam de trinta e quarenta léguas trazendo os parentes e amigos convidados para a festa. Assim que a nossa canoa encalhou no porto, eu e Potira saltamos à praia e seguimos Alkindar-miri, que não largava a minha mussurana. Os minutos seguintes foram de completa balbúrdia. Chorando como se lhes houvesse morrido um ente querido, as mulheres da aldeia cercaram os recém-chegados e, prostrando-se aos nossos pés, louvaram-nos dizendo, entre suspiros profundos, sermos bem-vindos e estimados, pois passáramos por tantas canseiras para vir visitá-los. Uns após outros, palavra por palavra, em prosa trovada, as mulheres recordaram os seus pais e avós, o que se passara entre eles através dos séculos e tudo o mais que provocava lástima e choro. Enquanto o pranto durou, os homens da aldeia, fingindo não perceberem a chegada dos hóspedes, entregaram-se às suas habituais ocupações domésticas, só saindo das malocas para cumprimentar os convidados depois que findou a saudação lacrimosa das mulheres. Também demonstrando pesar, eles cobriram seus rostos e choraram como fizeram elas, as quais já apenas urravam acompanhando as lamentações entrecortadas de discursos dos homens, os quais falaram dos pais dos hóspedes, de suas façanhas, da boa ou má fortuna, ou da morte deles. Cessada a choramingueira, os homens fizeram aos hóspedes, a um só tempo, a costumeira pergunta: “Ereiupe?” (vieste?). “Pa, ajú” (sim, vim), responderam todos os recém-chegados, elevando o vozerio até os céus. Por último, o principal da aldeia que depois soube chamar-se Carimã-cuí (farinha de carimã) deu boas-vindas dizendo “vinde agora e ajudai-nos a comer o nosso inimigo”, declarando assim iniciado oficialmente o festim. Daí por diante, toda etiqueta foi posta de lado. Homens e mulheres, jovens e velhos, cunhantãs e curumins, ajeitaram-se como puderam no pátio da aldeia. Enquanto eu e Potira seguíamos Alkindar-miri em busca de um lugar, procurava responder a pergunta que fazia a mim mesmo desde manhã: “Quem serviria de pasto aos selvagens?”. A mão de Potira segurando firme a minha não era suficiente para me tranqüilizar. Só depois de Alkindar-miri cansar de exibir a sua “rembiara” (presa) aos amigos, sendo eu objeto de escárnios, foi que nos sentamos na areia. A noite já era completa, mas uma abóbada celeste pontilhada de estrelas e as chamas de imensa fogueira espantavam a escuridão. Trouxeram ao terreiro os alguidares, belamente decorados pelas mulheres, contendo as bebidas fermentadas e a tinta com a qual pintariam o prisioneiro. Até eu, que não tinha motivos para alegria e detestava cachaça, participei com prazer da bebedeira que se seguiu. Creia-me, amigo, não há bebida mais divina que o cauim, chamado por muitos de tiborna; nem mesmo o vinho, a bebida dos deuses, a ele se compara, pois foi Jurupari, o maioral dos “maiuas” (demônios), quem inventou o cauim. Jurupari teria dito aos tupinambás, assim que chegou entre eles: “Não terás outras bebidas diante mim! De hoje em diante todo índio deve beber pelo menos uma cuia de cauim por dia!”. Sumé, o justo, ao contrário, não gostava de cauim; todavia, detestava ainda mais a cachaça, “bebida de cariua-poxi (homem branco ruim)”, como ele dizia, e nisso se parecia com Jurupari. “Cachaça é amarga, faz mal, deixa índio enfezado, com barulho no ouvido, índio já não ouve voz do passado. Cauim é morninho, adocicado, espuminha dele se espoca na beira da cuia e a alma da gente fica borbulhando, borbulhando, sem nunca ferver; cauim faz índio ir lá no fundo ouvir os companheiros, sem jamais se perder”, dizia Jurupari. Ninguém levantava mais cuias de cauim que Potira. Para cada cuia que eu engolia, a cunhantã bebia duas. Tomamos tanto cauim que acabamos rolando pela areia, sem nos importar com ninguém, nem mesmo com Alkindar-miri, o qual, depois de ingerir algumas cuias de cauim, ficou mais relaxado e deixou-me à vontade com Potira. Não que o tapuio se importasse com nossa felicidade, pois só me largou a mussurana porque não queria que o testemunhasse, instantes depois, no matinho ao lado da aldeia, atolando-se numa cunhantã atarracada que nem ele, por quem se enrabichara. “Aipotar nde iababa coer” (quero que fujas agora), disse-me Potira, tão logo Alkindar-miri nos deixou. Já de pé, refeita como que por milagre do cauim, a cunhantã puxava-me para que me levantasse, enquanto repetia que eu devia fugir imediatamente. “Fugir de que modo e para onde?”, pensei, admirado da esperteza da minha companheira, que se fingira de bêbada para iludir Alkindar-miri. Seria loucura qualquer tentativa de evasão, concluí. No meio da confusão, seria até fácil escapulir do terreiro sem ser notado, mas, e depois? Como chegar até Belém? Através da selva, nem pensar; só os bugres não se perdem nela. Potira arrastou-me ao porto da aldeia e quase me força a entrar com ela numa das canoas. “Iuri Iké!” (vem cá!), ordenou ela, sentando-se com o remo nas mãos. Puxei-a para fora da canoa e tentei convencê-la a desistir da fuga, pois não acreditava que pudéssemos chegar a algum lugar pelo labirinto de canais e lagamares do imenso arquipélago de Joannes, o mesmo onde tantos aventureiros entraram sem jamais encontrar o caminho de volta. Ainda mais que nem nadar eu sabia! Os tupinambás certamente nos alcançariam, ou, pior ainda, serviríamos de pasto a tribos inimigas. Não, eu não pretendia fugir. Não que receasse ser visto como “cuave eim” (covarde) pelos meus patrícios portugueses, os quais, nem sempre primando pela galhardia quando em apuros, certamente não me censurariam. O que eu não queria, isto sim, era que algum mal, por minha causa, recaísse sobre Potira. Além disso, por mais absurdo que pareça, eu começava a gostar da idéia de ser sacrificado. Eu, que passara a vida observando o comportamento de animais inferiores, como as ostras, os insetos e os vermes, tinha agora a oportunidade de experimentar a inexorável lei que rege o mundo dos homens. Embora ateu, via-me como Cristo, que teve de conduzir-se espontaneamente ao calvário. É com tristeza imensa que retorno ao pátio da aldeia. No caminho, miro a noite enorme que fulgura sobre a minha cabeça. Pelos meus olhos escorrem rios longínquos, astros incendiados de inveja e luxúria. Ouço na areia o chiar dos passos da pequena selvagem que caminha ao meu lado, com quem nos últimos dias tenho comido vorazmente o silêncio. Toco nas águas da infância e ouço os seus tambores; as agulhas da chuva sobre grandes paineiras, como se fosse abril. Velejo sobre os relevos da terra e observo sua geografia úmida, as grandes árvores do pensamento, o lodo dos pântanos e das almas, a doença da fome, a gaia ciência, tão cega quanto a fé dos catecúmenos, mas tão arrogante. Para que continuar vivendo, se homens e bois giram igualmente sob a noite com grandes olhos estúpidos; se, depois dos impérios humanos, reinará o silêncio absoluto? Toco as águas da infância, ouço vozes movediças. A avó portuguesa me espia com seus olhos castanhos desde os arredores de Coimbra, desde as frestas do paiol. Sobre o arreio, ao chão, nas tábuas escuras, ressono imóvel, sob a noite enorme, e soluço, aguardando as grandes asas azuis da manhã. Mas, entre mim e o novo dia, interpõe-se uma longa e cansativa noite. Na nossa ausência, as mulheres pintaram o ibirapema, a massa com que o matador esfacelará o crânio do prisioneiro. Lambuzaram o temível tacape com resina de árvore e, sobre a substância grudenta, espalharam pó da casca do ovo do pássaro macaguá. Depois, uma das mulheres garatujou coisas mágicas na poeira do ovo, enquanto outras cantavam em volta. O ibirapema, ornado com borlas de penas e outros enfeites, foi, em seguida, pendurado numa vara acima do chão, numa choça ao sul da aldeia, em volta da qual muitos selvagens insultaram, em trovas, o prisioneiro. No interior da choça, jovens e velhas mulheres, pintadas de preto, rasparam a parte dianteira da cabeça do prisioneiro e pintaram-lhe o rosto e o corpo com a tinta de jenipapo. Terminada a toalete, as velhas se deitaram em redes atadas ao redor da rede do prisioneiro e entoaram canções de escárnio ao infeliz. Alkindar-miri voltou do mato assobiando, parecendo até mais leve, menos atarracado, feliz mesmo, pois não apenas viu passarinho, como até comeu um. O “cauinam”, bebelança de cauim na qual o próprio prisioneiro toma parte, já havia começado, e eu acabara de obter a resposta à pergunta que me fiz várias vezes desde que partíramos da aldeia: Quem serviria de pasto aos selvagens? A descoberta deixou-me surpreso, pois não imaginava que fosse o sonso do Paiguara a entregar daquela vez “o fiofó ao espeto” mas essa é apenas uma maneira de dizer, porquanto os brasilíndios não conheciam o espeto, sendo o peixe, a caça e os prisioneiros assados sobre jiraus de vara, aos quais chamavam “mocaê” (moquém). |