MIGUEL GARCIA

Francisco Miguel Gouveia Pinto Proença Garcia
ANÁLISE GLOBAL DE UMA GUERRA
(MOÇAMBIQUE 1964-1974)

Dissertação para a obtenção do Grau de Doutor em História
Universidade Portucalense
Orientação dos: Prof. Doutor Joaquim da Silva Cunha e
Prof. Doutor Fernando Amaro Monteiro
Porto . Outubro de 2001

I Capítulo
Os grandes poderes mundiais e as suas ambições em África

3. A globalidade da “guerra fria”. O Pan-Africanismo e o Pan-Arabismo. O período anti-colonial na Organização das Nações Unidas.

No terminus da II Guerra Mundial, após o colapso das potências do Eixo e da ruptura da grande aliança que ganhara a guerra afirmaram-se na cena mundial duas grandes potências, os EUA e a URSS, dois Estados em movimento, sem fronteiras definitivas (1); os EUA, a liderar progressivamente todo o Ocidente democrático/parlamentar, e a URSS, marxista-leninista, a controlar, após Yalta, toda a Europa Oriental. Com elas, definiram-se dois blocos e as respectivas zonas de influência, que vão disputar o controlo das áreas geopoliticamente importantes, bipolarizando a sociedade internacional. É o início da Guerra Fria, expressão de Walter Lippmann, generalizada a partir de 1947.

Através da Resolução Vandenberg, é impulsionada a criação da maior aliança política e militar dos tempos de paz, a OTAN, acabando, assim, os Estados Unidos da América com a política isolacionista consagrada por Monroe. A criação e emprego da OTAN encontraram legitimidade, internacionalmente, no Art.º 52º da Carta das Nações Unidas, onde se prevê a existência de “(...) acordos ou organizações regionais, destinados a tratar de assuntos relativos à manutenção da paz e da segurança internacional (...)”, que, de acordo com o Art.º 53º, o Conselho de Segurança pode utilizar “(...) para uma acção coercitiva sob a sua própria autoridade (...)”.

A URSS, juntamente com os seus Estados satélites, cria uma organização semelhante, consubstanciada pela assinatura, em 14 de Maio de 1955, do Pacto de Varsóvia, institucionalizando-se deste modo uma política de equilíbrio de forças entre os dois blocos.

Quando das negociações para a assinatura do Tratado do Atlântico Norte, coexistiam várias correntes de opinião e esperanças de incluir território africano na sua zona de defesa. No entanto, o representante do Canadá opôs-se à inclusão de qualquer território que pudesse dar origem a possíveis dificuldades coloniais, ficando a amplitude do acordo limitada ao Art.º 4º do Tratado, onde é prevista a consulta entre as partes sempre que, “(...) na opinião de qualquer delas, estiver ameaçada a sua integridade territorial, a sua independência política ou a sua segurança (...)”. Ficou, assim, “(...) generalizadamente entendido que o Artigo não dizia respeito a interesses fora da Europa (...)”(2). Porém, no Art.º 6º, estão incluídos os Departamentos Franceses da Argélia, apesar de a zona defensiva da organização se situar exclusivamente a Norte do Trópico de Câncer.

No quadro da Aliança, África era apenas considerada uma área útil para manobras. Contudo, nos primeiros anos de existência, surgiram repetidos apelos para a incluir nos planos de contingência ou no perímetro de defesa da Aliança, batendo-se Portugal - cujo Governo acreditava que a África era um complemento da Europa e que a Europa podia ser batida em África (3)- pela integração dos seus territórios africanos no respectivo quadro de responsabilidade geo-estratégica.

Com Estaline, inicia-se a guerra fria. Após a sua morte em Março de 1953, o seu sucessor, Kruchtchev, no XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética dá os primeiros passos no sentido de reduzir as contingências da mesma (4), enveredando pela doutrina da coexistência pacífica entre os dois blocos.

Durante a guerra fria, eclodiram ou desenvolveram-se numerosos conflitos regionais, onde os adversários se defrontavam, por nações interpostas, em regiões de vital importância estratégica e económica para a Europa, situação desencadeada pela primeira vez durante a Guerra Civil da Grécia. Mas, na lógica desta guerra, que implicou uma organização em blocos, estava implícita a conquista de posições em áreas geográficas exteriores aos mesmos. Estas zonas cinzentas, cujo domínio se disputava, serviriam de periferias de desempate, sendo Cuba o primeiro exemplo da confrontação directa entre as duas grandes potências (1962). A doutrina Truman, que procurou conter a URSS dentro de limites bem definidos, fora ultrapassada.

Ao mesmo tempo que se delineava a possibilidade de diálogo Leste/Oeste, os povos afro-asiáticos tomavam consciência da situação colonial que enfrentavam. Assim, procuravam organizar-se num movimento anti-colonialista de carácter universal. Contudo, estes povos eram aproveitados pelos «novos impérios» que exploravam em seu favor “(...) o movimento anti-colonialista e a ideia política e psicológica da descolonização (...)”(5). A URSS cedo apoia e fomenta as reivindicações daqueles países. Na disputa das superpotências estavam em jogo mais do que os princípios; os mercados, as posições estratégicas e o acesso às matérias-primas eram o objectivo final.

Em Bandung «os povos mudos do mundo», na expressão de Sucarno, foram reunidos por iniciativa das chamadas potências de Colombo (6). Esta Conferência foi o motor de arranque para modificações profundas e irreversíveis da própria estrutura da Sociedade Internacional. Bandung será o marco do aparecimento formal do Terceiro Mundo como uma unidade ideológica.

Três homens vão desempenhar um importante papel, diremos mesmo que decisivo, no emergir do Terceiro Mundo, em plena guerra fria: o Marechal Tito, o Coronel Gamal Nasser e Pandita Nehru. Tito foi forçado a abandonar o Bloco Leste, após a ruptura Belgrado/Moscovo, e, numa recusa de se identificar com o bloco oposto, cria o não-alinhamento. Nehru, apesar de o Terceiro Mundo e o Bloco Leste se aproximarem de uma forma nítida, insistiu sempre numa atitude de independência. E Nasser concebe o «neutralismo positivo» como instrumento de pressão alternativo sobre ambos os Blocos, com a finalidade de obter o máximo de vantagens diplomáticas (7).

A transposição da ideologia terceiro-mundista para a acção prática originou o neutralismo africano. Esta política, orientadora dos povos afro-asiáticos, recém-nascidos para a vida internacional, estabelecia o seu anti-colonialismo.

Podemos considerar que não existem países não alinhados, pois em Bandung evidenciaram-se os pró-ocidentais, os pró-orientais e os neutros (8) e que o neutralismo foi uma atitude “(...) oportunista e pragmática que lhe permitia tomar, em cada momento, a posição que mais conviesse aos seus interesses imediatos, o seu apoio era moeda de troca por concessões a extorquir (...)”(9) e, apesar de advogar o princípio da não intervenção na vida interna dos Estados, considerava que era seu direito interferir na vida interna dos territórios que ainda qualificava de colónias, mesmo em países reconhecidos como independentes pela comunidade internacional. Porém, o facto destes povos se terem apercebido do seu alto valor pela adição a qualquer um dos blocos parecia indicar a ultrapassagem da anterior situação de equilíbrio da impotência (10).

A consolidação, em paralelo, do terceiro-mundismo, do neutralismo e do não-alinhamento, após a II Guerra Mundial, assentou sobre uma consciência de subdesenvolvimento, aliada à da potencialidade virtual em matérias primas e/ou em posições geo-estratégicas, sobre consciências culturais ou sobre a progressiva constatação destas e dos decorrentes esboços de alternativa (11).

Os objectivos desta primeira Conferência do Terceiro Mundo, já definidos no ano anterior em Bogor, são conjunturais (12). No entanto, subsistia um objectivo comum: a necessidade de afirmação da independência, dado que esta representava uma tomada de consciência dos povos da Ásia quanto ao seu valor e ainda o reconhecimento da necessidade de uma solidariedade activa com os povos de África.

No comunicado final da Conferência é consagrado o dever de todos os povos libertados ajudarem os ainda dependentes a alcançar a soberania. Foi aí também considerado o colonialismo como um mal ao qual era preciso pôr fim rapidamente, uma vez que a sujeição dos povos à exploração estrangeira constituía uma negação dos direitos humanos elementares e era contrária à Carta das Nações Unidas (a que a Conferência aderira inteira e plenamente), bem como à Declaração Universal dos Direitos do Homem (13).

A complexa tarefa da política soviética encontrou plena expressão em Bandung, residindo o principal aspecto desta Conferência no facto de ter fornecido à URSS a possibilidade de estabelecer contactos «afectivos» e «passivos» entre os países comunistas, anticomunistas e neutrais e na circunstância de, assim, ter assegurado uma influência directa sobre o pensamento e o comportamento dos referidos países (14). Mas a Conferência de Bandung é ainda o marco do regresso da China ao primeiro plano da cena asiática. Chou En-Lai, então Ministro dos Negócios Estrangeiros, aproveitando-se da ausência da URSS, apresentou-se como o expoente máximo dos povos oprimidos, disponibilizando-se para apoiar os povos africanos no combate ao imperialismo e ao capitalismo (15). A Conferência findou num ambiente anti-ocidental e sob o claro signo de êxito do grupo comunista.

Bandung previa, no seu encerramento, a realização de uma Conferência no Cairo. Esta realizou-se entre 26 de Dezembro de 1957 e 1 de Janeiro de 1958 e serviu, essencialmente, para Nasser reforçar a sua liderança sobre os países árabes, pois não esqueçamos que foi com o factor “Nasser” que o nacionalismo árabe emergiu poderosamente nas décadas de cinquenta e sessenta.

Nasser desafiou todas as objecções ocidentais (16), sendo a mais importante, sem dúvida, o combate ao Pacto de Bagdad e o propagar de ideais socialistas que, ao introduzirem reformas diferenciadas, possibilitavam uma maior aproximação às “massas” da população árabe (17).

Para Nasser, a unidade árabe não podia ser imposta, uma vez que se identificava com a própria existência árabe, bastando para tal a subsistência de um mesmo idioma. Assim, a República Árabe Unida, parte integrante da Nação Árabe, sentia por dever apoiar todo o movimento nacional e popular, progressista e nacional do mundo árabe, pelo que a política externa daquela República se orientava por três princípios apoiados na luta nacional, sendo o primeiro o da guerra ao imperialismo e à dominação colonialista, sob qualquer forma e pretexto e em qualquer lugar (18).

A Conferência do Cairo marca ainda a primeira grande afirmação da presença do neutralismo. A URSS, que fora condenada em Bandung pelo seu colonialismo, vai aparecer na Conferência do Cairo bem posicionada para manejar todo o mundo emergente, alcançando notório prestígio. O neutralismo traduzia uma aproximação ao sovietismo, dado que nessa altura o Egipto era caucionado por Moscovo.

No Cairo, o neutralismo, ao aproximar-se da África, muda de técnica, deixando as conferências de Estados e adoptando o método das conferências dos Povos, o que possibilitava a mobilização das forças revolucionárias contra as soberanias de raiz estranha a África, permitindo ao movimento de união a assinatura de um objectivo que dispensava o princípio nacionalista, pois, na África Negra, a luta contra a raça branca representava “(...) o princípio da definição política dos territórios (...)”(19).

Tendo por base o princípio da autodeterminação, o movimento afro-asiático articula-se com o sentimento anticolonialista, procurando encaminhar para a emancipação imediata todos os povos de cor politicamente vinculados à Europa.

Ao movimento e ao sentimento com ele articulado podemos ir buscar as origens de vários acontecimentos em África e na Ásia, assim como a sua actuação, em bloco, na ONU. Podemos, então, ligar a este movimento o Pan-Africanismo, introduzido por Henry Silvester Williams, no início do século, e cuja influência se manifestou, sobretudo, depois da Conferência de Bandung.

Apesar de poder apresentar uma pluralidade de manifestações, o Pan-Africanismo não deixa de revestir uma certa unidade, no tocante à sua coerência de pensamento (20). A primeira tónica será a do Pan-Africanismo, de cariz racista, com expressão no chamado “sionismo negro”, que, através da ideia de completa igualdade entre brancos e negros, deveria conduzir a uma emancipação total dos povos africanos do jugo colonial, encontrando no demagogo Marcus Garvey o seu expoente máximo. Por outro lado, o Pan-Africanismo, antes de assumir uma forma predominantemente política, passou por uma fase cultural, associado, indiscutivelmente, ao haitiano Prince Mars. A manifestação mais vigorosa desta vertente do Pan-Africanismo encontra-se no conceito de “Negritude”, lançado em meados dos anos trinta por Leopold Senghor e Aimé Césaire e cujo corpo de teoria lhe foi atribuído por Jean-Paul Sartre. O Pan-Africanismo cultural “(...) tinha uma expressão puramente intelectual e não tinha efeito imediato nas pretensões de elevação social e política (...)” (21). E a Negritude, como uma recusa de assimilação cultural, é um dos elementos que transmitem força à vontade de afirmação da personalidade política de África (22).

O Pan-Africanismo de Du Bois, considerado o pai do Pan-Africanismo político, que frequentou Harvard e foi Professor de Sociologia na Universidade de Atlanta, era teorizado, amadurecido no pensar, seguro nas intenções, pugnando por uma igualdade racial, pela autodeterminação nacional, pela liberdade individual e por um socialismo democrático. Era um movimento estruturado, consciente da sua oportunidade e da necessidade de transbordar para África e para os africanos, opondo-se à utopia de repatriar dos EUA os negros ou de os acantonar em alguma região. Repudiava a segregação racial, batia-se pela igualdade e promoção dos africanos até à condução dos seus próprios destinos políticos.

Marcus Garvey difere completamente de Du Bois. Entre uma pluralidade de manifestações rácicas, defendia não só o envio dos negros norte-americanos para África, como a existência de um Cristo e uma Virgem Maria negros, vindo a fundar a Universal Negro Improvement Association com o objectivo de unir todos os Negros num só povo (23).

Após a assinatura do armistício da guerra de 1914-1918, tendo por base os princípios formulados por Woodrow Wilson, Du Bois apresenta uma petição às potências vencedoras do conflito para a adopção de uma Carta dos Direitos Humanos destinada aos Africanos e, baseando-se na igualdade entre raças, promove a realização de cinco congressos entre 1919 e 1945.

Blaise Diagne, o primeiro deputado africano do Senegal, aproveitando a circunstância de cerca de 100.000 negros africanos terem vindo combater na Europa e de ele próprio ter conseguido mobilizar em apenas três meses 80.000 africanos para lutarem ao lado de Clemanceau, secundando os esforços de Du Bois, obtém ordem para a organização do I Congresso Pan-Africano durante a Conferência de Paz em Paris (24).

Assim, ajudado por Blaise Diagne, Du Bois organizou em 19 e 20 de Fevereiro de 1919 o primeiro Congresso «Pan-Africano para a Protecção dos Indígenas da África e dos Povos de Origem Africana». Portugal esteve representado pelo Coronel Freire de Andrade (25). Como resultado desta reunião, foi elaborada uma petição dirigida às potências aliadas visando colocar sob controlo internacional, em regime de mandato, o Togo, os Camarões, o Sudoeste Africano e o Tanganica.

O II Congresso, realizado em 1921, foi repartido por Londres, em 28 e 29 de Agosto, Bruxelas de 31 de Agosto a 2 de Setembro e Paris em 14 e 15 de Setembro. Portugal, representado pelo Dr. José de Magalhães e por Nicolau Santos Pinto, da Liga Africana de Lisboa, só esteve presente nas sessões de Bruxelas e de Paris. Em Londres, o Pan-Africanismo político era encarado com simpatia pelos trabalhistas, e pelos socialistas em Paris e Lisboa (26).

No final da 1ª Sessão, foi aprovada uma “Declaração ao Mundo” redigida por Du Bois, que, na sua essência, reclamava para os negros iguais direitos aos dos brancos (27). A 2ª Sessão realizou-se em Bruxelas, sob um clima de animosidade da maioria da imprensa, que, convicta da filiação bolchevista deste, incitava o Governo a não permitir a realização do evento (28).

O Congresso acabou por ratificar a declaração e as resoluções adoptadas em Londres, findando com os congressistas divididos e transferindo-se para Paris, para a 3ª e última Sessão presidida por Blaise Diagne, a assinatura de um Manifesto final. Naquele Manifesto, fez-se um «Apelo ao Mundo» pela igualdade e cooperação de todas as raças e pela justiça e solidariedade universal e analisou-se a situação de todos os territórios coloniais (29). Uma das decisões mais importantes foi a criação da «Associação Internacional Africana», cujo conselho directivo integraria os dois delegados portugueses. No final do Congresso, seria enviado à Comissão dos Mandatos da Sociedade das Nações uma petição que insistia na igualdade absoluta das raças humanas.

No Verão de 1923, realizava-se em Londres a 1ª Sessão do III Congresso Pan-Africano, com as simpatias, mais uma vez, dos trabalhistas. As críticas à situação dos trabalhadores dos territórios ultramarinos portugueses projectou o problema para a atenção internacional. Estas críticas, por enquanto, estavam na proporção do moderado Pan-Africanismo expresso a nível internacional. Du Bois transfere para Lisboa o Congresso, onde se realiza uma segunda sessão, com a pretensão de “agitar” os dirigentes da Liga Africana, que, possuindo no seu seio alguns intelectuais, constituíam um grupo de interesses que apoiava as diligências de Du Bois no sentido de conseguir do Governo Português uma moderação do regime de trabalho indígena em Angola e em São Tomé. O Manifesto deste Congresso formula reivindicações para o tratamento dos negros como homens, caminho condutor para a paz e para o progresso, e, ao referir-se ao desarmamento mundial e à organização do comércio e indústria, assume já uma visão global do mundo (30).

Em 1927, contando com 208 delegados provenientes de 22 Estados americanos e de uma dezena de países europeus, realizou-se em Nova York o IV Congresso, começando aí a doutrina Pan-Africana a tomar forma. Aqui reivindicou-se a representação e participação dos negros nos governos que os representam, a justiça adaptada às condições locais, a extensão do ensino primário gratuito e um desenvolvimento do ensino técnico, bem como o fim do comércio de escravos e do tráfico de álcool. Ao preconizarem o desarmamento mundial e a supressão da guerra (31), o Congresso demonstrou uma continuidade de pensamento universal, que a partir da II Guerra Mundial virá a ser consagrado em todas as reuniões (32).

Os primeiros quatro Congressos tiveram um impacto limitado, denotando uma conformação com a situação colonial estabelecida, não reivindicando a autonomia administrativa e muito menos a independência e não produzindo assim nenhuma realização concreta (33).

Do V Congresso emanaram pela primeira vez reivindicações para uma independência imediata, completa e absoluta dos povos de territórios dependentes. O recrutamento de bases deu um novo impulso ao Pan-Africanismo, deixando este para trás a moderação e o idealismo, para entrar nos caminhos da acção directa, através de métodos de resistência não violenta. Neste Congresso, em Manchester, o quadro da África Negra aparece ultrapassado, reivindicando os congressistas também a independência da Argélia, Tunísia e Marrocos (34).

Quanto ao caso português, emergindo da Junta de Defesa dos Direitos de África (1912), surgiu em Lisboa no ano de 1919 a “Liga Africana” (ligada aos conceitos de Du Bois). Em 19 de Março de 1921, a Junta de Defesa dos Direitos de África transforma-se no “Partido Nacional Africano”, cujos estatutos se inspiravam nas ideias preconizadas por Marcus Garvey. Mas só no ano de 1931 foi possível fundar o “Movimento Nacional Africano”, com o objectivo de unir todos os africanos portugueses. Até aí, “(...) apesar das divergências e do maior radicalismo do Partido Nacional Africano, existiu sempre unanimidade em lutar pela causa africana dentro da Nação Portuguesa e nunca pela separação de qualquer parcela ultramarina (...)”(35).

Podemos considerar que, até ao início dos anos sessenta, o “africanismo” foi rebocado pelo “asiatismo”. Mas o seu ímpeto, apesar de refreado, não desapareceu. Kwane Nkrumah, lider ganês, vendo inicialmente em Nasser um papel útil para o suporte na luta anti-colonial, apoia-o; todavia, retomando a ideia da Negritude, procura depois distanciar-se e transferir para a África Negra a direcção surgida e tutelada em Bandung, mantendo um papel duplo: o de líder pan-africano e em simultâneo associado a Nehru, Sukarno e Nasser na liderança do grupo afro-asiático (36). Assim, em Abril de 1958, realizaram-se duas conferências, uma em Tânger e outra em Accra. Da primeira destacamos o facto de o princípio da luta subversiva ter sido admitido, ainda que os comunicados o não expressem (37). A segunda - a 1ª Conferência de Estados Africanos Independentes, que decorreu entre 15 e 22 de Abril de 1958, sob a iniciativa de Nkrumah e de George Padmore, seu conselheiro - reuniu representantes da África do Norte e da África Negra. Em Accra, figuravam na ordem do dia a discriminação racial, a planificação industrial, as actividades subversivas desenvolvidas por potências estrangeiras, a colaboração económica e técnico-cultural entre os países independentes do continente negro, a manutenção da paz mundial e a criação de um organismo pan-africano permanente (38); mas o Presidente do Gana cedo marcou o objectivo anticolonialista.

Destacam-se as duas moções votadas referentes à política africana: a primeira moção, de política geral, reafirmava a fidelidade à Carta das Nações Unidas, à Declaração Universal dos Direitos do Homem e à Declaração da Conferência de Bandung, denotando, deste modo, um forte sentido de unidade em relação ao Ocidente, unidade assente na própria unidade do Continente que tinha em comum a sujeição colonial no passado e a não-adesão a qualquer bloco. Todavia, a segunda moção votada preconizava que deveria ser marcada uma data precisa para a independência de cada um dos territórios ainda sob domínio colonial e lançou um convite a todas as potências administrantes para que se furtassem a qualquer tipo de repressão ou medida arbitrária nesses mesmos territórios (39). Em Accra, nada de concreto foi referido em relação aos territórios portugueses.

De 25 a 27 de Julho de 1958, realizou-se o Congresso de Cotonou, que reuniu com a intenção de constituir o Partido do Reagrupamento Africano. O slogan «procurai primeiro a independência e o resto vos virá por acréscimo», aceite unanimemente, expressava quais os verdadeiros propósitos dos quinhentos delegados ao Congresso em que as palavras de ordem acabaram por ser “independência imediata” e “Estados Unidos de África”(40). Os delegados daquele partido reclamaram “(...) a supressão de todas as fronteiras estabelecidas após o Congresso de Berlim de 1885, para que os povos africanos pudessem unir as suas «complementaridades» (...)”(41) e manifestaram vontade de concretizar a união do Cairo a Joanesburgo. Neste Congresso, o conceito de Pan-Africanismo não se exprimiu justaposto ao de “Negritude”. O que estava em causa eram “(...) eixos estratégicos, interesses multinacionais que flanqueavam os antigos poderes formais e, com isso, projectos de assimilação ou hegemonia política a situar fora dos limites culturais da Negritude, como ela se definira e na prática recusara, por via de assimilação cultural, ao Ocidente colonizador (...)”(42).

Julius Nyerere, presidente do Tanganyka Africa National Union (TANU), conjuntamente com Kenneth Kaunda, presidente da United National People´s Party (UNIP), e com Tom Mboya, do Kenya National African Union (KANU), convocaram uma reunião de dirigentes políticos da África Oriental, por forma a decidirem uma acção conjunta na futura Conferência, a realizar em Accra. Da realização desta Conferência, entre 15 e 18 de Setembro de 1958, resultou a criação do movimento de libertação PAFMECA (Pan African Freedom Movement for East and Central Africa), com o objectivo de independência dos territórios africanos, que, a partir de 1962, passou a denominar-se PAFMECSA (integrando também a Africa do Sul). Este movimento reuniu-se em seis conferências anuais. Da orgânica destacamos o Conselho Coordenador de Libertação e os Comités Regionais de Libertação (43). A razão de existir deste movimento caducou com a criação da Organização da Unidade Africana, consentindo os seus membros na sua dissolução, em 24 de Setembro de 1963.

Na segunda Conferência de Accra, realizada de 6 a 13 de Dezembro de 1958 e agora designada por “1ª Conferência dos Povos Africanos”, estiveram representados elementos dos movimentos independentistas do Congo, da África do Sul e de Angola. O Presidente Nkrumah explicitou aí as quatro fases a serem observadas na luta por uma África unida: obter a liberdade e a independência, consolidá-las, criar a unidade e a comunidade dos Estados livres de África, proceder à reconstrução económica e social do Continente Africano (44).

Na ordem do dia figuravam o exame dos projectos de reagrupamento dos Estados Africanos Independentes, que seguiam os princípios de ajustamento das fronteiras artificiais, fusão ou Federação sobre uma base regional, Federação progressiva ou Confederação (45).

No final da Conferência, foram adoptadas quatro resoluções que, com base no direito dos povos de disporem de si mesmos, visavam encorajar os movimentos independentistas em toda a África.

A primeira resolução condenou o imperialismo e colocou África de sobreaviso contra a actividade das potências colonialistas; a segunda resolução recomendava a todos os Estados africanos independentes a ruptura de relações diplomáticas com países que praticassem a segregação racial, visando-se aqui os territórios portugueses, através da contestação a Portugal do direito de assimilar os territórios africanos à Metrópole. Aí ficou também claramente expresso que a Conferência reconhecia todas as formas de actuação pacífica para alcançar a independência, dando no entanto todo o apoio aos que eram obrigados a empregar meios violentos para fazer face à brutalidade a que eram submetidos (46). A terceira resolução recomendava a formação de agrupamentos regionais de estados independentes. E a quarta preconizava a luta contra o tribalismo e o separatismo religioso e, de um modo geral, contra todas as instituições reaccionárias.

Mas a decisão mais importante foi a da criação de um secretariado permanente, com a finalidade de acelerar a libertação de África e desenvolver um sentimento de solidariedade Pan-Africano (47). Estava assim lançada a semente da futura Organização de Unidade Africana.

Nesta segunda Conferência de Accra, dominada pelo sindicalista queniano Tom M´Boya, acentuaram-se as profundas diferenças entre o Pan-Africanismo e o Pan-Arabismo. Após estas duas Conferências em Accra, a discussão passa a pôr em causa a própria presença do homem branco no Continente.

A 2ª Conferência de Estados Africanos Independentes decorreu de 4 a 8 de Agosto de 1959, em Monróvia, tendo sido adoptada a proclamação ao direito à autodeterminação dos territórios coloniais (48). Monróvia reivindicava, a par de Accra, a ambição de liderar a África Negra.

Em Tunes, de 25 a 31 de Janeiro de 1960, realizou-se a 2ª Conferência dos Povos Africanos, que contou com a presença de Holden Roberto, presidente do movimento independentista “União dos Povos de Angola” (UPA). Este reivindicou a independência para Angola num quadro africano, solicitando ainda que fosse inscrito na XV sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas o problema do Ultramar Português.

Uma outra Conferência se afigura do maior interesse para o tema em análise: A 3ª Conferência dos Povos Africanos, realizada em Março de 1961, no Cairo, onde foi aprovado o recurso à força para liquidar o imperialismo e foi reclamada a “(...) independência de todas as possessões portuguesas (...)”(49), o que denota uma evolução em relação a Bandung, onde nada de concreto fora deliberado em relação aos territórios portugueses. Note-se que neste mês começou oficialmente a luta armada em Angola.

A materialização de unidade africana, tentada por Nkrumah em 1959, com a Comunidade de Estados Independentes de África, e em 1960, através da criação da União dos Estados Africanos, cujo principal objectivo era auxiliar os Estados ainda coloniais a conquistar a independência, não impede o emergir de divergências africanas, que se manifestaram em três grandes grupos, com tendências difíceis de conciliar.

Com a Conferência de Brazzaville, realizada de 15 a 19 de Dezembro de 1960, nasceu o designado «Grupo Brazzaville» ou da «África Moderada». Integrado pelo Congo-Brazzaville, Senegal, Chade, República Centro-Africana, Costa do Marfim, Níger, Alto Volta, Mauritânia, Gabão, Benin, Camarões e Madagáscar, este “Grupo” procurava manter boas relações com as ex-colónias. No final da mesma Conferência, foram enunciados quatro grandes princípios: o primeiro referente à procura obstinada da paz; o segundo, ao problema da não ingerência nos assuntos internos de cada Estado, onde a questão da prevenção subversiva vem bem expressa; o terceiro, à necessidade de uma cooperação económica e cultural em bases iguais; e por fim, o quarto, a utilização de uma diplomacia concertada no desenvolvimento de uma política internacional comum (50).

Em 4 de Janeiro de 1961, por oposição ao grupo da «África Moderada», iniciaram-se, em Casablanca, por iniciativa de Mohammed V, os trabalhos da Conferência criadora do chamado «Grupo Casablanca» ou da «África Revolucionária» (Gana, Guiné-Conacri, Marrocos, Mali, Egipto e a Frente de Libertação Argelina), a qual se procurou que tivesse um cunho afro-asiático. Desta Conferência, que findou a 7 do mesmo mês, resultou a publicação da «Carta Africana de Casablanca», que estabelecia uma Assembleia Consultiva Africana e um Alto Comando Africano. Nela fazia-se ainda um apelo a todos os Estados Independentes de África para que se associassem em acção comum, por forma a edificar a unidade e segurança do Continente. Este grupo era hostil ao Mercado Comum Europeu e a toda a espécie de cooperação das antigas colónias com os novos Estados.

Organizada pela Libéria, Camarões, Nigéria e pelo Togo, de 8 a 13 de Maio de 1961, a Conferência de Monróvia reuniu uma vintena de delegações com o grande objectivo de servir de elo de ligação entre as duas anteriores Conferências. Este outro grupo de países define a tendência do denominado «Grupo de Monróvia». Ao líder Ganês, que pretendia, em primeiro lugar, uma união política e, a posteriori, uma união económica, opunham-se assim os países deste grupo (51). Aqui foram adoptados os «seis princípios de Monróvia», dos quais se destacam: o reclamar de uma igualdade absoluta para todos os Estados africanos, a não ingerência em assuntos internos e o respeito pela soberania. Tal como em Casablanca, – e mais tarde também em Addis-Abeba – , a preocupação subversiva foi aqui expressa como condenação formal da manutenção de focos de subversão dirigidos contra outros Estados (52).

Em Lagos, na Conferência dos Estados Independentes, realizada de 25 a 30 de Janeiro de 1962, procurou-se mais uma vez fazer as pazes entre o Grupo de Brazzaville e o de Casablanca. Contudo, os Estados da África do Norte não estiveram representados. Aqui foi solicitado a Portugal a independência dos seus territórios em África e foi aceite o princípio da criação de um novo mecanismo para a cooperação interafricana (53).

Apesar de os meios a utilizar serem diversos, todas estas Conferências tinham o mesmo propósito da de Casablanca: procurar uma forma de unidade africana e a criação de um organismo regulador da cooperação intergovernamental, pois a continuada existência de graves problemas de subdesenvolvimento, miséria, fome, doença, injustiça social, corrupção, fracos índices de desenvolvimento humano, etc., revelava a cruel realidade de que a libertação do “opressor colonial” não era a solução para todos os males da África Negra. Para Arnold Toynbee, os povos das duas Áfricas mantinham-se ainda unidos pelo problema comum de se libertarem dos seus antigos dominadores europeus (54). Todavia, nem sempre a independência política foi acompanhada por uma independência económica, subsistindo uma nova forma de dependência: o neocolonialismo. Assim, a necessidade de se ultrapassarem estas dificuldades e o desejo de consolidação de uma unidade africana manteve-se, levando os chefes de Estado e de Governo africanos a assinar, durante a Conferência Pan-Africana de Addis-Abeba, a 26 de Maio de 1963, a Carta da Organização da Unidade Africana.

A aspiração dos povos afro-asiáticos à independência não foi realizada só pelas Conferências Africanas; um valioso suporte jurídico assim como um importante apoio político foi conseguido nas Nações Unidas.

O emergir para a vida internacional de um conjunto de países e forças situadas na África, na Ásia e na América Latina, “(...) que até então sempre tinham sido mudos porque por eles falava a potência colonizadora (...)” (55), levou à constituição de um grupo de pressão que, com a sua expressão permanente na ONU e com uma conduta política internacional submetida a padrões comuns, se bateu por abolir no mundo aquilo que subsistia de situações coloniais.

A composição da Assembleia Geral foi grandemente alterada com a admissão dos novos Estados recém-independentes. Os seus votos influíram, de acordo com os interesses do momento, nas decisões tomadas pela Assembleia Geral, com todas as consequências daí advindas (56). O emergir do neutralismo africano, que trouxe mais benefícios aos novos Estados do que o alinhamento declarado, proporcionou-lhes, assim, uma importância política, a nível internacional, que passou a ser crescente e decisiva.

O princípio da autodeterminação dos povos, explicitado no N.º 2 do Art.º 1º e no Art.º 55º da Carta das Nações Unidas, só tem paralelo na sua relevância na política internacional com a proclamação da independência dos Estados Unidos da América, a 4 de Julho de 1776. É importante salientar, sem embargo, que a Carta faz referência a um princípio e não a um direito. O ideário da autodeterminação apenas foi impulsionado com o desejo de libertação dos territórios subjugados pela Alemanha na II Grande Guerra, e com o consentimento de uma “livre escolha” de instituições e forma de governo. Este ideal rapidamente se generalizou e passou a ser reclamado para territórios situados fora da Europa. Para dar virtualidade ao conceito de autodeterminação dos povos, recorreu-se a sucessivas interpretações da Carta da ONU (57).

O apoio das Nações Unidas às independências foi dado expressamente em 14 de Dezembro de 1960, quando a Assembleia Geral, através da Resolução A/1514 (XV), adoptou a assim intitulada “Declaração sobre a concessão da independência aos países e povos coloniais”, segundo a qual deviam ser tomadas “(...) medidas imediatas nos territórios sob tutela, não autónomos, e em todos os outros que ainda não tenham obtido a independência, para transferir todos os poderes para os povos desses territórios, sem nenhuma condição nem reserva, conforme a sua vontade e os seus votos livremente expressos e sem nenhuma distinção (...)”, acrescentando, “(...) toda a tentativa que vise a destruição parcial ou total da unidade nacional e da integridade territorial de um país é incompatível com os objectivos e os princípios da Carta da ONU (...)”(58), trecho que Salazar interpretava como abrangendo o caso português, mas que fora a paixão que dominava aqueles assuntos que não permitira que se fizesse “(...) justiça conforme os textos (...)”(59). Foi a passagem de princípio ao direito, ligando-se de forma definitiva a ideia de autodeterminação ao processo de descolonização.

A interpretação da Carta, e nomeadamente do Art.º 73º, sofreu alterações de fundo com esta Resolução, que veio assim determinar a prática descolonizadora da ONU. Para Salazar, o Art.º 73º não aludia à independência dos territórios de que se ocupava, mas apenas à possibilidade de governo próprio, o que se lhe afigurava significar administração autónoma exercida pelos naturais e compatível com muitas formas de enquadramento num Estado (60). Para ele, o mal não residia no fornecimento de informações; fornecê-las ao abrigo do Art.º 73º sim, poderia ser prejudicial, pois, assim, aceitava-se imperativamente a orientação aí definida para determinadas soluções políticas, que colidiam ou podiam colidir com a doutrina constitucional portuguesa (61).

A Resolução A/1514, visando o fim do colonialismo sob todas as formas e em todas as suas manifestações e entendendo que a sujeição dos povos ao jugo, dominação e exploração colonial é contrária aos Direitos Humanos fundamentais e à Carta da ONU, colocando mesmo em perigo a paz e segurança internacional, procura a liberdade para todos os povos ainda dependentes. Aquela Resolução afirma ainda que assiste a todos os povos o direito inalienável de exercício da soberania e da integridade no seu território nacional, de autodeterminação e de livre escolha da Constituição política, identificando no entanto a liberdade com a independência ou independência absoluta e esclarecendo inequivocamente a respectiva aplicabilidade a territórios não autónomos como os territórios sob tutela (62).

Inicialmente, na Carta, autodeterminação não se identificava com independência, contudo através da Resolução 1514 (XV) foi consagrada a exigência que a resultante da autodeterminação fosse a independência; “(...) mas, em bom rigor, deixamos de estar aqui perante o livre exercício do direito de autodeterminação pelo povo colonizado para estarmos perante uma heterodeterminação pelas Nações Unidas do futuro desse povo (...)”(63).

O princípio das nacionalidades ocidentais não tem coincidência com o nacionalismo inspirador do anticolonialismo e da autolibertação, pois nos territórios onde se desenvolveu e onde se reclamava a independência, onde se mantinham as fronteiras definidas pelas soberanias europeias, não existe correspondência do conceito de Nação ocidental. A elite africana ocidentalizada, que apreendera estes conceitos na Europa, procurou importá-los e aplicá-los nos seus territórios de origem. Porém, o sentimento-suporte para a mobilização “(...) foi mais o da reprovação da colonização, o ataque à supremacia étnica branca (...)”(64), do que um sentimento comunitário nacional.

Para a Organização das Nações Unidas, todos os povos tinham o direito à livre determinação. Contudo, a ONU nunca conseguiu definir o que entende por “povo”. Não tendo em linha de conta referenciais objectivos, ignorou a preparação e o grau de maturidade (tendo por padrão a cultura ocidental) das populações abrangidas, nos territórios em causa, para a independência. Em nenhum território se procedeu em conformidade com a resolução A/1541 (XV) (65), onde a Assembleia Geral estabeleceu a obrigação de informar, quando o território fosse geograficamente separado e distinto, étnica e culturalmente, da potência administrante. Se este estivesse em posição de subordinação, também era obrigatória a transmissão de informações. Admitia-se ainda a integração como resultante da vontade expressa com o completo conhecimento e por vontade democrática, conduzido imparcialmente e por sufrágio universal. Mas, não se reclamou qualquer consulta democrática às populações para averiguar sobre as suas intenções. Desencadearam-se as independências, praticando-se a transferência do Poder directamente para um dos movimentos independentistas. No caso concreto de Moçambique, após os acordos de Lusaka, aquele foi entregue à FRELIMO. Assim, é muito difícil sustentar outra conclusão que não a de que foram os territórios e não os povos que constituíram a preocupação motora do processo e que o objectivo não foi a livre determinação, mas sim a expulsão das soberanias europeias(66).

Sendo as superpotências as grandes vitoriosas de 1945, todo o movimento das autodeterminações anti-coloniais do século foi função do interesse dominante destas. Convém ainda notar que a política de descolonização inscrita na Carta da ONU teve a definição que foi imposta por essas superpotências, mas não foi aplicada naquela parte do mundo que não pertencesse, “(...) de acordo com as intenções iniciais, à zona de exclusiva influência e expansão de cada uma delas (...)”(67), motivo fundamental para que não se levantasse nunca a questão da autodeterminação dos povos em territórios com relevante importância geoestratégica na Ásia Central, em regime de “telecomando” colonial da URSS, assim como não nunca se contestou que o Hawai e o Alasca fossem integrados nos EUA.

Quer os EUA quer a URSS eram “anti-colonialistas”: Os primeiros, “(...) por tradição histórica e por motivos de ordem ideológica (...)”(68), económica e política. Mas o anti-colonialismo americano não é uma ideia geral, revela-se apenas em face de cada caso concreto. A segunda, por questões doutrinárias e de táctica política; contudo, a sua posição também não é geral e podemos dizer que converge com a posição americana, obedecendo a diferentes paradigmas conforme se examina o problema colonial. Assume uma posição em relação a territórios sujeitos à soberania da Rússia, e outra em relação a territórios sujeitos à soberania de outras potências (69).

No entanto, na Assembleia Geral, existiam mais grupos anti-colonialistas: os Escadinavos por razões económicas; os Afro-Asiáticos, porque são acima de tudo anti-ocidentais (70); os Latino-Americanos, porque ex-colonizados por Espanha e Portugal e pelo facto de a Europa ainda possuir alguns territórios coloniais na América Latina; e outros, ainda, por disciplina de blocos.

No fundo, o anti-colonialismo surgiu por motivos rácicos e económicos ou em virtude de ressentimentos com origem em submissões seculares, forjando-se, assim, a política anti-colonial nas Nações Unidas.

De acordo com a visão oficial da época, o cerco a Portugal desencadeou-se em 14 de Dezembro de 1955, quando da sua admissão nas Nações Unidas, sendo questionado se possuía algum território ao abrigo do Art.º 73º. A resposta do Governo Português foi negativa, uma vez que, segundo opinião dos governantes portugueses, Portugal não possuía territórios dependentes ou não autónomos. Estes eram independentes com a independência da Nação (71). Em Janeiro de 1957, a IV Comissão contra-ataca ao abordar novamente o problema dos territórios não autónomos e, excedendo o espírito e a letra da Carta (72), procurou provar a existência de territórios coloniais.

Perante a resistência portuguesa, oficialmente assumida como fundamentada nos textos constitucionais (73) e na própria Carta (74), a Assembleia Geral, através da Resolução A/1467 (XIV), de 12 de Dezembro de 1959, decidiu criar uma comissão especial de seis membros (75), destinada a estudar os princípios em que se deveriam basear todos os membros para elaborarem os relatórios solicitados no Art.º 73º da Carta.

Esta comissão redigiu o que ficou conhecido por «Relatório dos Seis» no qual foi enunciado a obrigatoriedade de prestar informações sobre todos os territórios declarados pela Assembleia como territórios não autónomos, sendo, apriori, não autónomo todo aquele que estivesse separado geograficamente e possuísse uma distinção étnica e cultural da do país administrante. Atente-se que a diferenciação étnica e cultural ainda hoje existe em muitos outros Estados Independentes, como admite a Organização Internacional do Trabalho, na sua Convenção N.º 107.

Através da resolução A/1541 (XV) veio reafirmar-se a obrigatoriedade de fornecer informações de acordo com o Art.º 73º e a aceitação dos princípios do Relatório dos Seis para determinar a aplicabilidade do mesmo Artigo, sendo considerados como não autónomos pela Resolução A/1542 (XV) (76) os territórios sob Administração Portuguesa: Cabo-Verde, Guiné, Angola, Moçambique, S. Tomé e Príncipe, S. João Baptista de Ajudá, Goa, Macau, Timor e dependências. Ambas as resoluções vieram clarificar a classificação de colonialismo, aplicável aos territórios portugueses em África.

Com o claro objectivo de administrar e de vigiar uma execução rápida da Resolução A/1514 (XV), a Assembleia cria a 27 de Novembro de 1961 o designado Comité dos Dezassete (77). Este insistia na necessidade de se entender o direito à autodeterminação no contexto colonial, podendo, assim, fazer imposições às potências colonialistas da aplicação das medidas que estas não tomassem por iniciativa própria. No caso concreto de Moçambique, a União Soviética apresentou um ante-projecto de resolução ao Comité dos 17 nos seguintes moldes:

“(...)

1) Affirms the inaleanable right of the people of Mozambique to self-determination and national independence and supports the demands of African political parties in Mozambique for attainment of independence by the end of 1962;

2) Recommends to the Government of Portugal

a) to put an end to repressions and terror, to grant immediately a total and complete amnesty of political prisioners, to remove all limitations and prohibitions on the activities of African political parties,

b) to withdraw from the territory of Mozambique all military and para-military forces, to liquidate all military bases, to supress completely the portuguese colonial administration, to take imediate measures with a view to transferring full powers to the people of Mozambique in accordance with resolution 1514 (XV),

c) not to permit the entry en masse into Mozambique of persons who do not belong to the indigenous population (...)” (78).

Num relatório sobre a 1ª parte dos trabalhos do Comité dos 17, de 8 de Março de 1962 - enviado pela delegação portuguesa junto das Nações Unidas -, é relatada a posição britânica e a prioridade atribuída ao território de Moçambique (a seguir às Rodésias), bem como a inclusão de Angola no grupo de territórios a considerar, depois dos casos mais urgentes.

Parece oportuno verificar a posição da Inglaterra, potência que então era responsável por 42 territórios dependentes com uma população estimada em 30 milhões de habitantes. A Inglaterra colaborava com o Comité encarregado de recolher informações sobre os territórios não autónomos, pelo que não via a necessidade da criação de outro Comité. Contudo, colaborava desde que “(...) Subject to the understanding that it could not accept any form of intervention in the administration of the territories for wich it was responsible (...)”. Qualquer tentativa nesse sentido acarretaria a retirada da colaboração que o Governo de sua Majestade entendia poder dar ao Comité, sendo de descolonização a política quanto aos territórios sobre administração britânica. Todavia não desconhecia o perigo de declarar uma independência prematura por falta de bases sólidas, acreditando em quatro preposições básicas a respeito desses territórios:

1) Responsabilidade exclusiva;

2) Eficácia da política seguida até esse momento;

3) Maior rapidez possível na concessão de independência;

4) Necessidade duma sólida preparação (79).

O Comité transformou-se num local privilegiado para os representantes dos movimentos independentistas poderem ter voz internacional (80) e assim serem reconhecidos como legítimos representantes dos povos dos territórios sobre domínio colonial.

Pela Resolução A/1807(XVII), de 14 de Dezembro de 1962, a Assembleia Geral deplorava o contínuo desrespeito de Portugal pelas legítimas aspirações da imediata autodeterminação e independência expressas pelas populações por si administradas, e manifestou a sua preocupação pela intensificação de medidas de opressão sobre os indígenas dos territórios, sendo Portugal convidado com carácter de urgência a adoptar as medidas aconselhadas pelo Comité especial para os territórios sob sua administração (81); admitindo assim o Presidente do Conselho português, Oliveira Salazar, que o único objectivo seria o de permitir a divisão de territórios sem unidade sólida, ou o anexar, por outros países, dos territórios portugueses, como acontecera com Goa (82).

Portugal foi por diversas vezes convidado a participar nos trabalhos do Comité (83). A resposta portuguesa, como seria de esperar, conservou sempre a mesma orientação de recusa (84). O Comité insistiu também para que o Governo Português recebesse em território nacional uma delegação sua (85). Mas face às Nações Unidas, o Governo Português sustentou a mesma resposta: o “Ultramar já era independente com a independência da Nação”(86), durante 19 anos.

Após definir como principal inimigo a URSS, e da criação do sistema defensivo Ocidental com a criação da OTAN, podemos considerar que a política africana dos EUA consistia num apoio insignificante aos pensamentos independentistas, uma vez que a África de colonização europeia desempenhava um papel seguro, ao lado do entendido por estes como mundo livre, no combate ao bloco Leste.

Com os problemas do Suez, em 1956, os EUA optam por condenar a política dos seus parceiros europeus para o continente africano. Aqui, o Governo Português, que colocou à disposição da Aliança as bases de Beja e do Montijo, numa procura de demonstrar ser o seu contributo indispensável para a Aliança e que o seu interesse por esta consistia na procura de apoios tendentes a negar o acesso soviético a toda a costa Ocidental de África, onde se incluía o importante aeroporto da ilha do Sal, adia ao mesmo tempo as negociações para a renovação do acordo dos Açores (87).

A forte erupção de nacionalismos a desenvolver-se em processo típico de bola de neve conduz a um progressivo isolamento de Portugal, perdendo este, a par e passo, os já ténues apoios dos países ocidentais aliados. Relacionado a um nível global com o crescente anti-colonialismo das Nações Unidas “(...) and with the cold war positioning of United States policy towards the growing Afro-Asian bloc in world politics (...)” (88), denotava-se um notório contraste entre as políticas descolonizadoras desenvolvidas nos impérios ingleses e franceses e o evidente compasso de espera destas em Portugal. Aqueles haviam aprendido que a sua resistência na procura de evitar as independências apenas atrasava o processo uns anos e acabava por “(...) lançar os movimentos nacionalistas nos braços dos comunistas (...)”(89).

Ao não aceitar ou ao não se aperceber das alterações profundas no sistema internacional, o que levou a um reposicionar estratégico, Portugal caminhava para o “orgulhosamente sós”, na expressão de Salazar. Era o início do cerco e posterior ataque, na segunda metade da década de 50 (90), que conduziram àquela que ficaria conhecida pela mais longa linha de batalha do mundo (91).

A ascensão de Kennedy veio romper com “(...) 15 anos de benevolência protectora dos Estados Unidos, e Portugal ia debater-se com as pressões desestabilizadoras da superpotência aliada (...)”(92). Além do mais, Kennedy, a 20 de Outubro de 1961, em audiência ao Ministro dos Negócios Estrangeiros Português, declarou considerar o problema de África como fundamental e que os EUA apoiariam a autodeterminação, por forma a impedir que o continente africano caísse em domínio soviético (93). Assim, a mudança da política africana dos EUA, no final da década de 1950 tornada pública por posições de Kennedy, empurra Portugal para um isolamento internacional praticamente completo.

Os europeus encaravam o continente africano como um complemento económico da Europa e a salvaguarda militar de todo o seu flanco meridional. Mas para os norte-americanos este era encarado como um eventual mercado (muito reduzido) para colocação dos seus produtos excedentários, e tinha, sobretudo, a potencialidade de servir de fornecedor de matérias – primas, nomeadamente de minérios estratégicos, persistindo a ideia de que, onde fosse eliminada a influência europeia, ganhar-se-ia um novo campo de influência norte-americana. Para a URSS, a África apareceu como indispensável na corrida para o domínio do mundo através do envolvimento da Europa.

Sem efectuar formalmente uma renovação no acordo da Base das Lages e mantendo as facilidades nos Açores, Salazar, através de relações bilaterais com os EUA, conseguiu que, secretamente, estes se comprometessem a que o equipamento militar da OTAN pudesse ser utilizado nos territórios africanos (94) e conduziu-os para uma política de moderação em relação a Angola.

Os EUA, que no Comité dos 24 consideravam o princípio da autodeterminação aplicável aos territórios portugueses e acreditavam que a autodeterminação poderia ser possível através da cooperação e meios pacíficos (95), sugeriam, em privado, que Portugal não deveria “(...) slam or close the door (...)” ao Comité, mas que deveriam encontrar-se formas de a deixar aberta; se tal acontecesse e se fosse mostrada flexibilidade, Portugal não deveria preocupar-se com problemas de prazos (96).

Eduardo Mondlane, em declarações perante o Comité dos 24 em Dar-es-Salam, acusou Portugal de plano sinistro, pelo qual mercenários brancos da África do Sul se encontravam no Exército Português em Moçambique, apelando ainda à ONU para que esta encontrasse uma fórmula que forçasse as potências da OTAN a retirarem o seu apoio a Portugal. Por outro lado, a política norte-americana expressa nesta data e neste local reforça o nítido afastamento da política ultramarina portuguesa (97).

A Organização utilizou como instrumento fundamental a IV Comissão que, ocupando-se da descolonização, “(...) sustentou que lhe pertencia identificar e extinguir todas as relações de dependência colonial (...)”(98), travando-se no seu seio polémicas que chegavam a atingir a violência.

Dentro do contexto da época, a situação que se vivia era de equilíbrio pelo conflito mútuo assegurado (sendo o medo um dado fundamental de toda a conjuntura) e de despique para a dominação mundial entre as superpotências. Estas, baseadas no anti-colonialismo, com a pretensão de alargar as respectivas zonas de influência pelo esboroar do Euromundo, iniciado no já distante Tratado de Tordesilhas (99), orientaram os esforços da competição para os territórios ultramarinos portugueses situados na zona de confluência dos seus poderes políticos. Assim, a totalidade dos restos do Império Português foi vítima desta transformação do mundo numa zona única de confluência daqueles poderes políticos e, em particular, da competição e da luta que, entre si, travavam para o seu domínio exclusivo (100), que, no caso da África Austral, se traduzia fundamentalmente no controlo da linha de união do Índico ao Atlântico. As superpotências vieram, assim, a apoiar os movimentos independentistas que se mostraram dispostos, mal a vitória fosse alcançada, a incluírem-se na zona de influência da superpotência apoiante.

Os países cujos movimentos independentistas receberam apoio externo - independentemente do sinal da concreta procedência ideológica -, após a independência, sofreram as consequências já referidas no séc. XVI na obra “O Príncipe” de Maquiavel (101): saírem de uma dependência e caírem numa nova forma de dependência. Neste caso, o neocolonialismo.

 
 

 




 



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