FRANCISCO PROENÇA GARCIA

A IMPORTÂNCIA DAS INFORMAÇÕES
na condução da guerra em Moçambique (1964-1974) (2)

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1. Os Serviços de Informações em Moçambique (1964-1974)
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Nos territórios continentais africanos onde era exercida a soberania portuguesa, para além das acções de pacificação e submissão, como era tradicional fazer-se contra as sublevações étnicas, a resposta portuguesa à subversão no período de 1961-1974, foi global e traduziu-se naquilo que designamos por “resposta possível”, abrangendo as vertentes político-diplomática, sócio-económica, militar e psicológica, procurando o Poder português desequilibrar as populações em favor do seu controlo. Contudo, para ser rendível, uma acção desta natureza pressupunha informações precisas e os diversos órgãos em sintonia no seu esforço de pesquisa, para saber como, onde e quando se deveria actuar.

A «presciência» ou «previsão» de Sun Tzu (1), a «previsão» referida em “O Príncipe” de Maquiavel (2) e o «conjunto de conhecimentos do inimigo» que Clausewitz (3) refere são demonstrativos da necessidade de dispor de um eficiente Serviço de Informações, cuja existência tem de preceder a respectiva necessidade. Esta é uma actividade decisiva em todas as guerras, e, numa guerra de natureza subversiva como a desenrolada nos territórios africanos pela obtenção da independência, tornavam-se ainda mais importantes. Sem elas, as Forças Armadas não saberiam onde se encontrava o inimigo, muito menos quem este era, dada a sua diluição no seio da população. Além do mais, eram não só fundamentais para as actuações armadas como valiosíssimas para o planeamento e condução de Apsic rendíveis. Para John Cann, a pesquisa de informações constituiu a pedra fundamental da actuação portuguesa, tendo a eficácia da sua rede contribuído decisivamente para sustentar o esforço durante 13 anos (4).

Em Moçambique a FRELIMO carecia também de um sistema montado para, no mínimo, saber das movimentações e intenções das Forças Armadas, por forma a actuarem antecipadamente. Para as partes em confronto, as Informações eram o garante da surpresa.

Sun Tzu mencionava que “(...) isto não é uma doutrina baseada no pressuposto que o inimigo virá, mas sim contando com a prontidão para o encontrar; não supor que ele não atacará, mas antes tornar-se a si próprio invencível (…)" (5). Assim, para ser capaz de tão complexa tarefa, deve o Estado dispor de um eficiente Serviço de Informações, por forma a prestar apoio isento e esclarecido aos órgãos de soberania.

Os territórios ultramarinos só começaram a ser controlados do ponto de vista da intelligence com alguma eficiência em 1936 (6), altura em que a 4ª Repartição (Negócios Políticos) da Direcção-Geral de Administração Política e Civil do Ministério das Colónias, nos termos do § 2 do Artigo 8º da Constituição, passou a estudar a política colonial e os regimes de liberdade de imprensa, de reunião e de associação, pois até aí os elementos que possuía para apreciar como se governava e exercerem recolha de informações eram apenas informais.

A Legião Portuguesa, estruturada através do Decreto-Lei N.º 29233, de 8 de Dezembro de 1938, cuja esfera de acção, por Lei, deveria abranger todo o território nacional, incluindo o ultramarino, organizou um Serviço de Informações que nunca operou no Ultramar. Em 1950, foi organizado e estabelecido o SGDN (7) (Secretariado-Geral da Defesa Nacional), comportando uma 2ª repartição com a incumbência, entre outras, de estabelecer e accionar os Serviços de Informação Estratégicos. Em 1954, reorganizou-se a PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado) (8) e, pelo Decreto-Lei N.º 40541, de 2 de Fevereiro de 1956, foi colocada sob a alçada do Ministro do Ultramar toda a actividade daquela corporação nos territórios ultramarinos. Entretanto, em Agosto de 1956, foi publicada a "Lei da Organização da Nação para a Guerra” (9), que criou o Conselho Superior Militar. Na base XXI, atribuía ao governo a competência para orientar tudo o que respeitasse à segurança interna e às actividades de carácter informativo que interessassem à defesa nacional, designadamente no que se referia à prevenção de actos de subversão, à repressão da espionagem e dos actos de entendimento com o inimigo, à manutenção da ordem pública, aos refugiados e à guarda dos elementos e serviços vitais da economia nacional.

Pelo exposto, verifica-se que, quando do despoletar da subversão activa, na baixa do Cassange e em Catete, em Angola, existia já uma estrutura no campo das Informações, conquanto aquém das necessidades. A actuação da Administração Portuguesa não se enquadrou no espírito de Maquiavel, para quem "(…) não se deve deixar eclodir uma grave rebelião para fugir a uma guerra, pois isso equivale apenas a adiá-la, com desvantagens (…)" (10); com efeito, a 2ª Repartição do Quartel-General da Região Militar de Angola em 1960 era já conhecedora — através da captura de um plano do MPLA — das eventuais acções violentas a desencadear no dia 30 de Março de 1961 (11). Por isso, não podemos dizer que o Poder português tivesse sido surpreendido com aquela situação; apenas não respondeu, preventivamente, com uma actuação capaz, por forma a evitar os massacres.

É um facto que as datas dos incidentes em Angola e da reprovação da moção da Libéria no Conselho de Segurança das Nações Unidas são coincidentes, que Portugal enfrentava movimentos independentistas com apoio/fomento internacional, com suporte ideológico, com estruturas de apoio no exterior e com uma intensa utilização dos meios de comunicação social. Contudo, mesmo não tendo sido apanhados de surpresa, e num contexto internacional tão desfavorável, a acção sócio-económica poderia ter sido antecipada, e a rebelião reprimida antes de se revelar; assim, para fugir à guerra, Portugal terá adiado o problema, ficando em desvantagem.

Os diversos organismos que trabalhavam as Informações estavam distribuídos pelos serviços específicos dos vários ministérios, mas, o seu esforço era descoordenado e em sobreposição, induzindo muitas vezes o Governo Central em erro relativamente a várias situações.

No âmbito das Informações estratégicas, além da PIDE, Portugal tinha como estruturas consentidas a 2ª Repartição da Secretaria Geral da Defesa Nacional, a Direcção Geral dos Negócios Políticos do Ministério do Negócios Estrangeiros e o Gabinete dos Negócios Políticos do Ministério do Ultramar.

Naquele período, tal como hoje, aqueles a quem compete a tomada de decisões dentro dos órgãos de soberania de que eram os últimos responsáveis necessitavam de um organismo que centralizasse e coordenasse as informações dos vários serviços existentes e que elaborasse análises oportunas e prospectivas sobre problemas ou atitudes, que envolvessem decisões àqueles níveis. Desta forma, evitar-se-ia a dispersão.

Assim, apesar de colaborarem mais ou menos estreitamente e a PIDE exercer a centralização (embora esta missão nunca lhe tivesse sido atribuída), não existia uma entidade, a nível governamental, que exercesse a actividade de centralização e coordenação, de modo a tratar as informações de interesse para a Administração, defesa e política do país, mesmo quando do final das campanhas. Ainda hoje, os diversos serviços trabalham em competição e sobreposição, pelo que se torna necessário criar um serviço com essa missão específica.

Quando o General Venâncio Deslandes foi nomeado para o cargo de Governador Geral e Comandante-Chefe das Forças Armadas em Angola, decidiu-se criar um verdadeiro SCCI(s) (Serviço de Coordenação e Centralização de Informações) (12), sendo os SCCIM (Moçambique) criados pelo Decreto n.º 43761, de 29 de Junho de 1961. Na Guiné, apesar da proposta do Governador datar de 6 de Setembro de 1963, os SCCIG só foram organizados em 1969, ficando integrados na Divisão de Informações do Gabinete Militar do Comando-Chefe, com a finalidade de trabalhar as informações que a este interessavam, na sua dupla função de Governador e Comandante-Chefe.

Desta forma, no Ultramar, resolvia-se em parte aquela carência, sendo a coordenação a nível inferior feita através dos contactos directos entre as entidades interessadas ou pelas comissões de contra-subversão. A nível provincial, estes serviços constituíram um elemento fundamental na conduta da política nacional e das operações militares (13). Tinham como missão centralizar, coordenar, estudar, interpretar e difundir informações que interessassem à política, à administração e à defesa das respectivas Províncias. Estes serviços procediam à análise das informações de carácter estratégico e produziam estudos específicos. Efectuavam pesquisa, na medida do indispensável, exploratória (se urgente ou a requerer especial qualificação) do que sabiam pelas outras vias, e aberta (raríssimas vezes coberta). A sua informação não se destinava ao aproveitamento operacional táctico. Todavia eram, em simultâneo, órgãos do Governo-Geral e do Comando-Chefe (com subordinação hierárquica e administrativa ao primeiro).

Junto dos SCCI funcionava a então designada Comissão de Informações, cuja constituição era designada pelos Governadores-Gerais, com a finalidade de, em reuniões periódicas, coordenarem toda aquela actividade (14). Finalidade que não cumpriam.

Tendo em vista a adaptação às novas situações criadas, o alargamento a outras áreas e “(...) ao reforço e à melhoria da coordenação e publicação de normas regulamentares e doutrinárias sobre a matéria (...)” (15), as estruturas dos Serviços de Informações sofreram várias alterações. Assim, quando do 25 de Abril de 1974, a situação, quanto a tais órgãos, era a seguinte (16):

– No Secretariado-Geral da Defesa Nacional, a 2ª Divisão centralizava e coordenava a actividade dos SIM (Serviços de Informações Militares);

– No Ministério do Ultramar, o Gabinete dos Negócios Políticos (17) centralizava e coordenava as informações recebidas dos SCCI (Serviços de Centralização e Coordenação de Informações) das Províncias Ultramarinas e procurava desempenhar idêntico papel quanto às produções de Jorge Jardim na matéria;

– No Ministério do Interior, estavam integradas as Forças Militarizadas e a PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado) (18), depois DGS (Direcção Geral de Segurança) (19). Esta última trabalhou sempre em competição com os Serviços de Centralização e Coordenação das Províncias Ultramarinas. Desta Direcção-Geral “(...) avultavam a qualificada informação estratégica e a detalhada informação táctica, que fornecia às Forças Armadas (...)” (20).

– No Ministério dos Negócios Estrangeiros, a Direcção Geral dos Negócios Políticos centralizava e coordenava as informações recebidas por via diplomática e consular.

A actividade de Informações envolve um complexo processo de definição e orientação do esforço de pesquisa, avaliação, análise, integração e interpretação das Informações, as quais devem ser oportunas, precisas e adequadas. Na guerra revolucionária, o esforço de pesquisa deve ser orientado não só para o inimigo e para o meio, mas também para a população, o ambiente e o objectivo último na luta. A pesquisa, em Informações, constitui um meio privilegiado para a obtenção de dados relativos ao conhecimento da tessitura humana e da sua postura no confronto. Logo é actividade essencial na prevenção.

Na guerra que se travou em de África (1961-1974), cada serviço tinha os seus métodos e agentes próprios. O grande óbice residia na coordenação, centralização de notícias e informações das diversas proveniências. Apesar da criação dos SCCIM, que permitia uma melhor articulação e “recorte”, face à morosidade de circulação das informações e à dificuldade de as fazer chegar em tempo útil, perdia-se a oportunidade. Os SCCIM nunca conseguiram fazer-se aceitar perante os canais militares e/ou a PIDE (depois DGS) como orientador do esforço de pesquisa ou mesmo impor-se aos canais da administração civil (21).

A nível das Informações militares em Moçambique, desde 1964 que estavam estabelecidas as bases e inscrita no terreno a estrutura do Serviço de Informações, de modo a garantir um rendimento apreciável em tempo de paz, mas com necessidade de adaptação nas áreas onde se iniciou a 3ª fase da subversão. O Relatório anual de Comando da RMM, datado de 1964, considerava como factores que contrariavam um bom rendimento:

– As áreas de pesquisa serem muito extensas;

– As populações estarem dispersas e as vias de comunicação serem reduzidas, nomeadamente no Norte e Centro;

– A existência de diversas dificuldades na transmissão oportuna de factos com interesse;

– O insuficiente rendimento da exploração local e processamento das notícias colhidas, que dificultavam o conhecimento geral e pormenorizado da situação da FRELIMO nos escalões mais elevados;

– O insuficiente número de oficiais habilitados na RMM, que não possibilitava a realização de trabalhos de planeamento e previsão;

– A elaboração de documentação de difusão interna oportuna.

No que diz respeito à colaboração com outros serviços, salienta-se que a PIDE e a PSP colaboraram sempre com os SIM (22).

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(1) Para Sun Tzu, "(…) A chamada «presciência» ou «previsão» não pode ser deduzida dos espíritos, nem dos deuses, nem por analogia com os actividades passadas, nem por cálculos. Elas devem ser obtidas dos homens que conhecem a situação do inimigo (…)". In Tzu, Sun, “A Arte da Guerra”. Lisboa: Ed. Futura, 1974, p. 293.

(2) Maquiavel refere a necessidade de o príncipe estar sempre informado, "(…) os príncipes sensatos devem fazer, isto é, pensar nas desordens futuras, e não só nas presentes, e, servir-se de toda a habilidade para as evitar, pois certo é que prevendo-as à distância mais facilmente as remedeiam (…)", e acrescenta, "(…) o mal é fácil de curar e difícil de diagnosticar, mas não sendo diagnosticado nem curado torna-se com o tempo fácil de diagnosticar e difícil de curar (…)". In Maquiavel, Nicolau, “O Príncipe”. Lisboa: Publicações Europa América, 1977, pp. 21-22.

(3) Clausewitz refere também a importância das informações ao considerar o termo informações como o "(…) conjunto de conhecimentos relativos ao inimigo e ao seu país e, por consequência, a base sobre o qual se fundamentam as nossas próprias ideias e os nossos actos (…)". In, Clausewitz, Carl Von, “Da Guerra”. Lisboa: Ed. Perspectivas e Realidades, 1976, p. 127.

(4) Cann, John, “Contra-Insurreição em África – O modo português de fazer a guerra, 1961-1974”. S. Pedro do Estoril: Ed. Atena, 1998, pp. 170-171.

(5) Idem, p. 235.

(6) Cardoso, Pedro, “As Informações em Portugal”. Reedição limitada. Lisboa: Instituto de Defesa Nacional, 1993, pp. 85-86.

(7) Decreto Lei N.º 37955 de 7 de Setembro de 1950.

(8) Decreto Lei N.º 39749 de 9 de Agosto de 1954. Este Decreto fixava a esta polícia a responsabilidade das relações com as polícias estrangeiras e para a troca recíproca de informações.

(9) Lei N.º 2084 de 16 de Agosto de 1956.

(10) Maquiavel, Nicolau, ob. cit., p. 25.

(11) Pedro Cardoso, "As Informações em Portugal", p. 103.

(12) Decreto N.º 43761 de 29 de junho de 1961. Para mais detalhes consultar as obras de Pedro Cardoso, "As Informações em Portugal", pp. 109-127, e da Comissão para o Estudo das Campanhas de África, “Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974), 1º volume, Enquadramento Geral”, pp. 361-362.

(13) Cardoso, Pedro, “As Informações em Portugal”, p. 115.

(14) Idem, p. 111.

(15) Comissão para o Estudo das Campanhas de África, “Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974), 1º volume, Enquadramento Geral”, p. 368.

(16) Podemos consultar mais detalhadamente: Cardoso, Pedro, “As Informações em Portugal”, p. 126; as obras da Comissão para o Estudo das Campanhas de África, “Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974), 1º volume, Enquadramento Geral”, p. 369, e “Subsídios para o Estudo da Doutrina Aplicada nas Campanhas de África”, p. 158.

(17) Gabinete dos Negócios Políticos, criado pelo Decreto Lei N.º 44773, de 2 de Julho de 1967. Este gabinete possuía duas repartições: a dos negócios políticos e a de relações internacionais. Ver detalhadamente “As Informações em Portugal” de Pedro Cardoso, pp. 124-125.

(18) Decreto N.º 35046, de 22 de Outubro de 1945. Esta detinha um estatuto de polícia judiciária para a repressão e prevenção dos crimes, no interior e exterior do Estado, sob a dependência do Ministério do Interior.

(19) Decreto Lei N.º 49401, de 19 de Novembro de 1969. Tinha por missão proceder à recolha e pesquisa, centralização, coordenação e estudo das informações úteis à segurança, manter relações com organizações policiais nacionais e estrangeiras e serviços similares, para troca recíproca de informações e para a coordenação na luta contra a criminalidade.

(20) Monteiro, Fernando Amaro, “O Islão, o Poder e a Guerra (Moçambique 1964-1974)”. Porto: Universidade Portucalense, 1993, pp. 279.

(21) Idem, ibidem.

(22) AHM, 2-7-138-1, Quartel General da Região Militar de Moçambique, “Relatório anual de comando da RMM”, 1964, Secreto.