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MAJOR MIGUEL GARCIA
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O FENÓMENO DA GUERRA NO NOVO SÉCULO
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2. As guerras num futuro presente |
São diversas as perspectivas de guerras num futuro que já se iniciou. De uma maneira muito genérica é comum classificar as guerras actuais e do futuro como regulares e irregulares (1). Como guerras regulares consideramos os conflitos que obedecem ao modelo trinitário tradicional definido por Clausewitz. Nesse sentido, nas guerras irregulares os principais actores já não são os Estados e as suas Forças Armadas. Os Estados podem entrar em guerra contra uma rede terrorista, uma milícia étnica, um movimento independentista, um exército rebelde ou ainda contra o crime organizado. As guerras irregulares podem também ser travadas entre estas últimas entidades, não envolvendo nenhum Estado. Em ambas as tipologias a superioridade no acesso e tratamento da informação é determinante. Tudo indica que, regulares ou irregulares, há duas aproximações fundamentais para caracterizar as guerras do futuro. A primeira assenta na crença que as guerras espectáculo, possibilitadas pela Revolução nos Assuntos Militares em Curso (RMC) (Garcia, 2000) ou Revolution in Military Affairs (RMA) (2), que têm por base os enormes avanços das tecnologias de informação, dominarão. A segunda visão, que procura o entendimento de fenómenos como as “novas guerras”, ou de “terceiro tipo”, tende a defender que a revolução está maioritariamente a ocorrer nas relações sociais da guerra. Nesse sentido, o elemento central da equação não é a tecnologia, mesmo que aquelas sejam influenciadas por esta última. Como facilmente se pode deduzir, existe consenso quanto ao facto de neste século as guerras se desenvolvem num mundo assimétrico, com fortes desequilíbrios quantitativos e qualitativos. A guerra deste início de século foi de algum modo antecipada no livro de Alvin e Heidi Toffler, Guerra e Anti-guerra , de 1994. Nesta obra os Toffler anunciaram a divisão tripartida do mundo e das guerras em vagas: A vaga das “guerras agrárias”, típica do período das revoluções agrárias; a vaga das “guerras industriais”, produto da revolução industrial, e por fim a vaga da “guerra da informação”, resultante da revolução da informação e do conhecimento. As guerras típicas das sociedades de terceira vaga tem por base a RMC e estão ligadas sobretudo aos grandes poderes, nomeadamente aos EUA e seus aliados. Porém, não é possível deixar de concluir que a RMC na sua formulação mais profunda está associada exclusivamente, pelo menos por enquanto, à evolução nos EUA (Telo, 2003). Há uma tendência que erradamente se generalizou que caracteriza as guerras RMC apenas pela alta tecnologia, nomeadamente a tecnologia ligada à informação. Na verdade, não podemos concordar com tal reducionismo. Se apenas estiverem ligadas à tecnologia podemos considerar que são guerras pós-modernas, mas não são RMC. A RMC, associada à transformação nos assuntos de defesa, caracteriza-se por ser um fenómeno em complexificação: assenta na tecnologia da sociedade da informação, caracteriza-se pela utilização do espaço, pelas novas tácticas e composição orgânica das unidades, pela necessidade essencial de conter a violência dentro de limites políticos, éticos e estratégicos aceitáveis pela comunidade internacional (Telo, 2003), mas também pela civilinização (civil quanto possível, militar quanto necessário) e sobretudo pelo modelo de organização das tecnologias existentes e já disponíveis mesmo no mercado civil, e a partir das quais é possível criar novas e diferentes capacidades num sistema de sistemas. A tecnologia não modifica a natureza da Guerra, mas o seu carácter, o que implica a operacionalização de um novo conceito para o termo Guerra, que agora designa uma situação que não se distingue claramente dos períodos de paz. A ordem de batalha nestas guerras de alta tecnologia, centradas e em rede, desenvolve-se em volta de acções RISTA (Reconnaissance, Intelligence, Surveillance and Target Aquisition) e das armas inteligentes (3). O novo campo de batalha está dominado por um sistema de sistemas, com base no C2W (Command and Control, Warfare), constituindo uma 5ª dimensão (4) da guerra (Pereira, 2003), onde a manobra informacional se sobrepõe, e por vezes substitui a manobra do terreno. Face à esmagadora superioridade tecnológica e a operações baseadas nos efeitos as baixas tendem a ser zero, ou a aproximar-se do zero, pelo menos de um dos lados. O objectivo já não é o aniquilar, mas imobilizar, controlar, alterar e moldar o seu comportamento por forma a criar um novo ambiente político com perdas controladas, mesmo para o inimigo, evitando reacções negativas da opinião pública. É por esta razão que Edward Luttwak definiu este fenómeno como guerra pós-heróica (Luttwak, 1995); a força pode ser empregue sem o risco de perdas de vida. As novas tecnologias e a digitalização ditam novas doutrinas estratégicas, tácticas e organizacionais. A tendência é para a robotização do campo de batalha de uma forma progressiva. As guerras RMC, empregam muito a guerra de informação (5), o vector moderno da guerra psicológica e da subversão tradicionais (Valle, 2001). No campo de batalha (actual e do futuro), o mais importante é (e continuará previsivelmente a ser) o domínio da informação, mais precisamente, o acesso, o controlo e o respectivo processamento com o objectivo de obter a sua transformação em conhecimento e depois partilhá-lo. No futuro, a psicotecnologia disponibilizará novos instrumentos capazes de influenciar crenças e sentimentos o que incrementará ainda mais o papel da guerra psicológica e dos guerreiros da informação que aprendem a implantar falsas realidades e a induzir movimentos psico-culturais e políticos, em prol de determinados interesses nacionais, criando uma realidade virtual quando a realidade efectiva contradiz os imperativos estratégicos de momento, no fundo uma verdadeira guerra de representações, na expressão de Alexandre del Valle (Valle, 2001). A guerra de informação a um nível estratégico implica um domínio do ciber-espaço, pois não podem ser descurados os ciber ataques, com as suas bombas lógicas, vírus e cavalos de Tróia. Esta diferente forma de guerra implica uma política de segurança e defesa para o ciber-espaço, pois este impôs uma nova dimensão geopolítica, a do próprio o ciber-espaço (Adams, 1993). Nas guerras RMC a supremacia das comunicações é um factor imperioso. Na maior parte dos casos o espaço exterior deve ser entendido como a quarta dimensão da guerra. No futuro quem dominar o espaço domina o mundo. Não se trata apenas da sua utilização para fins militares, mas da sua militarização (Boniface, 2002), onde se possam colocar sistemas de armas de intervenção global. Nas guerras RMC podemos assim encontrar uma nova forma de dissuasão. Com a civilinização, a distinção entre civil e militar é um domínio que será susceptível de alteração significativa, pois já não são apenas as Forças Armadas que entram em combate, mas as comunidades políticas que elas servem. Este fenómeno de inter-penetração é indicador de um novo tipo de Forças Armadas. Estas tendem a ser profissionais, com efectivos substancialmente mais reduzidos, com uma maior ligação aos meios universitários e centros de investigação, a integrarem mais mulheres e minorias e, em certa medida, tende-se para uma privatização da actividade militar (Moskos, Williams e Segal, 2000). As guerras que envolvam a grande potência sozinha ou em coligação, sejam elas regulares ou irregulares, serão sempre RMC. A III Guerra do Golfo é um cenário típico de guerra formal. A intervenção da coligação internacional em solo iraquiano pautou-se pela superioridade tecnológica, pela supremacia aérea, com domínio do espaço, pelo uso de armas inteligentes e também por uma intensa guerra de informação. Na operação militar no Iraque, a força RMC, com combates sucessivos e assimétricos, vergou a vontade de combater iraquiana e a operação militar foi uma nova Blitzkrieg . Porém, com a ocupação militar, a tipologia de guerra alterou-se. As operações militares de estabilização, apesar de RMC, fazem-se agora num ambiente subversivo, de guerra irregular, de combate próximo, estando os combatentes misturados com a população, que utilizam como escudo e, se necessário, como moeda de troca. No Iraque devemos lembrar a velha premissa de que as guerras de cariz subversivo não se ganham com acção militar, mas perdem-se pela inacção militar. As guerras RMC são também guerras distantes. O poder que está na defensiva é castigado e muito limitado na sua resposta. Muitas vezes sente-se mesmo impotente (Telo, 2003). Também distante no comando e controlo, onde os media e a informação sobre a guerra desempenham um papel primordial. Podemos dizer que é em certo sentido, uma guerra subversiva feita pelos grandes poderes na Era da Informação. Contudo, o factor tempo marca a grande diferença entre as guerras tecnológicas actuais e as guerras subversivas tradicionais. Estas actuam por lassidão, prolongam-se no tempo, factor essencial para obter resultados. Nas guerras RMC a duração em termos de uma acção militar intensa é muito curta – semanas - e é importante que assim seja, sobretudo por razões de opinião pública e de interesse político (Telo, 2003). Isto não quer dizer que no período posterior à acção militar decisiva, tipicamente de estabilização, a presença militar não se arraste por vários anos, já que actua em ambiente subversivo. Parece gerar consenso a convicção de que as guerras de hoje já não correspondem à classificação clássica do prussiano Clausewitz para quem a Guerra não era somente um acto político, "(…) mas um verdadeiro instrumento político, uma continuação das relações políticas, uma realização destas por outros meios (…)” (Clausewitz, 1976). Na verdade, hoje aquela máxima inverteu-se: a Política, sim, passou a ser a continuação/diversificação do estado de guerra. Para Edward Luttwak (6) a guerra pode resolver conflitos políticos e conduzir à paz; no fundo a guerra é uma forma de política. António Telo considera mesmo que hoje a guerra é a forma “superior” da política (Telo, 2003) , superior apenas porque mais exigente, pelo que obriga a cuidados especiais e uma elaboração do pensamento mais complexa, porém, em nosso entender, a guerra não é política, mas deve-se sim ao falhanço da política. Uma das mais importantes implicações desta mudança qualitativa de conceito de guerra, é a alteração dos laços funcionais entre o poder político e o aparelho militar. A envolvente política perpassa agora verticalmente todos os níveis de actuação militar: A estrutura de comando militar nos diversos patamares de responsabilidade preocupa-se principalmente com a actuação política (Telo, 2003). Mesmo ao nível táctico, um comandante de uma pequena força desempenha esse papel no seu contacto com a população e autoridades locais. |
(1) São inúmeras as tipologias que se podem adoptar. As mais usuais entre os militares usam o tradicional espectro da guerra, onde estas ou são internas ou internacionais, e depois com inúmeras formas de guerra variando as internacionais em função do grau de intensidade de emprego da violência. Estas formas possuem características políticas, psicológicas e técnicas específicas e o espectro subdivide-se entre guerra fria e guerra quente (como guerra convencional, convencional sob ameaça nuclear). Como guerras internas surgem-nos a guerra subversiva, a revolta militar, o golpe de estado, a revolução e as guerras civis. Outros autores como Steven Metz classificam as guerras em formais, informais e de zona cinzenta (Metz 2000), ou as guerras novas e velhas (Kaldor, 2001), ou ainda Kalevi Hoslti, com as guerras institucionais, totais e as guerras de terceiro tipo (Holsti, 1996). (2) A adopção da expressão RMC e não de RMA deve-se ao facto de considerarmos o fenómeno como um processo dinâmico, em contínua evolução, tratando-se da revolução actual e não um processo findo e passível de confusão com outros parecidos ocorridos ao longa da História. (3) Conceitos chave: miniaturização, maior alcance, actuação inteligente, furtividade, veículos não tripulados, robotização e novas formas de energia. Estas armas permitem as intervenções cirúrgicas com zero baixas, ou quase zero. (4) As outras dimensões são a terra, o mar, o ar e o espaço extra-atmosférico. (5) Entendemos por guerra de informação “(...) tudo o que se possa efectuar para preservar os nossos sistemas de informação, da exploração, corrupção ou destruição enquanto simultaneamente se explora, corrompe ou destrói os sistemas de informação adversários, conseguindo obter a necessária vantagem de informação (...)”, (Nunes, 1999). (6) Edward Luttwak, num artigo publicado em 1999 na Foreign Affairs, intitulado “Give War a Chance”, considera que a guerra “(...) can resolve political conflicts and lead to peace This can happen when all belligerents become exhausted or when one wins decisively. Either way the key is that the fighting must continue until a resolution is reached. War brings peace only after passing a culminating phase of violence (...)” (Edward N. Luttwak, “ Give War a Chance” . Foreign Affairs, July/August 1999 disponível em http://isuisse.ifrance.com/emmaf/base/give_war_a_chance.html |
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