MAJOR MIGUEL GARCIA
 

O FENÓMENO DA GUERRA NO NOVO SÉCULO
UMA PERSPECTIVA (3)

FRANCISCO PROENÇA GARCIA & MARIA FRANCISCA SARAIVA

 

3. As guerras irregulares e a transformação da natureza dos conflitos armados

 

Como ficou dito, as novas guerras, todas elas irregulares (1), não são apenas mais comuns do que no passado mas também estrategicamente mais importantes e desenvolvem-se em ambiente operacional de cariz subversivo.

As guerras recentes, bem como as que se vislumbram num futuro previsível não obedecem ao modelo clausewitziano. São guerras fundamentalmente acerca das pessoas (Holsti, 1996) que para além dos Estados envolvem organizações de um novo tipo que se opõem entre si. Conforme a circunstância qualificamos os seus elementos como bandidos, terroristas, guerrilheiros, mercenários ou milícias. Estes não representam um Estado, não obedecem a um governo e misturam-se/confundem-se com a população. Nestes conflitos é normal a generalização da violação do direito aplicável aos conflitos armados (internacionais e não internacionais), bem como do regime de protecção dos direitos humanos (Kaldor, 2001).

São guerras sem frentes, sem campanhas, sem bases, sem uniformes, sem santuários, sem pontos de apoio, sem respeito pelos limites territoriais sem uma estratégia e sem uma táctica definida, de objectivos fluidos. As suas “virtudes” estão na inovação, na surpresa e na imprevisibilidade, empregando por vezes o terror (limpeza étnica, massacre, rapto), onde o estatuto de neutralidade e a distinção civil/militar desaparecem. A população, tal como nas guerras subversivas, desempenha um papel fundamental; é o apoio de retaguarda logístico, em informações e ao mesmo tempo fonte de recrutamento. Por outro lado também é o alvo principal. Nestas guerras há uma desvinculação do estatal, já não há a associação aos interesses nacionais, mas às pessoas que surgem como as maiores vítimas (2).

Como observou Kaldor (2001), a globalização é um fenómeno complexo que atinge as acções que se desenvolvem em ambiente estratégico. Dentro desta lógica interpretativa, a natureza política da violência global do presente e no futuro apresenta novos objectivos, uma diferente forma de fazer a guerra e também de a financiar (Kaldor, 2001).

 

3.1. A guerra assimétrica

 

A assimetria é um velho conceito que, a nosso ver, reaparece agora associado à superioridade tecnológica dos meios militares ocidentais. Particularmente interessante é o conceito de dissimetria (3) desenvolvido nos meios militares americanos. Esta superioridade induz qualquer adversário a refugiar-se em respostas assimétricas, socorrendo-se de métodos tradicionais, por vezes rudimentares (na Somália os tambores), à mistura com meios de alta tecnologia disponíveis no mercado civil (GPS, telefones por satélite, e.mail). É uma guerra de desgaste, sem frentes nem retaguarda, flexível, e que pode expressar a sua violência através de guerrilha, de terrorismo, do crime organizado. Depende muito da imaginação e da força de vontade do adversário.

Contudo, é precipitado concluir que a relação assimétrica tem como origem unicamente a diferença tecnológica. Ela pode até ser diminuta ou nem existir. Nesse sentido, a assimetria emerge também da diferenciação na organização, mas sobretudo do conceito de operações; deixando estas de ser sucessivas para serem simultâneas. A guerra assimétrica, como ficou dito, explora sobretudo o factor surpresa, recusa as regras de combate impostas pelo adversário, utiliza meios imprevistos e actua em locais onde a confrontação não devia ser provável (Boniface, 2002).

O cenário assimétrico mais provável e problemático, hoje e num futuro previsível, será o da guerra em áreas urbanizadas. Estas áreas podem caracterizar-se pela existência de um número elevado de refugiados, retornados, altos índices de desemprego, de uma economia paralela, falta de apoio médico, diversidade cultural, étnica, política e religiosa, onde a proximidade em que grupos sociais distintos vivem uns dos outros promove um ambiente de elevada tensão (Diliegge, 1998).

A guerra em áreas urbanizadas conduz a um empenhamento operacional de cariz assimétrico, todos eles com características subversivas, associados a uma alta, média, e baixa intensidade.

Nas operações em áreas urbanas, onde a actividade das informações é primordial, vamos assistir a um incremento de utilização de meios tecnológicos, de robótica, de armamento não letal e a uma diferente organização para o combate das forças militares e militarizadas.

(1) Costumam caracterizar-se os conflitos como irregulares, ou não convencionais, quando não envolvem Forças Armadas num campo de batalha, nem recorrem a operações tradicionais no mar e no ar (Bruce Russet; Harvey Starr; David Kinsella. The Menu of Choice . 6 th ed. Bedford/St. Martin's Press, 2000, p.204).

(2) Em África, só na década de 80 do século passado houve 3 milhões de baixas civis, e em 1994, como resultado destas guerras, segundo a Cruz Vermelha, havia 23 milhões de refugiados e 26 milhões de deslocados (Bouvet e Denaud, 2001).

(3) Entendida como a procura de uma superioridade qualitativa/quantitativa por um dos combatentes (Boniface, 2003)