ANTÓNIO DE MACEDO
A PALAVRA E A PEDRA
LOGOS E LITHOS:
A PALAVRA CRIADORA E A PEDRA ANGULAR
Sendo essa uma Palavra de vida, é, consequentemente, uma Palavra que cura — muitos a consideram uma Palavra perdida porque os homens não acertam maneira de a (re)encontrar, e na incansável busca desse tesouro, ou da solução desse enigma, se têm consumido durante séculos os mais diversos esquadrinhadores do oculto, afadigando-se infelizmente numa busca vã porque se extraviam por descaminhos em vez de buscarem a Palavra de Vida, com reverência e pureza de alma, na verdadeira Fonte: 

Clamaram a Jahvé na sua tribulação;
Ele salvou-os da aflição em que se encontravam.
Ele enviou a Sua Palavra e curou-os,
E salvou a vida deles da morte. — Salmo 106 [107], 19-20.

Em grego, «palavra» diz-se logos — que Jerónimo traduziu na Vulgata Latina por verbum —, e a Palavra enviada por Jahvé é, evidentemente, o Cristo-Logos que foi enviado para nos curar e nos salvar da morte : tal Palavra portanto nunca esteve perdida, pelo contrário, basta estudarmos os Evangelhos com reverência e maravilhado amor, e praticá-los, para a conhecermos e dela nos beneficiarmos — se, por nosso sincero e assíduo esforço, de tanto nos revelarmos dignos.

A divina Palavra é poderosa, sem dúvida, basta a simples vibração do fiat lux para criar universos: 

No princípio era a Palavra [gr. logos],
e a Palavra estava junto de Deus,
ela estava, no princípio, com Deus;
tudo foi feito por ela,
e sem ela nada do que foi feito se fez. — João 1, 1-3.

Mas a palavra humana — reflexo da divina — não deixa de ter um poder considerável, também, à sua própria escala:

Alguma vez o leitor se deteve a considerar o maravilhoso poder da palavra humana? Voando até nós nas insinuantes tonalidades do amor [carnal], pode desviar-nos dos caminhos da rectidão e precipitar-nos na ignomínia ou arruinar-nos a vida com pungentes dores e remorsos, ou pode impulsionar-nos às mais nobres aspirações para alcançarmos honra e glória, aqui ou no além. De acordo com a inflexão da voz, uma palavra pode infundir terror no coração mais intrépido, ou fazer com que uma tímida criancinha se deixe embalar num sono tranquilo. A palavra dum agitador pode atiçar as paixões duma multidão e impeli-la a acções sangrentas, como na Revolução Francesa, em que, sob o mandato ditatorial duns quantos, a populaça matou e exilou a capricho, ou, inversamente, as doces palavras duma canção familiar podem reatar os laços numa família desavinda.

As palavras justas são verdadeiras e, por conseguinte, livres; nunca estão limitadas ou acorrentadas pelo espaço ou pelo tempo; chegam aos mais longínquos recantos da terra, e, mesmo quando os lábios que primeiro as pronunciaram já se desfizeram há muito no pó dos sepulcros, outras vozes espalharão com o mesmo entusiasmo a mesma mensagem de amor e vida, como por exemplo o místico poema Come unto me, cantado em inúmeras línguas e que tanto conforto tem proporcionado aos corações doloridos. Palavras de paz alcançaram vitórias onde a guerra teria significado uma derrota, e nenhum talento é mais desejável do que o de saber dizer a palavra certa no momento oportuno. (Max Heindel, The Rosicrucian Mysteries, 1911). 

A palavra, mesmo a aparentemente rudimentar e fruste palavra humana, tem uma força mágica, é dotada de energia, positiva ou negativa: a boa palavra pode curar, erguer o ânimo, inspirar, fortalecer, confortar, orientar, dissuadir do mal, persuadir ao bem, reconciliar, perdoar, fazer compreender, iluminar… Estas são autênticas palavras de sabedoria e amor, substância de oração, que abençoam não só aqueles a quem se dirigem, mas o próprio que as pronuncia.

«Como maçãs de ouro em bandeja de prata é a palavra dita a seu tempo» (Provérbios 25, 11).

Já a palavra falsa, negativa, injuriosa e desagregante acaba por falhar — ainda que muito estrago faça durante algum tempo — porque não é substância de oração, não tem existência em Deus.

Tudo quanto o ser humano investe no mundo repercute no lado invisível da vida, ficando depositado naquilo a que as doutrinas Rosacruzes chamam o «Banco Cósmico». É de suma importância o que se «envia lá para cima», em pensamentos, palavras e actos, pelo menos por três ordens de razões:

a) O que projectamos e emitimos acaba por nos retornar acrescidamente, como já observava o sábio árabe: «Senhor, fazei que as minhas palavras sejam de mel, porque sei que terei de engoli-las de volta». Do mesmo nos adverte o velho provérbio chinês: «O passado é um tigre que nos ataca pelas costas quando menos o esperamos». Também lemos na Bíblia: «A desgraça não deixará a casa daquele que retribui com o mal o bem que recebeu» (Provérbios 17, 13), ou, pelo prisma oposto: «Quem faz o bem ao pobre empresta a Jahvé, que lhe restituirá com juros» (Provérbios 19, 17);

b) Os nossos pensamentos, palavras, emoções, gestos, intenções, propósitos ou obras — incluso criações artísticas — que lançamos ao mundo e cuja essência «enviamos lá para cima» contribuem para melhorar ou piorar a qualidade vibratória, branca ou negra, da atmosfera psiconoética do planeta, influenciando outras pessoas (para além dos directos destinatários) que, sem se darem conta, dela se impregnam podendo ser impelidos a este ou àquele acto, para o bem ou para o mal;

c) Finalmente, são esses mesmos pensamentos, palavras, gestos, obras que vão construir o nosso futuro lar nos reinos invisíveis, após a morte.

Trata-se dum autêntico investimento no Banco Cósmico. Nada se perde do que pensamos, dizemos ou fazemos. O poeta e ensaísta Coleridge (1772-1834) afirmava: «Todos os pensamentos são, em si próprios, imperecíveis». 

Ora bem. Já falámos de pensamentos, palavras e actos; passemos finalmente à «pedra».

No seu Curso de Cristianismo Esotérico, vol. II, Lição 41, o instrutor rosacruciano Edmundo Teixeira (1922-1994) dá-nos o seguinte simbolismo alquímico:

Pedra é o fundamento espiritual. Moisés, com a vara do poder, feriu a ROCHA e dela tirou a Água da Verdade e da Vivência para orientar o seu povo, ou seja, para dessedentá-lo no deserto da esterilidade interna. Reclinando a cabeça sobre uma PEDRA, Jacob alcança o entendimento espiritual e vê uma escada que vai até aos céus, ou seja, vislumbra o esquema da Evolução. Na qualidade de Rei de Israel, David vê-se à frente de um exército mais numeroso chefiado pelo gigante Golias: é, simbolicamente, a personalidade (David) a defrontar os desafios da existência, aparentemente insuperáveis (Golias). Mas consegue vencer os Filisteus, os Filhos das trevas, que são os «eus» viciosos, os nossos únicos inimigos, quando atira com a funda uma PEDRA à testa do gigante. Golias é prostrado por terra e os adversários de David ficam desmoralizados, ou seja, a ilusão do mal é diluída. Por fim — mas não por último! — Cristo edifica a sua Igreja sobre a ROCHA personificada por Pedro. 

Esta associação de «pedra» e de «Pedro» é uma antiga tradição cristã que nem sempre tem sido examinada com a devida atenção. Debrucemo-nos um pouco mais sobre esta curiosa matéria. Aparentemente, aquele trocadilho ancestral (pedra/Pedro) estaria na origem da Igreja, e os seus partidários insistem que tal foi ensinado por Jesus e se encontra nos Evangelhos.

Não é totalmente verdade!

Se lermos os Evangelhos duma ponta à outra veremos que a palavra «Igreja», no sentido que hoje lhe damos, nem sequer neles é mencionada excepto por aproximação e apenas três vezes em dois versículos no Evangelho de Mateus (Mt 16, 18 e Mt 18, 17), pois a palavra grega original, usada por Mateus, ekklêsia, significa simplesmente «assembleia de convocados», neste caso a comunidade dos seguidores da doutrina de Jesus, ou a sua reunião num local, geralmente em casas particulares onde se liam as cartas e as mensagens dos apóstolos. Sabemo-lo pelo testemunho doutros textos do Novo Testamento, já que os Evangelhos a esse respeito são omissos. Veja-se por exemplo a epístola aos Romanos (16, 5) onde Paulo cita o agrupamento (ekklêsia) que se reunia na residência dum casal de tecelões, Aquila e Priscila, ou a epístola a Filémon (1, 2) onde o mesmo Paulo saúda a ekklêsia que se reunia em casa do dito Filémon; num dos casos, como lemos na epístola de Tiago (2, 2), essa congregação cristã é designada por «sinagoga». Nada disto tem a ver, portanto, com a imponente Igreja católica em quanto instituição formal estruturada e oficializada sobretudo a partir do século iv.

As Bíblias correntes costumam traduzir do seguinte modo o primeiro passo acima invocado de Mateus, em que Jesus diz a Simão Barjona: «Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja» (Mateus 16, 18).

Na verdade a versão deverá ser: «Tu és um rochedo [gr. petros], e sobre esta/essa rocha [gr. epi tautê tê petra] edificarei a minha comunidade [gr. ekklêsia]», e nesta forma original, mais simples (mas talvez mais misteriosa) do que a versão corriqueira, decorrente de posteriores formulações dogmáticas da Patrística, sobretudo latina, e dos concílios, dificilmente descortinamos a fundação do papado tal como a Igreja pretende. Vejamos porquê[1].

Aquela frase pode ter eventualmente dois significados, dependendo do sentido que se atribuir ao adjectivo demonstrativo tautê (dativo de autê, «esta» ou «essa»). Comecemos por esclarecer que em português, os pronomes e os adjectivos demonstrativos «este», «esse», «aquele» se correlacionam com os pronomes pessoais (maior ou menor grau de proximidade):

eu tenho este livro;
tu tens esse livro;

ele tem aquele livro.

 

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III Colóquio Internacional Discursos e Práticas Alquímicas (2000)

IN: MACHADO, Maria Salomé Machado, A.M. Amorim da Costa, A.M.C. Araújo de Brito & António de Macedo (2005) - A Palavra Perdida. Colecção Lápis de Carvão (dir. Maria Estela Guedes), nº1. Lisboa, Apenas Livros Editora.

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