Permitam-me que comece este breve trabalho com uma citação: «É infundada a muito generalizada suposição de que a filosofia hermética não teve cultores em Portugal. De facto, nem a alegada ortodoxia dos nacionais nem a vigilância intensa desenvolvida pelo Santo Ofício lograram impedi-la de medrar" (Gandra 1994, 13).
Se atribuirmos à expressão «filosofia hermética» o sentido mais abrangente de «hermesismo», tal como propõe o professor catedrático Antoine Faivre, da Sorbonne, obteremos um quadro do que se passaria na generalidade:«No espírito duma sugestão de Frances A. Yates propus que, ao lado do termo "hermetismo", que serve para designar o corpus dos Hermetica com suas gloses e exegeses, bem como o conjunto mais vasto de doutrinas, crenças e práticas cuja natureza se precisou no Renascimento, se empregasse também o termo "hermesismo" para designar a atitude de espírito que preside a este conjunto, e que não se restringe à tradição hermética alexandrina mas inclui a Cabala
cristã, o rosacrucismo, a teosofia, o paracelsismo e, dum modo geral, a maior parte das formas de que se reveste o moderno esoterismo ocidental» (Faivre 1-1996, 48). Ou seja, aquela asserção de que a lnquisição portuguesa não impediu, nos séculos XVI, XVII e XVIII, a proliferação da «filosofia hermética» entre nós, aplicar-se-á, portanto, não só à Alquimia mas também a um vasto leque de secretae artes como a Cabala, a Astrologia, a Philo-Sophia Rosacruz, a Magia operativa agrippina, além dos arcana flumina como as lendas do Graal ou a tradição mistérica da «Igreja de João» oposta à «Igreja de Pedro», ou de Roma.
A própria Astrologia - complemento indispensável, em quanto Ciência Sagrada , do Rosacrucismo -, condenada pela Igreja desde os inícios do Cristianismo, nunca deixou de se desenvolver e espalhar durante toda a Idade Média e o Renascimento, fora e dentro de Portugal: essa difusão seria devida em grande parte, pensam alguns historiadores, aos estudiosos judeus que viviam em terras cristãs e consideravam a Astrologia como um ramo necessário aos seus estudos cabalísticos e talmúdicos. Imperadores e papas foram adeptos da Astrologia, como os imperadores Carlos IV e Carlos V, e os papas Sixto IV, Júlio II, Leão X e Paulo III. Durante a vigência destes governantes, a Astrologia era o grande regulador da vida oficial. É bem conhecido o caso do nosso rei D. Afonso V, que teria sido autor de dois tratados de Astrologia: em 1621 o editor Thomas Harper publicou em Londres Five Treatises of the Philosophers Stone , aí se dizendo que o autor de dois deles era «Alphonso, King of Portugal» (Gandra 2003, 120). Com a criação em 1513 da cadeira de Astrologia na Universidade de Lisboa, institucionalizou-se o seu ensino, e apesar de as Ordenações do Reino (título III, livro 5) imporem penalidades aos que se dedicassem à adivinhação do futuro, ressalvavam porém os astrólogos (Gandra 2001, 3). |
Como se trata aqui de «Des-Colonização» (1) - e realço a maroteira do hífen entre o «Des», e a «Colonização», que põe a imaginação a galope sobre sequelas contrárias a contrárias sequelas -, deveria falar dos diversos países lusófonos que foram antigamente parte do «Império Português», mas, por razões de economia de espaço - embora não só... - limitar-me-ei a breves apontamentos sobre o Brasil e Goa, territórios onde a Inquisição portuguesa esteve particularmente activa, além de, naturalmente, um apanhado sobre o que se passou ou tem vindo a passar, quanto a essa matéria, no nosso luso rectângulo europeu.
O que pode surpreender à primeira vista, nos autores portugueses dos séculos XVI a XVIII, é a escassez de referências à corrente rosacrucista que se difundiu pela Europa na sequência de um certo «paracelsismo» quinhentista e - sobretudo duma maneira mais pública - logo após a divulgação dos famosos manifestos de 1614 e 1615 ( Fama Fraternitatis e Confessio Fraternitatis ), bem como do «romance alquímico» de 1616 As Núpcias Químicas de Christian Rosenkreuz , atribuído a Johann Valentin Andreae. Bom, veremos mais abaixo como o século XVII português, por exemplo, e respectiva Inquisição, sobretudo filipina até 1640, estiveram mais ocupados com o bandarrismo, o profetismo e o V Império do Padre António Vieira - além do Sebastianismo -, do que com o específico hermesismo rosacrucista europeu que ficava iinplícito nas «heresias» protestantes.
Mesmo antes de se ter encerrado o Contra-Reformista Concílio de Trento em 1563 e da publicação do lndex Librorum Prohibítorum do papa Paulo IV, em 1559, o Inquisidor-Geral Infante D. Henrique - o «velho cardeal que trairia o povo português», no dizer de Agostinho da Silva (Silva 1988, 124) -.já havia promulgado em Portugal um Catálogo de Livros Proibidos , em 1547, seguido de um novo índice expurgatório intitulado Este he o Rol dos Livros Defesos por o Cardeal lffante lnquisidor Geral nestes Reynos de Portugal , impresso em 1551. Sucederam-se-lhes outros índices e catálogos de livros proibidos em 1559, 1561, 1564, 1581, 1597 e 1624. Este de 1624, intitulado lndex Auctorum damnatae memoriae, tum etiam Librorum qui vel simpliciter vel ad expurgationem usque prohibentur, vel denique iam expurgati permittuntur é um volume de grande formato com 1048 páginas, e foi o último a ser impresso em Portugal, antes do pombalino catálogo da Real Mesa Censórea, de 1768. Consolemo-nos com a duvidosa glória de ter sido um português, o dominicano Fr. Francisco Foreiro (1523-1581), o especialista encarregado por Paulo IV, no último ano do seu pontificado (1559), para a elaboração (entre outras tarefas) dum novo lndex Librorum Prohibitorum de acordo com as doutrinas conciliares, atendendo sobretudo aos grandes conhecimentos do teólogo português na redacção do índice de livros proibidos. Francisco Foreiro compôs um prefácio doutrinário ao novo lndex (que seria publicado em 1564, já sob o pontificado de Pio IV) onde apresenta e desenvolve as famosas «dez regras» de exame e censura de livros que passaram a constituir legislação permanente da Igreja (Gomes 1993, 74-75).
Acrescente-se, parenteticamente, que a influência perniciosa de Francisco Foreiro transcendeu largamente o âmbito religioso para se projectar na formação duma mentalidade sócio-cultural: «A Censura inquisitorial, baseada nos preceitos de Francisco Foreiro, tem sido mais julgada segundo o critério político - cerceamento do direito de liberdade de expressão - do que segundo o critério científico. [...] Ora, o que na verdade Francisco Foreiro inventa, mas enquadrada numa preceitualidade proibitória, é a epistemologia da crítica literária de garantia científica. No seu discurso ao Concílio, o que ele apresenta é um tratado sumário da arte de ler, de entender, e de ajuizar sobre o livro. [. ..] O método crítico de Francisco Foreiro originará uma tradição de crítica literário-doutrinal, como essa que incarna nas chamadas censuras da lnquisição. O censor apresenta a obra, descreve a sua composição, analisa as suas ideias, comenta a sua qualidade, avalia do seu valor e rectitude e, por fim, exara o juizo. Nós temos prestado nula atenção a este teor científico, esmagados que estamos pelo preconceito derivado da paixão. Todavia, há lugar para suscitarmos esta dúvida: - qual o contributo da censura inquisitorial para o surgimento da crítica literária?» (Gomes 1993, 77-78).
A resposta a esta pergunta do fecundo investigador e pensador Pinharanda Gomes é, desgraçadamente, óbvia: mais de 200 anos de pareceres censóreos apostos aos livros, segundo as normas de Foreiro, geraram em Portugal um «tipo» de crítica literária (e mais tarde cinematográfica...) que segue a mesma metodologia sem se dar conta dessa «herança genética», e aproveita sobretudo os seus defeitos, com umas pinceladas de (mau) estruturalismo a partir dos anos 60 do século XX, esquecendo-lhe as eventuais virtudes. Basta comparar as críticas literárias (e cinematográficas) que se fazem por cá, com as críticas muito mais correctamente territorializadas, mais epistémicas e empáticas que podemos ler no periodismo de países que não sofreram a influência do luso dominicano.
Retomando o fio à nossa meada, anotemos que um bom número de autores se tem debruçado sobre o curioso facto de a tradição hermesista portuguesa - com Foreiro ou sem Foreiro... - possuir características bem próprias que a distinguem das correntes contemporâneas europeias. Basta consultar as obras, os estudos ou os rasgos de luz, ainda que por vezes extremados e assaz díspares nas suas manifestações, de Sampaio Bruno, Almada-Negreiros, Fernando Pessoa, Teixeira de Pascoaes, António Telmo, Natália Correia, António Quadros, Afonso Botelho, António Barz Teixeira, Dalila Pereira da Costa, José Manuel Anes, Manuel J. Gandra, Lima de Freitas, António Cândido Franco, Yvette K. Centeno, Pinharanda Gomes, Gilbert Durand, Rainer Daehnhardt, Pedro Teixeira da Mota, Paulo Alexandre Loução, S. Franclim..., entre outros exemplos possíveis. |