A lareira sob a chaminé de pedra, em casa de Gil Rodrigues, está acesa, como sempre, e de chamas bem vivas.
É um dia escuro, que justifica algumas candeias e tochas
igualmente acesas.
As retortas, os vidros, os almofarizes, os balões, os
alambiques... em toda a extensão do laboratório alquímico
mal se vêem, recobertos sob longos panos de gaze, ou tule,
leves e semitransparentes, que dão um ar fantasmagórico e
translúcido a toda aquela parafernália de metais baços e vidrarias.
Através dos vitrais coloridos, na enorme parede, coa-se
uma luz triste e poeirenta, que amortece as cores dos painéis.
Jusino está sentado no chão, de pernas cruzadas e de
costas para um vitral cuja luz indecisa o envolve difusamente.
Tem no colo um cesto de vime em meio-fabrico, que
vai entrançando com escrupulosa aplicação.
Um monge dominicano de hábito negro acaba de se
sentar num banco, à mesa.
Gil Rodrigues, sentado em frente do monge, exibe um
ar macilento e desleixado: barba descuidada. rosto cavado
de olheiras, cabelo crespo e roupa enxovalhada.
O dominicano - irmão Leonardo - não é nenhum
dos que se haviam apresentado antes naquela casa.
A mesa está repleta de grandes rolos de pergaminho,
vários deles abertos, com desenhos complicados e anotações escritas.
O irmão Leonardo soergue-se um pouco e inclina-se
sobre a mesa, indicando um deles: Talvez este mecanismo seja melhor? ...Que vos
parece, senhor D. Gil?
Gil, distraído, diz:
-- Não faço ideia.
-- Mas vós sois médico! ...Se não, não me teria dado
ao trabalho de vir até aqui.
Gil condescende:
-- Que quereis que vos diga? Que um corpo içado nessa máquina ficaria com os ossos dos braços desconjuntados, e com as omoplatas e as clavículas deslocadas de
forma irreversível? Que as deformações provocadas por
estes pesos - aponta o desenho -, além da horrível agonia, desarticulariam o esqueleto e a morte acabaria por
sobrevir ao fim de poucas horas?
O dominicano franze o sobrolho:
-- Pelo vosso tom, não me pareceis muito aprovador.
Gil Rodrigues encolhe os ombros, desinteressado. Olha
para um dos vitrais que fica à direita de Jusino.
Enquadrada na luz misteriosa do vitral, vê-se Idouane
de Montalban, de pé junto duma trípode com um pote de
flores brancas, que acaricia. Traz vestida uma túnica diáfana, muito clara e luminosa, de corte semelhante à túnica de estamenha que usava antes; vem sem capuz, os longos cabelos claros reflectem
a luz à volta da cabeça como uma auréola.
Gil limita-se a comentar:
-- Ainda não consegui entender se a intenção é apenas
causar sofrimento, e morte, ou espevitar a memória, sem
danos, para que as vítimas confessem os seus crimes e denunciem os cúmplices.
-- Bom... É natural que alguns danos se verifiquem...
Embora, nesta fase do processo, não seja aconselhável que
sobrevenha a morte! -- entusiasmando-se: -- Reparai, tudo
isto é resultado duma ideia que me iluminou depois de ter
assistido a muitos interrogatórios de hereges, bruxas e cismáticos.
Gil faz um aceno grave de cabeça:
-- Também assisti, o Inquisidor apostólico esteve aqui
em casa a iniciar um processo desses, e nunca se falou em
aplicar a tortura fosse em que circunstância fosse.
-- Ah! Estais a referir-vos ao processo dessa herética
relapsa, Idouane de Montalban, princesa dos cátaros e filha do demónio!
Gil não responde.
Em fundo, Idouane olha para ele com uma expressão
grave, de grande tristeza.
O irmão Leonardo prossegue:
-- Foi queimada viva e reduzida a cinzas na praça do
mosteiro de Sainte-Madeleine, à beira do Sena. Todo o
povo assistiu, e toda a corte. O próprio rei de França, e a
rainha, não deixaram de comparecer. Já há muito tempo
que eu não assistia a um cortejo real tão magnífico.
Cala-se por um momento e acaricia os pergaminhos,
sonhador. Depois prossegue:
-- Um belo espectáculo! Uma mulher do povo, rodeada de filhos péquenos, gritou: «Vede, sete demónios à roda
dela, à espera que a alma se lhe solte, para lha levarem para as chamas do inferno!» Atiravam-lhe pedras enquanto
ardia, via-se mesmo que as contorções do corpo eram espasmos próprios da ruindade diabólica, o cheiro a carne
queimada subia até meio do rio, o vento estava pouco forte, mesmo na conta, não atiçava muito a fogueira, levou
duas horas e meia a morrer.
Gil levanta-se do banco com dificuldade e vai até à lareira, como se tremesse de frio.
Jusino interrompe o trabalho na cesta de vime e diz-lhe:
-- Quereis que vos prepare a merenda, senhor meu
amo?
Gil aprova com um movimento trémulo de cabeça:
-- Sim, sim... Traz-nos vinho, Jusino. Basta que nos
tragas vinho... - aponta para o dominicano -, a mim e
ao irmão Leonardo. Acho que temos de celebrar qualquer
coisa, embora não me lembre bem de quê.
Jusino põe a cesta de parte, levanta-se e vai buscar um
canjirão cheio de vinho e dois canecos de madeira.
Coloca-os em cima da mesa, num pequeno espaço livre entre os pergaminhos.
Depois, retira o saltério dum armário e senta-se no chão
com o instrumento sobre um tampo baixo, e toca uma melodia triste.
Idouane aproxima-se de Gil e detém-se muito perto
dele.
Gil olha-a e baixa a cabeça, sem nada dizer.
Idouane permanece em silêncio, a contemplá-lo, e tem
um sorriso luminoso como uma mãe a olhar para um filho
pequenino.
Gil afasta-se dela e vai até à mesa. Enche um dos copos e bebe uns goles.
O irmão Leonardo faz o mesmo; depois pousa o copo
e comenta:
- Dizeis que a tortura não tem sido precisa para os
interrogatórios. Decerto. O santo oficio da Inquisição ainda não foi oficializado pelo Papa: o seu iniciador, o bem-aventurado Frei Domingos de Gusmão, morreu há pouco
tempo, ainda há que ajustar muita coisa para a salvação
das almas e para a extirpação das heresias.
-- Quantas vezes os réus estão inocentes e são vítimas
de vinganças pessoais, e denúncias falsas!
O outro entusiasma-se:
-- Ora aí está! É por isso que estas máquinas e estes
instrumentos que concebi serão preciosos auxiliares para
se descobrir a verdade!
Inclina-se sobre a mesa e aponta para alguns dos desenhos nos pergaminhos:
-- Não tenho dúvidas que assim que eu entregar estes
inventos irresistíveis ao Legado pontificio, o Papa aprovará
encantado este novo método, que tem a vantagem de evitar as incertezas e acelerar toda a instrução dos processos!
Ergue-se do banco, debruça-se sobre a mesa e mostra
a Gil um dos projectos:
-- Atentai neste - aponta com o dedo os contornos do
desenho: - O acusado é deitado de costas, despido, nesta
mesa com roldanas cheias de pontas de ferro, e os braços
e as pernas, esticados, são presos neste cabrestante, que ao
ser accionado, vai estirando os membros e rasgando as carnes. Se a vítima confessa, suspende-se o trato; se se obstina, prossegue-se até ao desmembramento! ...Mas há mais!
Gil desvia o olhar para a lareira, cansado, enquanto diz:
- Com isso só conseguireis que se salvem os mais
fortes e empedernidos. Os mais débeis, ainda que inocentes, tudo confessarão só para se livrarem... Achais justo?
[...]