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ANTÓNIO
DE MACEDO
As Furtivas
Pegadas da Serpente

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

ANTÓNIO DE MACEDO
As Furtivas Pegadas
da Serpente
Editorial Caminho
Lisboa, 2004

Extracto da Cena 10: António de Macedo
 

A lareira sob a chaminé de pedra, em casa de Gil Rodrigues, está acesa, como sempre, e de chamas bem vivas. É um dia escuro, que justifica algumas candeias e tochas igualmente acesas.

As retortas, os vidros, os almofarizes, os balões, os alambiques... em toda a extensão do laboratório alquímico mal se vêem, recobertos sob longos panos de gaze, ou tule, leves e semitransparentes, que dão um ar fantasmagórico e translúcido a toda aquela parafernália de metais baços e vidrarias.

Através dos vitrais coloridos, na enorme parede, coa-se uma luz triste e poeirenta, que amortece as cores dos painéis.

Jusino está sentado no chão, de pernas cruzadas e de costas para um vitral cuja luz indecisa o envolve difusamente. Tem no colo um cesto de vime em meio-fabrico, que vai entrançando com escrupulosa aplicação. Um monge dominicano de hábito negro acaba de se sentar num banco, à mesa.

Gil Rodrigues, sentado em frente do monge, exibe um ar macilento e desleixado: barba descuidada. rosto cavado de olheiras, cabelo crespo e roupa enxovalhada. O dominicano - irmão Leonardo - não é nenhum dos que se haviam apresentado antes naquela casa.

A mesa está repleta de grandes rolos de pergaminho, vários deles abertos, com desenhos complicados e anotações escritas.

O irmão Leonardo soergue-se um pouco e inclina-se sobre a mesa, indicando um deles: Talvez este mecanismo seja melhor? ...Que vos parece, senhor D. Gil?

Gil, distraído, diz:
-- Não faço ideia.
-- Mas vós sois médico! ...Se não, não me teria dado ao trabalho de vir até aqui.

Gil condescende:
-- Que quereis que vos diga? Que um corpo içado nessa máquina ficaria com os ossos dos braços desconjuntados, e com as omoplatas e as clavículas deslocadas de forma irreversível? Que as deformações provocadas por estes pesos - aponta o desenho -, além da horrível agonia, desarticulariam o esqueleto e a morte acabaria por sobrevir ao fim de poucas horas?

O dominicano franze o sobrolho:
-- Pelo vosso tom, não me pareceis muito aprovador.

Gil Rodrigues encolhe os ombros, desinteressado. Olha para um dos vitrais que fica à direita de Jusino. Enquadrada na luz misteriosa do vitral, vê-se Idouane de Montalban, de pé junto duma trípode com um pote de flores brancas, que acaricia. Traz vestida uma túnica diáfana, muito clara e luminosa, de corte semelhante à túnica de estamenha que usava antes; vem sem capuz, os longos cabelos claros reflectem a luz à volta da cabeça como uma auréola.

Gil limita-se a comentar:

-- Ainda não consegui entender se a intenção é apenas causar sofrimento, e morte, ou espevitar a memória, sem danos, para que as vítimas confessem os seus crimes e denunciem os cúmplices.

-- Bom... É natural que alguns danos se verifiquem... Embora, nesta fase do processo, não seja aconselhável que sobrevenha a morte! -- entusiasmando-se: -- Reparai, tudo isto é resultado duma ideia que me iluminou depois de ter assistido a muitos interrogatórios de hereges, bruxas e cismáticos.

Gil faz um aceno grave de cabeça: -- Também assisti, o Inquisidor apostólico esteve aqui em casa a iniciar um processo desses, e nunca se falou em aplicar a tortura fosse em que circunstância fosse.

-- Ah! Estais a referir-vos ao processo dessa herética relapsa, Idouane de Montalban, princesa dos cátaros e filha do demónio!

Gil não responde. Em fundo, Idouane olha para ele com uma expressão grave, de grande tristeza.

O irmão Leonardo prossegue:

-- Foi queimada viva e reduzida a cinzas na praça do mosteiro de Sainte-Madeleine, à beira do Sena. Todo o povo assistiu, e toda a corte. O próprio rei de França, e a rainha, não deixaram de comparecer. Já há muito tempo que eu não assistia a um cortejo real tão magnífico.

Cala-se por um momento e acaricia os pergaminhos, sonhador. Depois prossegue:

-- Um belo espectáculo! Uma mulher do povo, rodeada de filhos péquenos, gritou: «Vede, sete demónios à roda dela, à espera que a alma se lhe solte, para lha levarem para as chamas do inferno!» Atiravam-lhe pedras enquanto ardia, via-se mesmo que as contorções do corpo eram espasmos próprios da ruindade diabólica, o cheiro a carne queimada subia até meio do rio, o vento estava pouco forte, mesmo na conta, não atiçava muito a fogueira, levou duas horas e meia a morrer.

Gil levanta-se do banco com dificuldade e vai até à lareira, como se tremesse de frio.

Jusino interrompe o trabalho na cesta de vime e diz-lhe:

-- Quereis que vos prepare a merenda, senhor meu amo?

Gil aprova com um movimento trémulo de cabeça:

-- Sim, sim... Traz-nos vinho, Jusino. Basta que nos tragas vinho... - aponta para o dominicano -, a mim e ao irmão Leonardo. Acho que temos de celebrar qualquer coisa, embora não me lembre bem de quê.

Jusino põe a cesta de parte, levanta-se e vai buscar um canjirão cheio de vinho e dois canecos de madeira. Coloca-os em cima da mesa, num pequeno espaço livre entre os pergaminhos.

Depois, retira o saltério dum armário e senta-se no chão com o instrumento sobre um tampo baixo, e toca uma melodia triste. Idouane aproxima-se de Gil e detém-se muito perto dele. Gil olha-a e baixa a cabeça, sem nada dizer.

Idouane permanece em silêncio, a contemplá-lo, e tem um sorriso luminoso como uma mãe a olhar para um filho pequenino.

Gil afasta-se dela e vai até à mesa. Enche um dos copos e bebe uns goles.
O irmão Leonardo faz o mesmo; depois pousa o copo e comenta:

- Dizeis que a tortura não tem sido precisa para os interrogatórios. Decerto. O santo oficio da Inquisição ainda não foi oficializado pelo Papa: o seu iniciador, o bem-aventurado Frei Domingos de Gusmão, morreu há pouco tempo, ainda há que ajustar muita coisa para a salvação das almas e para a extirpação das heresias.

-- Quantas vezes os réus estão inocentes e são vítimas de vinganças pessoais, e denúncias falsas!

O outro entusiasma-se:

-- Ora aí está! É por isso que estas máquinas e estes instrumentos que concebi serão preciosos auxiliares para se descobrir a verdade!

Inclina-se sobre a mesa e aponta para alguns dos desenhos nos pergaminhos:

-- Não tenho dúvidas que assim que eu entregar estes inventos irresistíveis ao Legado pontificio, o Papa aprovará encantado este novo método, que tem a vantagem de evitar as incertezas e acelerar toda a instrução dos processos!

Ergue-se do banco, debruça-se sobre a mesa e mostra a Gil um dos projectos:

-- Atentai neste - aponta com o dedo os contornos do desenho: - O acusado é deitado de costas, despido, nesta mesa com roldanas cheias de pontas de ferro, e os braços e as pernas, esticados, são presos neste cabrestante, que ao ser accionado, vai estirando os membros e rasgando as carnes. Se a vítima confessa, suspende-se o trato; se se obstina, prossegue-se até ao desmembramento! ...Mas há mais! Gil desvia o olhar para a lareira, cansado, enquanto diz: - Com isso só conseguireis que se salvem os mais fortes e empedernidos. Os mais débeis, ainda que inocentes, tudo confessarão só para se livrarem... Achais justo?
[...]

 

Para uma bibliografia egidiana