Na primeira semana de dezembro de 2004, todos os órgãos noticiosos do Brasil (jornais, revistas, emissoras de televisão, sites e portais da web) transmitiram a notícia feliz: o acarajé da Bahia foi tombado como patrimônio cultural.
Antes de continuar, é melhor saudar o senhor dos caminhos, pois foram difíceis as trilhas da cultura negra para chegar a tal consagração: Laroiê, Exu! Laroiê, Exu Taquifunã!
Trata-se mesmo de consagração, levando-se em conta que os negros foram trazidos da África para serem escravizados no Brasil, e que sua cultura foi vista como inferior, tendo sido proibida em suas manifestações.
Na cidade da Bahia, o jornal A Tarde (Salvador, 1 dez. 2004), como é de preceito, deu a notícia, aqui transcrita livremente: “Na quarta-feira, 1º, pela manhã, em Salvador o Presidente Lula e o ministro Gil, da Cultura, oficializam o tombamento pelo Iphan do acarajé da Bahia, além do terreiro de Alaketu (Ilê Maroiá Láji) (...) Segundo o Minc, o acarajé - bolo de feijão fradinho frito no azeite de dendê - está sendo tombado porque representa ‘um dos saberes e fazeres mais tradicionais da identidade cultural da Bahia e do Brasil’". Na mesma ocasião, foi tombada a viola-de-cocho mato-grossense. O acarajé e a viola passaram para o Livro dos Saberes, como patrimônio imaterial do Brasil.
Também o Ilê Axé Maroiá Láji passou a integrar o patrimônio histórico nacional. Nesse terreiro, onde se celebra uma das belas festas em homenagem a Exu (padroeiro da cidade da Bahia – Laroiê, Exu!), a soberana é mãe Olga de Alaketu, descendente de uma princesa africana, uma das responsáveis pela introdução do culto aos Orixás no Brasil.
Olga de Alaketu, juntamente com mãe Estela de Oxóssi, do Ilê Axé Opó Afonjá, e ao lado de outros, como mãe Maria, do Ilê Axé Opó Tajenã, como Balbino Daniel de Paula, do Ilê Axé Opó Aganju, casa que presta homenagem a Tempo - Irôco (sem nos esquecermos do compromisso da majestosa mãe Menininha do Gantois, filha de Oxum e já passada para o Orun, o reino dos mortos), tem sabido lutar pelas tradições negras na Bahia.
Embarcados nos negreiros, os africanos trouxeram uma bagagem imaterial que não podia ser atingida pelos capatazes: seus deuses e costumes. Distribuídos pelas fazendas e casas-grandes, servindo no eito, no serviço de casa e/ou na cama/rede do senhor, separados de seus parentes e entes queridos no mercado de peças, os negros souberam, graças à oralidade, conservar e transmitir às novas gerações seus saberes. A diáspora defendeu a identidade.
Ainda que não fossem uma unidade política, os escravos negros, no Brasil, identificavam-se por uma origem comum: a cidade de Ifé. Oriundos de diferentes regiões, tinham a mesma tradição e, principalmente uma mesma língua: depois chamada yorubá. Eles são chamados nagôs. E é na identidade daqueles que se originam de Ifé que se encontra o candomblé da Bahia.
Nem todos os trazidos para a escravidão cultivavam os mesmos deuses. No encontro das diferentes regiões de origem, no ambiente hostil aqui vivenciado, souberam encontrar as semelhanças e respeitar as diferenças de culto. Donde a roda dos Orixás conhecida na Bahia.
Sábios, os mais velhos logo descobriram que podiam traçar semelhanças com os mitos e/ou as grandes figuras do cristianismo e encontraram os caminhos de aproximação, de modo que pudessem fazer coincidir suas celebrações com as festas do escravocrata católico. Dançavam para Yansã chegar e falavam em Santa Bárbara; faziam festa para Oxóssi e diziam celebrar São Jorge ou São Sebastião; comemoravam Yemanjá e garantiam celebrar Nossa Senhora da Conceição. Esse foi o mecanismo para salvar o culto primitivo africano e que terminou sendo traduzido por “sincretismo religioso”.
Todavia, qualquer inteligência, minimamente esclarecida, sabe que imaginar Santana habitando os pântanos e as águas paradas é muito difícil; esses são os domínios de Nanã, que já era conhecida antes de Santana nascer. Também não se pode esquecer que Yemanjá é muito mais velha do que Nossa Senhora (sob qualquer das denominações), que tem apenas 2 mil e poucos anos. E se tem certeza de que Yansã viveu bem antes de os mártires cristãos serem entregues aos leões.
O colonizador não fez tais raciocínios (felizmente), e os Orixás puderam ser festejados na senzala.
Hoje, seus costumes, os nomes de suas cidades, como Ifé, ou de seus reinos, como Daomé e Oyó (onde nasceu Xangô), soam como mágicos. Apesar de todas as dificuldades, a lembrança da África, de onde foram arrancados, e suas verdades míticas e históricas, foram passadas para a descendência.
A memória negra é vida e tem cheiro, cor e sabor: acarajé – comida de Xangô e de sua primeira esposa, Yansã, agora, nosso patrimônio cultural.
Axé!
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