Risoleta Pinto Pedro
O TRABALHO DE DEPURAÇÃO DA ESCRITA/REESCRITA,
EM FINISTERRA, DE CARLOS DE OLIVEIRA

ÍNDICE:

I- INTRODUÇÃO

II- O CORPUS

III- METODOLOGIA

IV- COMENTÁRIO/ANÁLISE DOS EXCERTOS

V- CONCLUSÕES

VI- BIBLIOGRAFIA

VII- COMENTÁRIO À BIBLIOGRAFIA

IV - COMENTÁRIOS
(ANÁLISE DOS EXCERTOS)

Optei, nesta tentativa de análise, pelo conceito de autor, em detrimento de outras opções técnicas em termos de nomenclatura, porque é exactamente do trabalho do autor que me vou ocupar, tentando (e só isso) entendê-lo; o que, como se verá, vai revelar-se impossível. Mas nestas como noutras coisas, os processos são mais importantes que os fins, e assim justifico para mim própria este trabalho. As afirmações que faço, passam muito, obviamente, pela especulação, obrigatoriamente subjectiva, e como tal as assumo. É a tentação de alguém enamorada da escrita, que procura na escrita alheia o espelho da sua paixão.

Passo agora à análise dos excertos:

1º- O autor limita-se a eliminar três interrogações "( barro? ocre? ouro a diluir-se? )", e assim dá o tom do que vai ser a tónica de aperfeiçoamento do texto: a supressão. É talvez curioso verificar que já na 1ª edição, estas interrogações (correspondendo aliás a um final de período), se encontravam entre parêntesis, como que a assinalar a sua acessoriedade (a preparar-nos para a futura eliminação?).

2º- Substitui duas vírgulas por dois pontos e vírgula, e a expressão "aérea e turva (apesar da luz)", é substituída por "apenas um reflexo turvo de luz".

Se na primeira versão, "apesar de" exprime uma possibilidade de conflito entre "luz" e (pelo menos) o adjectivo "turva", no 2º caso, o "apenas" vem, pelo contrário, resolver o conflito, como se o "turvo" fosse uma consequência lógica de "luz" (a luz deixando um reflexo turvo).

Também a conjunção "e" vai ser substituída por outra: "ou".

O "e", (reforçado por sucessivas vírgulas), junta, acumula.

O "ou", (reforçado por um ponto e vírgula), separa, divide, escolhe.

Parece pois, que neste caso, temos, não um ajuste, um "aperfeiçoamento", mas um olhar sobre a realidade que se apresenta ao contrário do anterior. Este rever tão diferente, está apesar de tudo legitimado pelo "Ao fundo, uma nesga de azul pode parecer ao mesmo tempo céu e mar"; o cenário é tão distante, e por isso tão vago, que permite duas visões quase diametralmente opostas.

3º- Neste caso, limita-se, mais uma vez, a suprimir. Desaparece "espectral", como redundância. O fósforo basta, para sugerir o espectro.

4º- Mais uma vez, a preocupação do rigor, imagem de marca deste autor, vai, bastante paradoxalmente, dar pinceladas no indeciso, no vago. Esta indecisão aparente que transporta o "talvez", é de certo modo suavizada e ao mesmo tempo reforçada pela associação com "um". Suavizada, porque o que lhe cedera o lugar era ainda mais vago, "esboço de nuvens". Só.

"Talvez" não vem mais que sancionar, ainda pela síntese, a indecisão do "azul que vacila entre a água e a luz", que retira, substituindo-o.

5º- Como no primeiro caso, a expressão entre parêntesis, desta vez explicitamente premonitórios, que a vão apertar até ao não ser. O destino estava já visível na disjuntiva "ou".

6º- Novamente o "talvez" (já anteriormente utilizado para economizar indecisões), agora substituindo a copulativa e a vírgula. Retirou o possessivo "seu", de que qualquer autor, até o menos contido, foge, como o diabo da cruz (como lhe escapara, este?), e substitui três palavras, por uma única: "projecção". Continuamos com a preocupação do rigor, o qual não é no entanto incompatível com a expressão da dúvida ou da indecisão: onde se lia "e, agora, mais intenso", passa a estar "talvez mais intenso"

7º- É eliminado o segmento "água mansa", sendo substituído por "apenas uma sombra mais clara". "Apenas" já aparecera no segundo exemplo analisado, associado a luz; aqui, surge associado a sombra, os dois lados de uma mesma realidade. Há uma tentativa de equiparação de "água mansa" a "sombra...clara", sendo "clara" o equivalente a "mansa", funcionando aqui um equilíbrio simétrico perfeito, em que a água é clara e a sombra amansa.

A sombra amansando o claro com que se vão indefinindo as incertezas da realidade inenarrável. E contudo...

8º- Este exemplo surpreendeu-me. Surpreende-me, ainda não refeita da surpresa.

"Sonho", com tudo o que guarda de misterioso, nebuloso, negro, é preterido, a favor do outro lado de uma possível ambivalência, o lado mais previsível: "espírito". A "carne e sonho", o autor prefere "carne e espírito". Aqui, ia eu dizer, nada se omite, o que é retirado é substituído, igual por igual. Pura ilusão. De repente, tudo se aclara. Mais uma vez, o rigor, a contenção. O sonho ocupava, com as suas cinco letras, mais espaço, diria, infinitamente mais espaço, que as sóbrias quatro sílabas da palavra espírito. Com todo o cortejo negro do que é nebuloso, obscuro, misterioso e alheio à vontade, desaparece o sonho, para dar lugar ao espírito. "Espírito", mais conforme com o "grande velho", o sábio, deixados os sonhos para trás, o espírito finalmente domado, "apurada" a "herança invisível".

9º- "Fulgor" fora antes preterido por "projecção", e agora vai mais uma vez ceder o lugar; a "claridade". Todos, sem dúvida, símbolos de luz, mas o "fulgor latente", apenas uma possibilidade, a não-certeza, transforma-se em claridade, de acordo com o que mais à frente a confirma: "define-o um vinco de mercúrio, cada vez mais vivo". É mais uma vez o rigor, que não se compadece com certo tipo, e reafirmo, certo tipo, de inexactidões. Se é definido, ("define-o"), não pode ser latente. A dar crédito ao dicionário (fulgor: brilho intenso e instantâneo; clarão; esplendor; luzeiro), nem sequer poderia ser fulgor. Se é definido "cada vez mais", não pode realmente ser fulgor. Este é intenso, e... instantâneo.

Por sua vez, ainda neste excerto, a "profundidade" deixa de o ser, passa a ser "altura", concordamos que mais conforme com o "recorte dos cumes".

Continuando a analisar esta parte do texto, encontramos pela 3ª vez modificações envolvendo a palavra "apenas", mas agora para dela nos despedirmos, pois vai ser substituída por "no entanto", o qual irá relacionar-se com "a distância", que por sua vez substitui a "poalha trémula do horizonte". Trata-se quase de um choque de substituições em cadeia, onde é difícil saber o que provocou o quê. "Horizonte" passa a figurar entre parêntesis (estes, sempre, do princípio ao fim, os convidados de honra, em qualquer momento, sem a menor cerimónia, dispensados), a seguir a "mercúrio", como uma explicação quase sinonímica.

10º- "Oscilam entre a penumbra e a sombra". Os cristais. Quase mortos.

A oscilação retirada, resta apenas "Mais uma razão para" usar o sal. Óbvia. Como não?

11º- Preocupação com a sonoridade do texto a preferir aqui "relâmpago" em vez de "revérbero"? Preocupação com o sentido? Parece-me ser mais uma questão de ritmo e sonoridades (não esquecer que estamos na presença de uma narrativa poética, se me é permitida a expressão). Excesso de rr? Sê-lo-ia, sem dúvida, o "revérbero de carbureto".

12º- Continuando o mesmo raciocínio não se torna difícil entender a substituição de "as achas" por "a lenha", bem mais atraente, do ponto de vista fónico.

O escritor elimina o final de frase "que se desfazem num hálito gelado"; saturado de descrição. A economia da narrativa.

13º- O adjectivo que se metamorfoseia em advérbio, que deixa de se relacionar com os "murmúrios" e os "elos" e passa a referir-se claramente, à "partitura".

A atmosfera deixa de ser opaca. Dispensa-se mais uma vez o que não é essencial.

14º- Talvez como a cinza fumegante se extingue em silêncio, também "o fulgor e o fogo que foi" é irremediavelmente extinto, instantâneos como são todos os fulgores.

15º- Novamente o "sonho" sofre a transmutação alquímica em "espírito"; por sua vez, "espírito" não pode repetir-se. Logo, a "herança espiritual" da casa torna-se uma "herança invisível".

16º- "Sonho", pela terceira vez abolido, talvez pelo excesso de divagação que permite. A indefinição fica salvaguardada pelo " (seja como for)". Indefinição na expressão, e na presença do parêntesis.

17º- Verdadeira alquimia, a do "hálito prateado do ouro", que se transforma na "aura ruiva do sal". Aparentemente, uma alquimia ao contrário, mas de um verdadeiro processo de espiritualização se trata (O "hálito" que se transforma em "aura"), pelo paradoxo (o ouro que se transforma em sal). Paradoxo também pela "aura ruiva" de que o sal se reveste, como o ouro se revestira antes de um "hálito prateado".

A tensão dos contrastes, pela tripla relação de "sal" com "ruivo"

de "ouro" com "prateado"

do "ouro" pelo "sal"

Mais abaixo, onde o "quase" corria o risco de anular o "embora", onde apetecia um "apesar de", opta por suprimir "quase", e substituir "brique por "cor de tijolo".

18º- Ainda o "ouro" a transformar-se em sal no tal percurso alquímico aparentemente ao contrário, percurso que se completa agora pela junção do "sal, ouro e prata misturados". É a reunião dos elementos, "ouro e prata misturados", de aura igual à do sal. A harmonia, pelas auras.

19- As "nuances" são substituídas por "formas". Mantêm-se as "tonalidades": "reter (fixar) as formas, as tonalidades". Ainda um exercício de rigor, se bem que continue a ser o rigor da definição do vago: "pouco a pouco".

20º- "A tonalidade brique" passa a ser "o ar cor de tijolo".

"Tonalidade" transforma-se em "ar", e "brique" passa a ser definido como "cor de tijolo", como aliás já acontecera antes.

Difícil será dizer se foi a alteração de "tonalidade" para "ar" que obrigou a que "brique" passasse a ser "cor de tijolo", se o contrário. Sem dúvida que no conjunto estético que forma esta obra, a dupla "ar brique" estaria deslocada. Deslocado também seria, pelo excesso de denotação, a "tonalidade cor de tijolo". Seja como for, continuamos a vaguear pelo rigor do indefinido, ou pela indefinição do rigor, e a substituição de "tonalidade" por "ar" bem o atesta. "...determinar/ com exactidão/ o foco/ do silêncio..."

21º- "Translúcida" como atributo de porcelana cede lugar a "frágil", numa relação de causalidade perfeita, com algo que vem um pouco mais à frente: "quando lhe tocarem, esmigalha-se".