RICARDO DAUNT

Sobre algumas raízes profundas do
Movimento do Orpheu

18. Saudosismo

Em "A nova poesia portuguesa no seu aspecto psicológico", Pessoa teceu comentários acerca da poesia dos poetas correliginários de Pascoais, encontrando nela características muito especiais. Chegou mesmo a entender a religiosidade expressa nessa poesia como " uma religiosidade nova , que não se parece com a de nenhuma outra poesia" (1). Seu arcabouço espiritual deriva de uma ideação vaga, sutil e complexa. A ideação vaga é a que tem o que é vago ou indefinido por seu objeto; sutil é a ideação que traduz uma sensação simples por outra sensação que a intensifica sem a alargar; complexa é a ideação "que traduz uma impressão ou sensação simples por uma expressão que a complica acrescentando-lhe um elemento explicativo" que lhe dá novo sentido.

A expressão sutil intensifica, torna mais nítido; a expressão completa dilata , torna maior. A ideação sutil envolve ou uma direta intelectualização de uma idéia ou uma direta emocionalização da emoção: daí o ficarem mais nítidas, a idéia por mais idéia, a emoção por mais emoção. A ideação complexa supõe sempre ou uma intelectualização de uma emoção, ou uma emocionalização de uma idéia: é desta heterogeneidade que a complexidade lhe vem (em itálico no original)(2).

A nova poesia portuguesa, a par o fato de se ocupar com o espírito, com a alma, é também uma poesia ocupada com a natureza, nela encontrando inspiração. "Por isso [...] que ela é também uma poesia objetiva" (3). Em outras palavras, é objetiva por força de apresentar três características: nitidez ("revelada na forma ideativa do epigrama "), plasticidade ("fixação expressiva do visto ou ouvido com exterior ") -- como por exemplo a poesia grega e romana, a de Hugo, e a de Cesário Verde; a terceira característica dessa poesia é a imaginação (no "sentido de pensar e sentir por imagens"), gerando "rapidez" e "deslumbramento". Adverte, no entanto, que esse deslumbramento, em alto grau, quando não surge consorciado com "elemento de pura espiritualidade" acaba deixando o que considera ser "uma inquietante impressão de grandeza oca". Como exemplo disso, cita Hugo -- que a alguns, em vista disso, dá "uma impressão de máxima grandeza e a outros de uma oca grandiosidade".

Na poesia portuguesa esse grau máximo de objetividade ainda não teve lugar; "prova-o ao ouvido o seu movimento geralmente lento, quando a imaginação imprime sempre ao verso uma rapidez inignorável [ sic ]"(4).

É famosa a seqüência em que Pessoa vislumbra em futuro próximo o surgimento do grande poeta, o Super-Camões, que irá concretizar uma poesia com o "máximo equilíbrio da subjetividade e da objetividade" (5). Será uma poesia metafísica, imaginativa, diz ele, "uma poesia subjetiva e objetiva, poesia de alma e de natureza", voltada para a manutenção de uma aparente contradição, qual seja, a espiritualização da matéria, lado a lado com a materialização do espírito (6).

Não seria oportuno rever alguns conceitos, aqui assinalados, acerca da poesia denominada metafísica?

 

(1) PESSOA, Fernando -- "A nova poesia portuguesa no seu aspecto psicológico". Em sua: Obras em prosa. Org., introd. e notas de Cleonice Berardinelli. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1993 (Biblioteca Luso-Brasileira; série portuguesa), passim .

(2) Cf. Ibid ., p. 382-3.

(3) Cf. loc. cit.

(4) Cf. ibid ., p. 384-5.

(5) Cf. ibid. , p. 386, et passim.

(6) Cf. loc. cit.