RICARDO DAUNT

Sobre algumas raízes profundas do
Movimento do Orpheu

19. Engenho metafísico

O engenho metafísico é mais intelectual que verbal, e deriva de uma mistura peculiar de paixão, pensamento, sensibilidade e raciocínio (ressalta Grierson). Busca aprofundar e alargar o campo da experiência, tratando temas como o amor de maneira pouco convencional (sobretudo se examinamos a produção de Donne e da maioria dos poetas elizabetanos), em que a fúria e a fascinação andam juntas; a poesia metafísica serve-se de ritmos capazes de expressar a complexidade e completitude da mente, os fluxos e refluxos do humor (como em Donne) a instabilidade, quando não a desarmonia da vida; aproxima freqüentemente o coloquial e prosaico ao poético, injetando neste elementos que escapam à convenção; faz uso de expedientes sonoros como o eco, agregando pensamentos e coisas aparentemente remotas, distantes.

A emoção, mais do que as idéias ou pensamentos se encontra na gênese da poesia metafísica, que não obstante explore as paixões, lida com argumentos muitas vezes paradoxais, e busca uma imagética cultivada. Não nos enganemos, contudo; a sensibilidade do poeta metafísico é perpassada pela ação do intelecto analítico. A compreensão do amor, e o poema de Cavalcanti, visto acima, é um belo exemplo, se faz por meio dos sentidos, mas com o concurso decisivo do intelecto, da razão sensível, que não despreza os sentidos, antes os utiliza como bússola a guiar provocativamente o raciocínio pelos seus meandros, com elegância, equilíbrio e uma imaginação treinada (Eliot).

A principal característica da poesia metafísica é a de buscar sempre, ou na maioria das vezes, elevar o sentimento a regiões comumente visitadas apenas por intermédio do pensamento abstrato.

Em outros termos, logra transportar o pensamento para a esfera do sentir, fundindo-os (sentimento e pensamento) de modo peculiar, já que não permanecem indistintos. Contudo, a dinâmica da poesia metafísica não oferece dois fluxos diversos, um de emoções, outro de conceitos. Antes, um fluxo unitário em que pensar e sentir estão, como se disse, fundidos, e onde o poema é um objeto construído a partir das intersecções de pensar e sentir, ou de sentir e pensar.

Desse vezo derivam semelhanças inesperadas, nascidas da reciprocidade de estímulos entre a esfera da emoção e a do intelecto. Deriva também uma imagética intensificada e se altera o fluxo natural da idéia, de modo a extrair, do pensamento assim lentamente desdobrado, o mínimo de emoção existente; como se pensamento e emoção fossem, simultaneamente, agentes indutores de um processo químico. Por essa via, logra a poesia metafísica conferir ao pensamento o máximo de valor poético e dramático, sobretudo ao explorar o desequilíbrio entre imagem e idéia, no encalço de recuperar a noção de um mundo carente de unidade, como tem sido sua sina desde o século XVII.

O método metafísico toma como ponto de partida, como vimos, o maior em direção ao menor, o central na direção do que é periférico, construindo um percurso do passional ao reflexivo, argumentativo. O lastro conceptista da poesia metafísica é o que permite tal desenvolvimento (que é chamado de pensamento vagante).

A proximidade dos elementos que traduzem o sentir e o pensar, na poesia metafísica, favorecerá a concentração, a vizinhança de temperamentos e posturas distintas (como o humor, a ironia e a seriedade) e a ampliação do efeito imagético do poema. No verso metafísico a mais rarefeita sensação pode ser exata e diligentemente expressa.

A contigüidade de tais elementos indicados acima favorece a ruptura da hierarquia entre os componentes funcionais do poema, dando chance ao surgimento de dissociações intelectuais, e oportunidade para a manifestação de um ego onipresente (Eliot, Laforgue), e, ainda, permitindo associações livres, de coisas por conseguinte díspares (em vista da adoção da similaridade), além da fabricação de neologismos, de mots-valise (Laforgue) -- que operam como um alerta que acusa o desmoronamento das fronteiras funcionais do corpo poético. Ao lado disso tudo, a despersonalização (como estratégia poética), e o indiciamento da situação de crise com respeito ao 'lugar' do poema.

Resta alguma dúvida de que as características que Pessoa atribuiu à poesia metafísica praticada pelos colaboradores de A Águia pouco diferem dos traços imputados aos poetas metafísicos ao longo do tempo, embora o artigo pessoano não tivesse, a bem da verdade, como meta, destrinçar o verso metafísico, mas, ao contrário, rebatizá-lo com o nome de panteísmo transcendental para assim desviar as suspeitas que recairiam sobre ele próprio, acusando em momento talvez inoportuno as influências metafísicas em sua obra? Emocionalização da idéia, intelectualização da emoção, ideação vaga, complexidade, etc. são atributos fundamentais da poesia metafísica. Estão presentes em maio ou menor grau em Donne, Crashaw, Pascoais, Baudelaire, Laforque.

Adotar a sensibilidade como pedra de toque da arte, tornando-a instrumento da inteligência, é um dos pontos fulcrais da poesia metafísica. Em "Apontamentos para uma estética não-aristotélica", o poeta português (que atribui o texto a seu heterônimo Álvaro de Campos) afirma que a sensiblidade é toda a vida da arte; que toda a arte parte da sensibilidade e nela se baseia; que a arte

subordina tudo à sua sensibilidade, converte tudo em substância da sensibilidade, para assim, tornando a sua sensibilidade abstrata como a inteligência (sem deixar de ser sensibilidade), emissora como a vontade (sem que seja por isso vontade), se tornar um foco emissor abstrato sensível [...] (1) (em itálico no original).

Em outra passagem, defende uma fundamental postura metafísica, a de que a arte deve partir do geral (maior) na direção do particular (menor); "é o geral que deve ser particularizado, o humano que se deve pessoalizar, o 'exterior' que se deve tornar 'interior'" (2). Isto sem falar nos inúmeros apontamentos sobre arte moderna, orfismo, sensacionismo, etc.

 

(1) Cf. PESSOA, Fernando -- "Apontamentos para uma estética não-aristotélica". Em sua: Páginas de doutrina estética e de teoria e crítica literárias . Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho. Ática, Lisboa, s.d., p. 159, et passim. Também: CAMPOS, Álvaro de -- Apontamentos para uma estética não-aristotélica I. Athena . Lisboa, v. 1 (3):113-5, dez/1924; e, do mesmo: Apontamentos para uma estética não-aristotélica II. Athena . Lisboa, V. 1 (4): 157-160, jan/1925.

(2) Ibid ., p. 152.