NICOLAU SAIÃO

OS VERBOS IRREGULARES

Série Negra


Subi as escadas um pouco apreensivo. Ainda me parecia um sonho...Eu no meio dos duros, no convívio com aquela rapaziada que sempre admirara! Os manos que sabem como é, wise guys sem tirar nem pôr.

Rapazes espertos, gente que não se desalinha. Os que manejam de facto a sociedade e os seus meandros, que respondem às dificuldades e que dão o mote para a vida com letra grande.

Lá passei o guarda-costas, o porteiro matulão e calado que logo cerrou o matacão daquela porta pesada como um portão de herdade. Levantei os ombros, não ia deixar ficar mal a minha gente. Assim como assim, eu, um descendente do Vimioso…do Marceneiro…

O Al, com o seu charutão ao canto da beiçola quase nem me deixou ambientar.

- E então cá estamos nós, rapazes! - disse com o seu jeito de boss - E não vamos perder mais tempo: é preciso que tudo corra nos conformes, muito há em jogo nesta nossa reuniãozinha! Pois o caso é que concluí haver necessidade de elevar o nível do nosso meio. E que melhor para isso que entrarmos na…literatura? Parece que tem muita saída e dá notoriedade. Por isso, artilhei umas ideias que o primo Spillane me suscitou e vou editar o buque quanto antes!

- Cá por mim - adiantou logo o Floyd Três Dedos - nem era preciso tanto trabalho... Combinava-se de antemão o assunto a partir do Hammett e depois, se o Chandler se pusesse com tretas...a minha rapaziada dava-lhe o arroz! Compreendeu, Capone?

- Aguenta! - vociferou o Babyface Nelson, com a mão no lado esquerdo do casaco assertoado - Também tenho alguma coisa a dizer, Floyd... As coisas já não são o que eram, temos de ter cuidado. Não penses lá agora que com esta onda de simpatia pelo ensaio que o Lucky Luciano elaborou inspirando-se em páginas do Jack Ripper já podemos andar a fazer tudo. As massas são imprevisíveis, não viste como foi com o Landru? Eu por mim opino que nos devemos ficar por um volume de sonetos ajudados pelo Petrarca.

- E eu punha como modelo, limpinho e sem osso e para não falharmos, um Don das fotonovelas ou mesmo um romancista do Bronx com palheta e acabava-se a confusão. Ou se fizer falta a valer, um do meio intelectualchinês, que têm experiência em sociedades secretas e biografias...É coisa de futuro - relinchou o Floyd com rudeza.

O Al, ponderadamente, abanou a cabeçorra poderosa e riu um pouco.

-Eu hoje estou muito paciente, Floyd. Não fôsse isso e já tinhas a caixa dos pirolitos amolgada. Capici? Vamos mas é deixar-nos de tretas e inspirar-nos, quando muito, na Agatha Christie, que é de um ambiente mais nosso conhecido. E está dito: o cartapácio tem de vir a lume ainda nesta rentrée e mai’nada!

A intervenção dele despoletou uma algaraviada do caneco. Um dizia, outro replicava... Eu estava a ficar algo chateado.

E foi então que, lisboeta de lei que sou, me empolguei e rapando da automática escaquei um tirázio para o ar.

Calaram-se todos, pois então.

E no breve silêncio pesado que se seguiu eu disse, na minha voz bem timbrada de lírico do Bairro Alto, de descendente de letristas de fados dos tempos da Severa, arrumando a questão:

- Ouçam, rapazes: não quero ser desmancha-prazeres mas arre! Eu acho que hoje por hoje só há uma escolha como deve ser: artilhar-se, com fidalguia e ripanso, o nosso grande “Os Lusíadas”, mas com recorrências modernas!

E, para reforçar o meu breve discurso, pronto para o que desse e viesse, coloquei sugestivamente a mão esquerda, apesar de não ser canhoto, na outra algibeira da minha gabardina.

À Bogart, claro.

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